Pato no tucupi, maniçoba, sopa de muçuã. Muita gente nunca provou estes pratos, ou sequer ouviu falar deles, mas suas receitas atravessaram os tempos, de boca em boca. Com carne de caça, peixes e tubérculos sempre à mesa, a tradição da culinária indígena se mantém viva no cotidiano dos moradores da região amazônica.
Pescados não podem faltar. Eles movimentam a economia da região de rios extensos e caudalosos – Amazonas, Tocantins, Pará, Guamá, Moju e muitos outros. O encontro das águas doces com o Oceano Atlântico propicia alta concentração de fitoplâncton, o que atrai os peixes que se alimentam deste micro-organismo. O grupo indígena aruaque, exímio nas técnicas de navegação e de pescaria, foi um dos que deixaram muitas receitas culinárias. Mixira é uma delas: posta de carne de peixe-boi assada e colocada em conserva na própria gordura. Normalmente é servida com farinha e molho de pimenta-de-cheiro.
As formas de pescar variavam de região para região: usava-se desde flechas, arpões e tapumes de varas a anzóis e redes. A tradição oral, além de ter sido fundamental para a permanência das receitas, era fundamental também na hora da pesca: de geração em geração, aprendia-se quais eram os peixes comestíveis e quais deviam ser evitados.
No século XVII, a mesa da região era puramente indígena. Além dos peixes que eram moqueados (assados e desidratados), havia farta variedade de crustáceos, mariscos, tartarugas, frutas silvestres e cultivadas. Já naquela época, o açaí era um hábito diário: de manhã servido como mingau cozido com tapioca ou arroz, e muitas vezes também na refeição principal do dia, acompanhado de farinha e peixe ou camarão.Em diversas cores, texturas e sabores, a farinha de mandioca sempre foi companheira inseparável de quase todos os pratos da culinária amazônica. O ingrediente varia de acordo com o modo como é preparado e com o tipo de mandioca utilizado. As de textura mais grossa são usadas como acompanhamento da maioria dos alimentos, enquanto as mais finas são destinadas à preparação de farofas. A farinha d’água, por exemplo, é feita com mandioca amarela. A raiz é deixada na água e só quando fermenta é processada e torrada. Preparada com a mandioca branca, a farinha seca, como o próprio nome indica, não fica de molho, é apenas processada e torrada. A coloração pode ser branca, amarela ou tingida com açafrão.
Viajantes se impressionavam ao constatar a escassez dos ingredientes que eles consideravam “civilizados”, como azeite, arroz branco, bacalhau, batata e farinha de trigo. Condimentos tão corriqueiros para eles como alho, cebola, cominho e cravo-da- índia, entre outros, inexistiam por essas bandas. “Tínhamos apenas farinha de mandioca para fazer mingau, isto é, uma espécie de papa com sal, água e pimenta, chamada pelos índios ionquer, e assim passávamos a vida. E para remediar essa falta, resolveu-se mandar pescar peixe-boi”, relatou o religioso francês Ives D’Evreux (1577-1650), que participou de uma expedição ao Maranhão em 1612. Também chamou a atenção de D’Evreux a forma de comer farinha dos habitantes, pegando-a com as mãos ou fazendo uma bolota com os dedos e lançando-a na boca. No século seguinte, o padre jesuíta João Daniel (1722-1776) também se deparou com uma alimentação parca: “Têm pouca diversidade de guisados as suas mesas, e pouco têm as suas cozinhas; porque ordinariamente comem tudo assado, ou meio assado à inglesa”, observou.
O pirarucu moqueado e o peixe-boi em salmoura, muito apreciados, são descritos nas “Memórias” do naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815). Esses pratos – que por mais de três séculos foram o principal alimento da população amazônica – representavam na região o mesmo que o bacalhau e o salmão em Portugal. Além das conservas, feitas com a carne do peixe-boi, a partir de sua gordura se preparava manteiga (banha) usada para cozinhar.Dos rios e do mar não saíam só os pescados: a tartaruga era uma iguaria para os moradores. No século XVIII, existiam pelo menos 14 espécies comestíveis, entre elas jurará, tracajá e jabuti. Assada, frita ou colocada em pastéis e empadas, essa carne era muito apreciada. Entre as receitas mais populares estavam o casquinho de muçuã – chamado assim porque a carne é servida dentro da própria carapaça do animal – e o paxica, espécie de guisado feito com o lombo da tartaruga cozido na sua própria gordura. Do animal se faziam também provisões de carnes secas e de conservas. A banha era usada na cozinha e os ovos eram aproveitados para fazer manteiga, produto largamente exportado para o reino e consumido internamente até o início do século passado.
Muitos outros tipos de carne compõem ainda hoje a culinária do Norte do país. O paraense Bruno de Meneses, no texto “Cozinha do Extremo Norte – Pará-Amazonas”, de 1977, cita exemplos como a anta, o catitu (porco-do-mato), a capivara, a cutia, a paca, a preguiça, o tatu, o veado e o macaco. As aves aquáticas (marrecas e patos-do- mato) não escapavam da caça, assim como as aves da selva – inambus, jacamins e mutuns.
Embora seja a mais evidente, a influência indígena não foi a única a formar a culinária da Amazônia. À medida que o território saía do isolamento, trocas culturais transformaram a comida da região. Da metade do século XVIII em diante, foram incoporados ingredientes, técnicas de preparo e cozimento dos migrantes das ilhas dos Açores e de Mazagão (antiga colônia no Norte da África, ver RHBN nº 43), com forte influência da cozinha continental. O sal passou a ser usado no tempero e na conservação dos alimentos, e os legumes e as verduras foram incorporados a pratos regionais.
A introdução do escravo africano também trouxe contribuições, mas em menor escala. Esta influência está presente no sarapatel e nos pratos derivados do milho, como o cuscuz e o munguzá (mingau de milho).
A miscigenação chegava à culinária regional. O peixe ao tucupi, com seu molho extraído da raiz de mandioca de cor amarela, ganhou ingredientes exóticos: tomate, ovo e batata, transformando-se em um prato que passou a ser chamado de caldeirada. As carnes de caça da maniçoba foram substituídas pelo porco doméstico. Mas o prato continuou a dar trabalho na hora do preparo. A receita leva folhas frescas de maniva (arbusto da mandioca), que precisam ser cozidas por aproximadamente uma semana, para que seja retirado o veneno da planta. Só depois podem ser moídas e acrescentadas aos outros ingredientes.
Com o ciclo da borracha e a migração dos nordestinos que se deslocaram para trabalhar nos seringais no início do século XX, novos sabores aportaram na Amazônia. A carne-de-sol tornou-se complemento do açaí com farinha de mandioca.
O comércio de látex atraiu também muitos estrangeiros, sobretudo para Belém e Manaus. Foi assim que a cozinha francesa – uma das mais influentes do mundo – se fez presente, com a adoção de ingredientes como trufas e aspargos. Luxos para a época, cabiam principalmente aos restaurantes e às festas das elites políticas. Em 1898, no banquete oferecido ao senador Justo Chermont, no Teatro da Paz, em Manaus, um dos pratos era paca à caçadora e foie gras (fígado de ganso) à Belle vue. O menu vinha escrito na língua estrangeira, que soava bem mais chique.
Com uma pitada de exotismo, elementos indígenas, portugueses e até franceses, a alimentação na região amazônica virou uma síntese de sua história. Tipicamente brasileira.
Leila Mourão é professora da Universidade Federal do Pará e uma das editoras de “Eçaí (Euterpe oleraa Mart.): possibilidades e perspectiva para o desenvolvimento sustentável no estuário amazônico” (MPEG, 2004).
Saiba Mais - Bibliografia:
CAVALCANTE, Paulo B. Frutas Comestíveis da Amazônia. Belém: Museu Emílio Goeldi, 1996.
ORICO, Osvaldo. Cozinha Amazônica. Belém: Universidade Federal do Pará, 1972.
SENAC, DN. Culinária Amazônica: o sabor da natureza. BOSIO, Arthur (cood.), Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2000.
Delícias da oca
Leila Mourão