Desvendando a fonte sagrada

William de Souza Martins

  • Na minha vida, a religião apareceu inicialmente ligada ao medo. Aluno de colégio de freiras, aprendi a reverenciar as “irmãs”, que intimidavam pelo uso do hábito e pelo forte sotaque alemão. Este ambiente, marcado pela clausura, pela capela e pelo ensino religioso obrigatório, não estimulou convicções profundas. Só mais tarde percebi como a religião era capaz de despertar sentimentos de paixão. Foi quando meus familiares se engajaram nas pastorais comunitárias da Igreja Católica, na Baixada Fluminense, particularmente na Pastoral da Juventude. A alegria que imprimiam nessas atividades me fascinou, embora não o bastante para me inspirar a segui-los.

    Conformado com minha descrença, reencontrei a religião por outro caminho, o da curiosidade intelectual. Tudo começou na graduação, entre 1989 e 1992, quando estudei as atividades de padres, fiéis e burocratas no início do século XIX. As demandas e os conflitos daqueles agentes religiosos, que por vezes atuavam em remotas freguesias no interior do Brasil, despertaram meu interesse. Ao lado de outros jovens colegas, e estimulado pelo orientador, o professor Guilherme Pereira das Neves, da Universidade Federal Fluminense, fui aos poucos desvendando as vivências daqueles homens.

    Algum tempo depois, me concentrei nos fiéis e nos poderes urbanos, que organizavam festas religiosas na Corte do Rio de Janeiro. Enquanto os devotos buscavam cumprir as promessas feitas aos santos de sua devoção, as autoridades controlavam o uso do espaço urbano para a realização dos festejos. Mas no Corpus Christi, por exemplo, era nítido que havia uma demarcação das hierarquias sociais: a procissão se revestia de uma maior solenidade e cada grupo social tinha seu espaço estabelecido e facilmente identificado por toda a população.

    Durante o doutorado, priorizei novamente a atuação dos fiéis, desta vez agrupados nas ordens terceiras – associações de leigos católicos que mantinham estreitos vínculos institucionais, materiais e espirituais com os religiosos franciscanos e carmelitas. Atualmente, venho me dedicando a estudar alguns relatos de mulheres na Colônia que tinham reputação de santidade. Algumas eram simples fiéis. Outras, em geral pertencentes às ordens terceiras, eram reconhecidas como “beatas”. Por fim, havia também algumas freiras, que haviam feito votos solenes de castidade, pobreza, obediência e clausura. Neste último estudo, experimentei o desafio de reconstituir a condição feminina a partir de registros de autoridades religiosas masculinas.

    À exceção dos arquivos da Inquisição, os testemunhos que documentam as práticas religiosas das mulheres na América portuguesa são escassos. As condições precárias dos arquivos que usei no Rio de Janeiro me levaram a refletir sobre a falta geral de sensibilidade, da nossa sociedade e das instituições que a representam, relativa à conservação documental. Para a América espanhola e Portugal, além de acervos em melhores condições, os pesquisadores dispõem de documentos mais completos, existindo ali fontes de natureza diversificada, como cartas, diários e autobiografias espirituais elaboradas pelas próprias devotas. Com tudo isso, voltei a encontrar na religião um alvo de interesse, até certo ponto apaixonante, embora tal sensação seja de natureza diferente daquela compartilhada pelos devotos.

     

    William de Souza Martinsé professor da UFRJ e autor de Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro - c. 1700-1822 (Edusp, 2009).