Alguns presos levam bebidas alcoólicas para as celas e circulam livremente pelo presídio, enquanto outros mal têm acesso ao serviço médico e a uma alimentação adequada. A imagem combinaria muito bem com os presídios de hoje, mas a descrição se refere aos detentos da Casa de Correção do Distrito Federal no final do século XIX. Denúncias de abuso como essas foram estampadas nas páginas do manuscrito A Justiça: journal de très mauvais augure (em português, jornal de muito mau agouro): “Há muito tempo que a 5ª galeria (...) observa que é sempre a última no conceito da recta administração”.
O quartel-general dos presos localizava-se nas celas 103 e 106, onde os “repórteres” trabalhavam sob a “chefia” do engenheiro Lício Clímaco Barboza. Os textos produzidos circularam pela 5ª galeria da Casa de Correção entre fevereiro e julho de 1894. Lá ficava o “baixo escalão” dos presidiários da Casa de Correção: operários, jornalistas, farmacêuticos, engenheiros e alunos da Escola Militar.
Naquela época, os “hóspedes” da Casa de Correção eram, na maioria, presos políticos suspeitos de terem participado das duas principais revoltas ocorridas durante o governo de Floriano Peixoto (1891-1894): a Revolta da Armada e a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, ambas em 1893.
Não era à toa que o jornal, além de tratar das más condições na Casa de Correção, tecia críticas ao governo de Floriano: “Oh, si o governo trabalhasse tanto quanto eu para fazer Justiça, não haveria tanta gente aqui”. Sem infraestrutura disponível para ter exemplares impressos, o veículo – manuscrito a nanquim em papel quadriculado todo ilustrado – tinha o logotipo invertido, insinuando que a prisão daqueles detentos havia sido um erro, uma inversão da Justiça.
As irregularidades apontadas no jornal – seis das 13 edições estão guardadas na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional – eram graves: falta de remédios na enfermaria, dieta deficiente dos detentos e as visitas ao médico só de três em três meses. Um diálogo possivelmente fictício, publicado na coluna “Estudos Sérios”, ilustrava a situação precária no presídio. Nele, o médico, Dr. Fubá, se recusa a examinar as feridas de um dos presos por medo de desmaiar. No fim da consulta, pergunta ao guarda da Casa de Correção, chamado Madeira, se haveria mais presos a serem examinados, ao que ele responde: “Temos aí alguns beribéricos [indivíduos que sofrem de beribéri, doença provocada pela carência de vitamina B], mas creio que o melhor remédio para eles é o cubículo”.
A vigilância da Casa de Detenção também não podia escapar. O jornal revelava que o guarda Madeira era um fugitivo. Ele havia sido condenado no Sul do país e, mesmo depois de escapar de cumprir uma pena de 25 anos, havia conseguido emprego na penitenciária do Distrito Federal.
Outra denúncia diz respeito ao tratamento diferenciado dispensado aos presos da 6ª e da 8ª galerias da prisão, ocupadas pela “elite” da Casa de Correção: oficiais da Armada, advogados, grandes comerciantes e políticos, como o general Inocêncio Serzedello Corrêa, ex-ministro da Fazenda do governo de Floriano, que fora suspeito de colaborar com a Revolta da Armada de 1893. Eles usufruíam de várias regalias: suas celas permaneciam abertas durante o dia, tinham acesso a bebidas alcoólicas e dispunham de serviço de barbearia e de banhos mais frequentes.
O jornal chegou a ultrapassar os muros da Casa de Correção. Uma pista é dada pelo engenheiro naval e ex-prisioneiro Atanagildo Barata Ribeiro em seu livro Sonho no cárcere: dramas da Revolução de 1893 no Brasil (1895). O autor revela que o detento posto em liberdade podia tentar levar o manuscrito ou impresso para fora do presídio amarrando-o o ao próprio corpo, sob as roupas. Neste caso, todo cuidado era pouco, já que a bagagem era revistada pelos carcereiros, e os escritos porventura encontrados eram apreendidos. A circulação de informações nas casas de detenção não era tão incomum. Pelas próprias páginas de A Justiça sabe-se que havia pelo menos dois jornais semelhantes no mesmo período: o Busca-pé e A Lei.
Barata Ribeiro, preso sob acusação de ser conivente com a Revolta de 1893 e partidário da restauração da monarquia, conta em suas memórias que o principal passatempo dos detentos era escrever. O esboço de seu livro, por exemplo, foi iniciado durante sua prisão.
O forte caráter de denúncia do periódico fez com que ele fosse ameaçado de extinção desde seus primeiros números. Mesmo com muitas dificuldades, a publicação circulou até a 13ª edição, que apresentou a “Lista dos presos políticos que passaram pela Casa de Correção de novembro de 1893 a junho de 1894”. O último número saiu justamente numa sexta-feira 13 – em julho de 1894 –, como se fosse uma confirmação de sua “vocação agourenta” expressa no seu subtítulo. (Christianne Theodoro de Jesus/Fundação Biblioteca Nacional).
Denúncias do cárcere
Christianne Theodoro de Jesus