- Homem sem estudos formais, autodidata de muitas e boas leituras e melhores convivências, Manuel Ferreira Martins e Abreu esteve por duas vezes imigrado no estado de São Paulo. Havia tentado ser professor de primeiras letras na sua terra – Mortágua, Beira Alta, Portugal – mas esses lugares destinavam-se aos protegidos dos políticos locais. Restava-lhe a emigração, e tinha um irmão no Brasil.Chegando a São Paulo, em 1884, recusa proteção do conde de São Joaquim, plebeu enobrecido, e engaja-se como trabalhador de pá e picareta na Estrada de Ferro Sorocabana, em construção. Não segue, porque afinal foi contratado para uma fazenda em Belém do Descalvado que, como o próprio Martins e Abreu descreve, era pertença do “Dr. Manuel Batista da Cruz Tamandaré, fazendeiro, político, e genro do Senador Souza Queiroz, que possuía então a primeira fortuna do Estado de S. Paulo, suficiente para fazer ricos os dez filhos”. Suas funções, várias: “escrivão da Fazenda (Boa Esperança), boticário e diretor da colônia, o que já parece muito; mas poucos dias depois da chegada fui mais: caixeiro, curandeiro, agrimensor e mestre-escola”.
Fica encantado com a fazenda, com a comida e com o trabalho, goza boa saúde. Porém vivia-se na dramática transição do modo de produção, da escravidão para o trabalho assalariado. Em termos de cultura e de comportamentos sociais, este fato se traduzia em acirrados conflitos, por “manifestações de ódio e raiva. Da parte dos negros eram roubos, incêndios, assassinatos, venenos; da outra banda era chicote, gato de nove rabos, algemas e tronco”. A Fazenda Boa Esperança encontrava-se muito mal dirigida, os escravos indisciplinados, havendo mesmo a forte suspeita de que um deles envenenara a mulher do fazendeiro, D. Carolina Sousa Queiroz, cujo filho, em resposta, o fez sofrer uma morte atroz. Tal ambiente não lhe convém, e parte para outros serviços em fazendas da família de Campos Sales, onde encontra as condições de trabalho de que gosta.
A maioria dos trabalhadores livres que substituíam os escravos era imigrante, disso resultando amálgamas que nada tinham de homogêneos. Martins e Abreu, partidário da abolição, ensina primeiras letras a filhos de escravos (contra os que diziam que “escravo não se ensina, surra-se”) e sente-se revoltado com o comportamento de muitos fazendeiros e de eclesiásticos que defendiam a continuação da escravatura. Colabora no jornal Oitavo Distrito, de São Carlos, no qual denuncia o que lhe parece errado. E regressa à sua terra, em 1888. Já tinha juntado um dinheirinho, com o qual compra terras de cultivo no seu lugar natal.Em Mortágua interessa-se pela política local, mas não milita em qualquer dos partidos monárquicos ou no partido republicano. A questão nacional não o move: não é um reformador, mas antes alguém que quer processos limpos na vida social. Propõe-se apenas a contribuir para endireitar o que está torto. Quer eleições limpas de fraudes, sem votos de cabresto, sem as bebedeiras que os poderosos caciques locais proporcionavam para fazer as escolhas para o Parlamento, para os municípios, para as paróquias. Também exige dos eleitos o cumprimento das leis e dos seus deveres perante os povos que representam.Tanto Martins e Abreu se implica nas lutas da terra que acaba sendo eleito vereador do município de Mortágua. Usa a escrita com grande eficácia, publicando pequenos livrinhos com sugestivos títulos e conteúdos provocatórios: Coisas de Mortágua no último quartel do século (1890), Provas das coisas de Mortágua (1891), Política de campanário e justiça d’aldeia (em Mortágua) (1893), Ajustes de Contas (em Mortágua) (1894). Livrinhos que dava ou que vendia a favor de causas generosas. E isso numa escrita polêmica, cheia de imagens da vida rústica, sem hesitar na denúncia dos trampolineiros e das trampolinices – a que dá os nomes. A má sorte espreitava-o – chovem as ameaças, movem-lhe processos judiciais, talvez tenha escapado a algum tiro.Regressa ao estado de São Paulo em 1894, agora em diferente situação, até porque já conhece a terra e as gentes. Ainda leva imigrantes para os cafezais, ainda serve de administrador de algumas colônias. Vai dedicar-se a importar vinhos portugueses que vende pelas fazendas, a negociar em materiais de construção. Compra uma casa e uma chácara, contacta gente em ascensão, como o “rei do café” Francisco Schmidt, o estucador italiano depois fazendeiro Aurélio Civatti e o visconde da Cunha Bueno – sobre quem comenta: “O Visconde da Cunha Bueno, meu patrão em S. Paulo, era um sertanejo notável por muitos títulos. Rico, ativo e corajoso. Rompera a sua primeira grande lavoura numa sesmaria do Rio Claro, onde por causa de divisas teve com os vizinhos várias cenas de pau, faca e tiros. Vendendo, mais tarde, aquela fazenda, tornou a colocar-se em terras indivisas, em S. Carlos do Pinhal. É claro que, apesar de pessoalmente corajoso, se rodeava sempre de capangas. Nos sertões, estes homens são uma instituição. Nesta última fazenda repetiram-se e agravaram-se as cenas de sangue. A fama do Cunha Bueno enchia a região, e entretanto, quando a boa estrela nos deparava este homem, ficava-se assombrado de encontrar ali um patriarca à antiga, acolhedor, beneficente, distinto, fino e educado”. Sem ser um deles, contacta com os barões do café que enriquecem nestas novas terras roxas do Oeste. De lucros acrescentados pela circulação das ferrovias que lhes transportam os grãos para os portos e de que também são acionistas.A sociedade com que se depara já não é a da escravidão, mas a dos imigrantes europeus. Gente ainda não assimilada, na qual também avultam miseráveis retirantes dos sertões, bandidos e desenraizados de proveniência vária. O Brasil republicano dos governadores, em começos de montagem, também assentava no mandonismo dos poderosos locais, dos caciques e coronéis do dominante Partido Republicano Paulista a instalarem-se nos municípios. A administração de Cravinhos, nas mãos desta gente, torna-se escandalosa e carece de corretivos. Não há como conseguir fazer com que os coronéis e os seus clientes se conformem com o ordenamento legal e o respeitem. E o “endireita social” Martins e Abreu escreve para o Commercio de S. Paulo os seus artigos denunciando as múltiplas irregularidades que a cada passo ocorrem. Envia cartas às autoridades, que não se movem para corrigir as denúncias contra os seus partidários. Por duas vezes terá sido alvejado. Não lhe resta mais que regressar, com rendimentos aumentados pelos excelentes dividendos das ações da Companhia Mojiana de Estradas de Ferro a pingar-lhe anualmente no bolso. Já em Mortágua, publica um livrinho com relatos dos desmandos em Cravinhos: Pela civilização do Brasil, saído logo em 1903. Título pretensioso, que diz bem das ambições do retornado emigrante.Não descansa, porém. Continua as campanhas cívicas na sua terra e retoma a publicação de mais uns livrinhos: O meu voto nas próximas eleições (1906), A Republica na Beira Alta (1913), História Contemporânea de Mortágua (1921). Em 1910 torna-se o primeiro administrador do concelho (delegado do governo no município) nomeado pela República acabada de implantar. E nunca descansará no combate para que se não infrinjam ou façam entorses nas leis a favor dos que têm poder. Do mesmo modo em Portugal ou no Brasil; fossem quais fossem as instituições que governavam os homens, monarquias ou repúblicas: todos deveriam merecer o tratamento de cidadãos com todos os direitos. Sempre. Usufruindo de todas as liberdades. Na defesa dos seus ideais, serve-se de um estilo literário próprio, de muita qualidade, que impressionou logo grandes prosadores portugueses, como o jornalista, político e diplomata João Pinheiro Chagas (1863-1925) – que o elogia sem saber quem era o escritor de um livro que lhe tinham oferecido.Dele nos ficaram as publicações e muitos textos inéditos, em que descreve episódios da sua vida, boa parte passada nos cafezais de São Paulo.Joaquim Romero Magalhães é professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal, e autor de Os combates do cidadão Manuel Ferreira Martins e Abreu (Mortágua, Câmara Municipal, 2010).Saiba maisCARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma discussão conceitual”. In: COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 8. ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora Unesp, 2008/ Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 2, 1997.MATTOS, Odilon Nogueira de. Café e ferrovias. A evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. São Paulo: Pontes, 1990.MONBEIG, Pierre. Pionniers et planteurs de São Paulo. Paris: Librairie Armand Colin, 1952.
Defensor dos oprimidos
Joaquim Romero Magalhães