Descabelados

Elson Oliveira Souza

  • A campanha “Seu talão vale um milhão”, que se espalhou pelo Brasil a partir do final dos anos 1950, virou uma febre nacional e chegou a inspirar uma marchinha de carnaval no ano seguinte. O objetivo do governo de Juscelino Kubitschek (1902-1976) era incentivar o consumidor a pedir a nota fiscal sempre que fizesse uma compra. Cada três mil cruzeiros em notas poderiam ser trocados por um cupom que daria ao cidadão o direito de participar do sorteio de um milhão de cruzeiros. Mas o que aconteceu em Curitiba, no dia 8 de dezembro de 1959, ultrapassou todas as expectativas. Quem poderia imaginar que, por conta da promoção, a simples venda de um pente daria início a um embate que teria consequências catastróficas para a cidade?

    Quando o governador do estado, Moysés Lupion (1908-1991), resolveu promover a campanha no Paraná, não imaginava até que ponto certo consumidor estava disposto a lutar pelos seus direitos em um estabelecimento conhecido como Bazar Centenário. Ali, após lhe terem negado a nota fiscal pela compra de um pente, o subtenente da Polícia Militar Antônio Haroldo Tavares, indignado, insultou com palavrões de baixo calão o comerciante que o havia atendido, dando início a uma séria discussão.

    Com os ânimos exaltados, os dois começaram a brigar. Empregados da loja e uma família que aguardava para ser atendida presenciaram o ocorrido. A família correu para uma saída nos fundos, a fim de procurar ajuda nas lojas vizinhas. O comerciante Ahmad Najar pediu aos seus quatro funcionários que o ajudassem a botar o cliente impertinente para fora do recinto. Enquanto era expulso, Antônio Tavares teve uma das pernas fraturada. Mesmo assim, Najar se negou a emitir o comprovante, alegando que o valor não estava de acordo com as regras da campanha. Instigada pela cena covarde que presenciou, a população não demorou a se revoltar. Em instantes, cerca de trinta pessoas começaram a depredar o local e a xingar o dono do Bazar. Estava deflagrada a chamada Guerra do Pente.

    Depois de sair dali, a multidão continuou dando vazão à sua fúria, invadindo outras 120 lojas, sendo que muitas ficaram completamente destruídas. A área onde ocorreu o conflito – que também abrigava a basílica menor de Curitiba – era uma das mais nobres da cidade. Segundo alguns pesquisadores, o estopim desse enfrentamento foi a violência praticada contra o subtenente, mas já havia uma insatisfação coletiva em relação aos comerciantes da região, que tinham recebido a alcunha de “turcos”. Eram assim tratadosos descentes de imigrantes árabes em geral. Todoseles eram estrangeiros ou descendentes e, aos olhos do povo, gozavam de boa situação financeira, enquanto a maioria da população passava por dificuldades. Além disso, algumas etnias, como a alemã, geravam uma farta propaganda negativa por conta dos horrores da Segunda Guerra Mundial.

    A força policial costumeira não foi capaz de deter a fúria destruidora da multidão, que só aumentava. De cerca de trinta pessoas, a horda passou a contar, em poucos minutos, com mais de cem integrantes, o que obrigou o Exército e uma guarnição do Corpo de Bombeiros a intervirem. O quebra-quebra se estendeu por todo o Centro da cidade. Quanto mais aumentava o efetivo e, consequentemente, a ação da polícia contra os revoltosos, mais violento ficava o conflito, à medida que se expandia para a área próxima à Catedral Metropolitana. O embate chegou às ruas Marechal Deodoro da Fonseca, Marechal Floriano Peixoto e XV de Novembro, que também tiveram muitos de seus estabelecimentos comerciais destruídos. Nem os pipoqueiros que trabalhavam no Centro da cidade foram poupados.

    A violência da manifestação obrigou a Polícia Militar a agredir os manifestantes com bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes. Tiros foram disparados para o alto, e o revide veio com pedras e paus. No dia seguinte, alguns dos “arruaceiros” estavam presos, mas a insatisfação popular continuava, embora em menor proporção. O Exército acabou tomando a frente no combate à crise – que as polícias militar e civil não conseguiam mais controlar – e se valeu de um forte aparato bélico, composto de pelotões armados com metralhadoras e baionetas. A operação, chefiada pelo capitão da Polícia do Exército, José Olavo de Castro, esvaziou a região próxima à Catedral.

    No dia seguinte, os manifestantes retornaram às ruas, e o Exército ampliou sua ação, passando a controlar a cidade. Algumas paradas de ônibus foram modificadas, e passou a vigorar na cidade o toque de recolher a partir das 20 horas, que incluía até os bares e restaurantes. Mas o estado não se valeu apenas da força para acalmar os ânimos. Diversas autoridades foram a público pedir a paz, entre elas o arcebispo metropolitano, D. Manoel da Silveira D’Elboux.

    Ao todo, foram danificados 181 estabelecimentos comerciais. Além do comércio da cidade, a revolta atingiu inúmeros órgãos do governo, como a Biblioteca Pública do Paraná, o edifício do Instituto de Pensão e Aposentadoria dos Servidores do Estado(Ipase) e as agências do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC), da Comissão de Abastecimento e Preços (Coap) e das Delegacias de Falsificações e Defraudação em Geral (DFDG). A Guerra do Pente foi notícia em todos os jornais e revistas do estado, e obrigou as emissoras de rádio a falarem do ocorrido durante mais de um mês. No fim do confronto, foram contabilizados cerca de 50 feridos e mais de 30 populares presos. Entre os feridos estavam o chefe de Polícia, Alfredo Pinheiro Júnior, e o comissário Eudes Brandão.

    Corria pela cidade o boato de que os protestos haviam sido provocados por estudantes secundaristas e universitários, auxiliados por desempregados. A União Paranaense de Estudantes chegou a buscar a ajuda dos meios de comunicação para desmentir os rumores. Mas a história política e econômica brasileira dá algumas pistas do que pode ter desencadeado a Guerra do Pente. Naquela época, o Brasil, embora muito empolgado com Juscelino Kubitschek, passava por um período turbulento na economia, em que a dívida externa não parava de crescer e a inflação estava cada vez mais alta. Quando JK assumiu a Presidência da República, em janeiro de 1956, apoiado no famoso bordão “Cinquenta anos em cinco”, ele se referia a um Plano de Metas que pretendia expandir e diversificar a economia do Brasil. Uma das medidas tomadas visava aumentar a arrecadação de impostos, e para isso o governo teve que lançar mão de promoções como a do “Seu talão vale um milhão”.

    Ao mesmo tempo, algumas ideologias veiculadas durante a Segunda Guerra Mundial – mesmo com o fim do conflito armado em 1945 – ainda circulavam fortemente entre a população brasileira.  Acreditava-se que os problemas referentes ao desemprego eram causados pela forte imigração do período pós-Segunda Guerra. Os jornais da época não paravam de publicar manchetes que questionavam a vida “mansa” levada pelos estrangeiros que aqui viviam, enquanto os brasileiros legítimos passavam necessidades e enfrentavam o desemprego. Essa situação levava revoltosos a tomarem constantemente as ruas para gritar frases de efeito, como “Viva o Brasil” ou “Queremos justiça: o Brasil é de brasileiros, não de estrangeiros”.

    A Guerra do Pente terminou definitivamente com a notícia da morte do candidato do PTB ao governo estadual, senador Abilon de Sousa Naves, que era muito querido pela população. Ele havia sofrido um ataque cardíaco na noite em que participava de um jantar de apoio à sua campanha, na Sociedade Morgenau. A população, em luto, resolveu voltar sua atenção para os parentes do senador, fazendo com que a Guerra do Pente perdesse vigor e terminasse no terceiro dia. Mesmo assim, essa revolta foi um marco na história de Curitiba e do Paraná por ter sido a primeira manifestação no estado que contou com uma efetiva participação popular.

     

    Elson Oliveira Souza é professor e pesquisador do Projeto Pró-História Institucional da PUCPRe autor do livro A CEU Ontem e Hoje (Protexto, 2009).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    HOERNER JÚNIOR, Valério. História dos 50 anos da Pontifícia Universidade Católica doParaná (1959/2010). Curitiba: Editora Champagnat, 2009.

    MÜLLER, Estevão. As Samaritanas de Chambéry. Curitiba: Editora Champagnat, 2005.

    VALLE, Túlio. A Revolução de Curitiba. Curitiba: 2007.

    VARGAS, Odilon. Uma guerra por um pente. Curitiba: Edição do autor,1983.

    Saiba Mais -Filme

    “A GuerradoPente: OdiaemqueCuritibaexplodiu”, de Nivaldo Lopes (1986).