Devo, não nego

Iuri Azevedo Lapa e Silva

  • A dívida externa é pauta recorrente nos debates públicos nacionais. Durante a crise econômica da década de 1980, era comum relacionar a falta de investimento social do Estado com o pagamento dos juros da dívida. Recém-eleito, em 1985, o presidente Tancredo Neves declarou que não pagaria a dívida com a fome do povo. Ao longo do século XX, ela foi considerada um dos principais entraves para o desenvolvimento nacional. Voltando ainda mais no tempo, descobre-se que sua origem está na época da formação do país.

    O primeiro empréstimo contraído pelo Brasil vem dos anos iniciais de nossa independência. Um dos responsáveis pela negociação foi Manuel Rodrigues Gameiro (c.1800-1846), o visconde de Itabaiana. Para justificá-la, ele imprimiu no ano de 1827 o folheto Exposição fiel sobre a negociação do emprestimo que o imperio do Brasil ha contrahido em Londres, e sobre as vantagens delle resultantes – guardado na Seção de Obras Gerais da Biblioteca Nacional.

    A intenção do visconde era convencer o público de que o negócio havia sido bem sucedido. Afinal, várias críticas chegavam da Comissão Financial da Câmara dos Deputados. Os parlamentares questionavam se não teria sido possível fazer uma transação mais favorável, e a voz deles ganhava eco na imprensa e em outros círculos. 

    Para se defender, o visconde de Itabaiana compara o empréstimo brasileiro com os tomados por outros países na mesma época. “No moral e no físico todas as ideias são relativas, e um meio há somente para se qualificarem as ações e os negócios humanos, que é o da comparação”, escreveu.Diversas nações já haviam recorrido aos capitalistas de Londres, tentadas pelas divisas imediatas que os ingleses tinham a oferecer. Entre elas Dinamarca, Prússia, Áustria, Nápoles e França. Nas Américas, Colômbia, Chile, Peru, México e Argentina também se envolviam com o nascente universo financeiro londrino, que iria aos poucos se impor mundo afora, alimentado pela força do capital industrial.

    O documento expõe detalhes das transações com as nações mencionadas, como os juros, as formas de amortização e o resgate das apólices. E, de fato, nossa primeira dívida – 3 milhões de libras esterlinas – foi contraída em condições mais favoráveis que as dos outros países: os juros foram menores e a possibilidade de resgate das apólices mais vantajosa.

    O processo, no entanto, não foi simples. Contrair grandes empréstimos dos capitalistas de Londres era algo recente. O Brasil tentou uma abordagem inovadora: adotou o método de escolher dia e hora para concorrentes apresentarem suas propostas, uma espécie de concorrência às cegas. Além de tentar obter maiores vantagens entre os postulantes, a ideia era isentar nossos diplomatas da responsabilidade por eventuais acusações de favorecimento na escolha. Como nenhum dos bancos saberia o que seria oferecido pelos demais, o resultado, segundo o plano, seriam juros menores e outros possíveis ganhos. Os maiores capitalistas, porém, mantiveram-se fora da disputa por não concordarem com aquele procedimento. Uma nova rodada, então, teve que ser feita.

    E esse não foi o único obstáculo. Uma semana antes da concorrência às cegas, um boato tomou Londres, ameaçando toda e qualquer negociação do Império. Falava-se de uma expedição militar conjunta portuguesa e francesa rumo ao porto do Rio de Janeiro em socorro de D. Pedro I, que estaria acuado por brasileiros. Por causa da falsa notícia, “o espírito especulador de fazer empréstimos teve considerável abatimento”.

    No fim das contas, dois créditos foram contraídos de diferentes grupos financeiros, em duas rodadas de negociação. O visconde de Itabaiana estava convicto: o Império brasileiro fez um bom negócio. Mas, em termos absolutos, nenhuma das transações foi favorável a quem quer que a tenha feito, pois a maioria dos países devedores, principalmente os da América, teve que recorrer a novos endividamentos.

    Em 1829, outro empréstimo foi tomado pelo Brasil para saldar os juros não pagos da primeira dívida, diante da ameaça de se penhorarem as rendas das alfândegas. Nossa independência política chegava junto com a dependência financeira, que se arrastou por quase 200 anos de história de dívida externa: dali em diante, a tomada de créditos dos mesmos países a quem já se devia foi constante, gerando um ciclo perverso e quase sem fim.