Destinos de Osifekunde

Aderivaldo Ramos de Santana

  • Busto de Ochi- Fékoué-Dê hoje no Museu de História Natural de Paris. (Imagem: MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL, PARIS – FRANÇA / FOTO DE ADERIVALDO RAMOS DE SANTANA)Todo ser humano é um espelho de sua época, mas algumas trajetórias parecem ter sido talhadas para servir de síntese de importantes aspectos da história coletiva. Assim foi a vida de Osifekunde. 
     
    Nascido em 1793 na cidade de Makum, do reino Ijebu, no sul da atual Nigéria, Osifekunde era descendente de uma família aristocrática. Seu avô, Ochi-Wo, foi cunhado e superintendente de finanças do rei Ochi-Gade. Seu pai, Ade-Sounlu, foi um importante comerciante, profissão que transmitiu aos filhos em inúmeras viagens mercantes em território ioruba. A mãe, Egght Adê, primeira das sete esposas de Ade-Sounlu, era também uma aparentada do rei. 
     
    No final do século XVIII, os guerreiros ijebus resistiram ao domínio do poderoso Império Oió, que se expandia para o sul após reduzir a vassalos a maioria dos seus vizinhos, inclusive os daomeanos. Com o declínio desse império, na primeira metade do século XIX, o território iorubano atravessou um período de guerras e constantes transformações políticas. O reino Ijebu, no entanto, manteve-se inabalado: entre 1820 e 1825 aliou-se a alguns refugiados de Oió, anteriormente seus inimigos, e com os guerreiros da cidade de Ifé para conquistar o controle de um importante centro comercial, o mercado de Apomu, ponto de encontro de mercadejantes de várias regiões. Também obtiveram o domínio das rotas e das atividades comerciais que ligavam o interior do continente africano com o litoral, particularmente com a cidade de Lagos. Os ijebus comercializavam diretamente com os europeus, para quem vendiam escravos e tecidos, os chamados panos da costa. 
     
    Numa manhã de junho de 1820, regressando de Lagos para Omakou após comprar uma importante carga de mercadorias europeias, Osifekunde foi preso pelos canoeiros ijos, piratas que agiam nas imediações do rio Benim capturando homem, animais e mercadorias em troca de comida, pólvora e fuzis. 
    Feito cativo, o nobre comerciante ijebu esperou amordaçado durante quatro dias antes de ser negociado e vendido a um traficante de escravos. Do porto de Bobi, foi embarcado no porão de um navio negreiro rumo ao Rio de Janeiro, um dos principais pontos de chegada de africanos deportados para as Américas. De lá, eles eram enviados para as lavouras de café, de cana-de-açúcar e para a região das Minas Gerais.
     
    Uma vez na colônia portuguesa, Osifekunde seria certamente definido como mina-nagô. Esta denominação englobava todos os africanos deportados da Costa da Mina (da atual Gana até o sul da Nigéria), assim como os falantes do ioruba. Os mina-nagôs eram minoria entre os africanos no Rio de Janeiro, porém correspondiam ao maior número dos que trabalhavam “no ganho” – vendendo comida e tecido, carregando fardo ou gente e exercendo atividades manuais, como carpinteiro, sapateiro, mecânico, barbeiro, e alguns como domésticos, cozinhando para dentro e para fora da casa de seus proprietários. Boa parte do que arrecadavam ia para seus donos, a outra podia ser acumulada como pecúlio, utilizado para comprarem suas alforrias. 
     
    Batizado no Brasil com o nome de Joaquim, Osifekunde passou a trabalhar como escravo doméstico. Talvez tenha sido escolhido para essa função por sua ascendência social, mas não se conhecem mais informações sobre o período em que viveu no Rio de Janeiro. Nova pista sobre seu paradeiro surge em abril de 1837, quando um registro de passaporte da cidade do Recife documenta a partida do negociante Jean-Baptiste Navarre para Paris, “acompanhado de sua mulher Maria de Macedo e um pardo que tem por nome Joaquim, que se mostrou desembaraçado pela polícia”. Navarre foi o segundo proprietário de Osifekunde. Era comum os escravos domésticos acompanharem seus senhores em viagens, até mesmo para o exterior. A menção “desembaraçado pela polícia” indica que o africano não tinha nenhum problema que o impedisse de sair do Brasil.
     
    Navarre viveu de negócios no Recife, cidade onde havia somente 14 comerciantes franceses especializados em importação e exportação. A província de Pernambuco comercializava para a França algodão, couro, cachaça, mel e madeira. Em troca, recebia tecidos, utensílios de moda, como perfumes, sapatos e chapéus. Entre 1837 e 1840, Navarre se tornou representante dos Irmãos Quesnel, conhecidos proprietários de navios que asseguravam o comércio entre o porto do Havre, no noroeste da França, e portos do Brasil. 
     
    Talvez Osifekunde já tivesse sido alforriado quando viajou no navio Camélia rumo a Paris. Afinal, seu nome figurava nos registros de passaporte (definido como “pardo”) e da embarcação. Ou talvez tenha aproveitado a oportunidade de estar em terra estranha para escapar de Navarre, valendo-se do fato de que não havia escravidão na França. Dedicou-se então a viver por seus próprios meios. Passou a se chamar Joseph, trabalhou num hotel popular e como empregado doméstico em casas de particulares. 
     
    Mesmo vivendo como homem livre, sentia saudades do Brasil. Nos primeiros anos em Paris, buscou constantemente retornar a terra onde fora escravo. Em 1839, foi apresentado a Marie-Armand d’Avezac, arquivista do Ministério da Marinha, vice-presidente da Sociedade de Etnologia de Paris e membro da Sociedade de Geografia, alguém com contatos suficientes para ajudá-lo. d’Avezac, porém, temia que Osifekunde fosse detido no Brasil como escravo fugido e prometeu encontrar um meio de repatriá-lo ao seu país de origem. O etnólogo viu nesse encontro uma oportunidade de aprofundar os estudos sobre o interior do continente africano. Arranjou um emprego de doméstico para o ex-escravo na casa de Vendryès, um comerciante francês, que lhe permitiria dividir seu tempo entre o trabalho e entrevistas etnográficas. Em múltiplos encontros, Osifekunde contou como se organizava seu povo econômica e militarmente, descreveu sua região e os países vizinhos, falou sobre o culto dos Orixás entre os ijebus, do nascimento aos rituais fúnebres. 
     
    As entrevistas eram intercaladas por tentativas de retorno ao seu país natal. Naquele ano, Joseph chegou a recusar uma oferta de repatriamento, alegando estar satisfeito com sua nova vida na França. Mas no início do inverno de 1840, envolvido por uma aguda saudade da atmosfera tropical, Osifekunde tornou a pedir ajuda ao seu entrevistador para deixar a Europa. Recebeu por fim a proposta de ser levado até Serra-Leoa, onde não correria risco de reescravização. Pareceu contente com a oportunidade, mas de uma hora para outra mudou de ideia. Cedendo às promessas de bom tratamento de seu ex-proprietário Navarre, abandonou a casa onde trabalhava e embarcou rumo ao Recife. 
     
    Saudade do clima tropical, dos amigos e de um filho que deixara no Rio de Janeiro. Segundo o etnólogo d’Avezac, foram estas as razões que motivaram Osifekunde a retornar ao Brasil. Com 48 anos de idade, vivendo em um país do qual mal falava a língua, não é difícil entender sua decisão. Não são raros os relatos que exemplificam o sentimento de “abrasileiramento” por parte de alguns ex-escravos, pelo fato de terem criado laços de sociabilidade com outros africanos ou mesmo de amizade e apadrinhamento com seus senhores. 
     
    Não há informações sobre Osifekunde depois do seu retorno a Recife, em 1841. Nesse ano entrou em funcionamento uma usina de destilação de cana-de-açúcar de propriedade de Navarre, que pretendia vender licores “espirituosos”, cachaça e champanhe. Se permaneceu livre, Osifekunde poderia ajudá-lo nessa nova empreitada. Se voltou a ser escravo, seria um empregado ainda mais qualificado e saberia servir à moda dos franceses. 
     
    Do que não se tem dúvidas é que Osifekunde tenha contribuído para uma fase informativa, de extrema importância na expansão colonial europeia sobre o continente africano, quando pouco se conhecia a respeito do seu interior. As informações que obteve d’Avezac permitiram-lhe escrever um tratado sobre os ijebus. O livro Notice sur le pays et le peuple des Yèbous en Afrique foi publicado em 1845, contendo uma parte geográfica, uma antropológica e um pequeno vocabulário de 800 palavras em ioruba. Um busto de Osifekunde, feito pelo escultor Doumontier, é conservado sob o n° 1477 no Museu de História Natural de Paris. 
     
    Osifekunde, Joaquim, Joseph: sob três nomes uma única biografia, que permite entrar em contato com o reino Ijebu, o funcionamento do tráfico de escravos em território iorubano, a escravidão no Brasil (sobretudo a relação senhor-escravo) e a etnologia francesa do século XIX. Muitas vidas numa só. 
     
    Aderivaldo Ramos de Santana é doutorando em História Contemporânea pela Universidade Paris IV – Sorbone, onde prepara a tese intitulada “Osifekunde escravo no Brasil e homem livre na França 1820-1841. Leitura atualizada de Notice sur le pays et le peuple des Yèbous en Afrique de Marie-Armand d’Avezac, publicado em 1845”.
     
    Saiba mais
     
    KARASH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850. São Paulo:
    Companhia das Letras, 2000.
    LAW, Robin & LOVEJOY, Paul (eds.). The Biography of Mohammah Gardo Baquaqua: his passage from slavery to freedom in Africa and America. 2. ed. Princeton: Markus Weiner Publishers, 2006.
    REIS, João José; GOMES, Flavio dos Santos & CARVALHO, Marcus J.M. de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c.1822-c.1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
    VERGER, Pierre Fatumbi. Fluxo e refluxo do tráfico negreiro entre o Golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos. 3. ed. São Paulo: Corrupio, 1987.