Dias de alegria e muita fé

Luciana Carvalho

  • A maior celebração popular do país reúne quase dois milhões de pessoas em festejos religiosos e profanos que tomam conta de Belém do Pará por todo o mês de outubro. É a festa do Círio de Nazaré, comemorada há mais de 200 anos. A devoção a Nossa Senhora de Nazaré é de origem portuguesa e foi introduzida no Pará pelos jesuítas. Segundo a tradição paraense, por volta de 1700 o caboclo Plácido José dos Santos, agricultor e caçador, ao caminhar pela mata nas proximidades da estrada do Utinga – onde hoje é a Avenida Nazaré, em Belém –, encontrou uma pequena imagem da Virgem de Nazaré às margens do igarapé Murutucu. Recolheu-a e levou-a para sua humilde cabana. No dia seguinte, ao acordar, percebeu que a imagem havia sumido. Correu então até o local onde a encontrara e constatou que a santa havia retornado para lá. Este fato se repetiu muitas vezes, até que, chegando ao conhecimento do governador da época, este ordenou que a imagem fosse levada para a capela do Palácio do Governo, onde permaneceu durante a noite sob a guarda dos soldados. Nem a vigilância impediu a santa de tornar a sumir e, no dia seguinte, ser novamente encontrada às margens do igarapé, no lugar habitual. Desde então, os percursos de ida e vinda da santa são rememorados e reencenados nas procissões do Círio de Nazaré.

    A mais conhecida das procissões brasileiras é, na verdade, um conjunto de manifestações religiosas e profanas que expressam a identidade cultural do povo amazônico. Sob o túnel de mangueiras das ruas de Belém, a multidão de devotos acompanha a berlinda de Nossa Senhora de Nazaré – o centro da procissão onde fica a pequena imagem da santa, puxada por uma longa corda, e onde ocorrem as mais impressionantes atitudes de sacrifício dos devotos. O que pode parecer desconcertante para quem está de fora guarda, porém, uma das funções místicas mais importantes da celebração.

    A berlinda e a corda compõem, com a própria imagem da santa, a tríade indispensável e indissociável da celebração. As principais procissões do Círio de Nazaré são organizadas em torno destes dois elementos. Introduzidos nos cortejos em 1855 por diferentes razões práticas, ambos acabaram por adquirir forte valor simbólico, impondo-se ao próprio ritual. A berlinda servia para levar o capelão e a imagem, enquanto a corda servia para desatolar o carro de boi que puxava o conjunto. Em 1926, quando o arcebispo do Pará ordenou sua extinção a fim de tornar o Círio uma procissão predominantemente devota, o povo reagiu com veemência, e criou-se um impasse que só foi resolvido com a intervenção do governo federal no sentido de promover a conciliação das perspectivas religiosas e populares sobre a festa. Finalmente restabelecidas em 1931, a berlinda e a corda – com seus atuais 420 metros de comprimento – foram definitivamente incorporadas à estrutura dos festejos de Nazaré, embora a última esteja até hoje envolta em polêmicas, sendo freqüentemente responsabilizada pela demora, maior a cada ano, do grande cortejo do segundo domingo de outubro. Indiferentes a supostos atrasos em relação ao tempo estimado pelos organizadores oficiais da festa, homens e mulheres que acompanham a procissão "na corda" atribuem a ela valores e poderes especiais, e, com muito esforço, persistem até o término do percurso, quando a retalham e disputam cada centímetro dela.

  • Reproduzida aos milhares, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré constitui signo da identidade e da cultura do Pará, apresentando-se em muitas versões e ocasiões no cotidiano da população local, que chega a tratá-la quase como uma pessoa da família, chamando-a carinhosamente de “Tia Naza”, “Nazinha”, “Nazica”. Mas é durante o Círio que os paraenses mais se aproximam da santa, fazendo dela o centro das atenções em inúmeros festejos e ritos que envolvem mais de um milhão de pessoas. Da maioria deles participa não a imagem que teria sido achada por Plácido, chamada de “Original”, que permanece guardada durante o ano inteiro no ponto mais alto (glória) do altar principal da Basílica, mas sim uma réplica esculpida na Itália, em 1964, dotada de feições “caboclas” e conhecida como “Peregrina”. Mais do que símbolo do sagrado, essa imagem representa e potencializa, para os devotos, o acesso direto à intercessora mãe de Jesus, canal para a realização de muitos milagres.

    Da pré-produção até a etapa final das comemorações, dialogam devotos, religiosos, produtores culturais, músicos, gays, policiais, bombeiros, representantes de empresas e de órgãos públicos – grupos que, com expectativas distintas, interagem em diferentes planos e graus de intensidade no amplo complexo festivo de Nazaré. Por isso a festa da santa desperta concepções e representações, por vezes divergentes, que perpassam toda a estrutura ritual. Esta acaba dividida em dois grandes conjuntos: o dos ritos de caráter eminentemente religioso (católico) e o dos ritos de natureza profana ou mista.

    Na esfera religiosa, destaca-se uma seqüência de cerimônias que vai de agosto, com a Missa do Mandato, até outubro, com as procissões da Trasladação, do próprio Círio e, por fim, do Recírio. No segundo conjunto encontram-se elementos como o Arraial do Círio, o Círio das Crianças, o Festival da Canção Mariana, a Corrida do Círio, o Auto do Círio, a Festa das Filhas da Chiquita, a Feira dos Brinquedos de Miriti, o Arrastão do Boi da Pavulagem e o Almoço do Círio. São eventos de caráter profano que, ao longo de mais de dois séculos de celebração, acoplaram-se aos ritos religiosos do Círio e atualmente mantêm com eles relações que oscilam entre a aproximação e o distanciamento, a identificação e a diferenciação.

    É preciso enfatizar que elementos considerados sagrados pela ótica da Igreja – representada não só por sacerdotes e fiéis, mas sobretudo por uma Diretoria da Festa, que é a principal responsável pela organização dos festejos, embora incapaz de controlar todas as suas instâncias – misturam-se com práticas consideradas profanas. Diferentes indivíduos e grupos integram a multidão que a cada ano vive e participa do Círio de Nazaré de formas distintas e até conflitantes. É a partir dessas diferenças e divergências que se produz a atual configuração do bem cultural escolhido pelo Iphan para fins de inventário e registro.

  • Por tudo isso, a implementação de políticas públicas para salvaguarda do patrimônio imaterial se depara com uma série de questões de difícil solução. Em 2000, o Decreto Presidencial no 3.551 abriu caminho para o reconhecimento e a proteção de lugares, saberes, fazeres, formas de expressão e celebrações populares como bens integrantes do patrimônio cultural do Brasil. Mas a natureza imaterial ou intangível desses bens demanda metodologias e mecanismos peculiares de identificação, documentação e salvaguarda – ao contrário de edificações e monumentos, por exemplo, que constituem o chamado patrimônio material passível de preservação pelo tombamento. Por isso, o decreto que instituiu o registro dos bens culturais imateriais em livros específicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), criou também o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, cujo objetivo é coordenar as ações de inventário, referenciamento e valorização desse patrimônio. Desde então, o Estado brasileiro tem procurado assegurar a execução de políticas públicas voltadas para a preservação de expressões tão diversas quanto a arte kusiwa dos índios waiãpi, do Amapá; o samba-de-roda do Recôncavo Baiano; o ofício das paneleiras de Goiabeiras, no Espírito Santo; o ofício das baianas do acarajé; a viola-de-cocho pantaneira e a Festa do Círio de Nazaré

    O Círio foi reconhecido oficialmente como patrimônio imaterial brasileiro em 2004. Para isso, houve uma série de procedimentos: realização de um extenso inventário da manifestação e dos bens culturais que se associam à festa de forma direta ou indireta; documentação sonora e visual de diversas etapas e processos dos festejos; produção de um vídeo que ajuda na compreensão dos sentidos sociais da festa e elaboração de um dossiê defendendo o registro da celebração – que, por sua vez, veio atender a anseios e interesses distintos de amplos segmentos da sociedade paraense.

    Estas questões, comuns aos processos de inventário e registro em geral, envolvem sempre o risco de se adotarem visões parciais da diversidade cultural brasileira e, principalmente, de transformar essas visões na versão oficial sobre como são ou devem ser suas manifestações. O que está em jogo, no caso do Círio, é a seleção de critérios adequados e de procedimentos diferenciados a partir dos quais o Iphan possa cumprir sua missão institucional de promover a valorização e a salvaguarda dos vários bens culturais que integram a celebração então registrada como patrimônio imaterial do Brasil.

    No que concerne à preservação do patrimônio cultural brasileiro, a atuação histórica do Iphan tem privilegiado claramente a Igreja Católica. Assim, também no tratamento do Círio, o Instituto não fica imune à influência dessa Igreja. A própria solicitação de registro da celebração foi apresentada pela Arquidiocese – em conjunto com a Diretoria da Festa, em 2001 –, e as ações posteriores de inventário e registro também se tornaram objeto de polêmicas envolvendo a Igreja, de modo semelhante ao que acontece em relação a outros elementos já profundamente associados aos festejos de Nazaré, ainda que contrariem a ótica católica: a corda e a Festa das Filhas da Chiquita, por exemplo.

  • A própria seleção – feita entre um vastíssimo conjunto de bens inventariados no Círio de Nazaré – dos itens abrangidos pelo instrumento do registro (as procissões da Trasladação, do Círio e do Recírio, as imagens original e peregrina da santa, a corda, a berlinda, o almoço do Círio, o arraial, as alegorias da procissão do Círio, a feira de brinquedos de miriti) foi fruto de cuidadosa negociação com diferentes segmentos sociais – Igreja, grupos organizados em torno da festa, pesquisadores e intelectuais, e o próprio Estado, aqui representado pelo Iphan. Enfim, entraram apenas aqueles elementos considerados “essenciais” (no sentido de que sem eles “o Círio não existiria”) a partir de critérios de continuidade histórica e da tradição que mantêm para os devotos o vínculo do presente com o passado.

    É importante reconhecer que a própria noção de patrimônio está intimamente associada a idéias de posse, propriedade, herança – de um indivíduo, de um grupo ou até de uma sociedade nacional –, assim como a sentimentos de identificação, inclusive afetiva, do detentor em relação ao “bem” possuído. Assim, os diversos sentidos que o registro em questão pode assumir para os diferentes atores sociais envolvidos no Círio de Nazaré devem ser levados em conta. Em Belém, as múltiplas formas individuais e coletivas de se relacionar com Nossa Senhora de Nazaré, implicando atribuições diferenciadas de valores e sentidos a essas relações que já perduram há mais de 200 anos, sugerem que o reconhecimento do Estado vem reiterar o fato que a população conhece e repete para si mesma anualmente, por meio do ritual: a santa, em suas inúmeras formas de “aparição”, é patrimônio de cada um, da cidade, do estado, da nação, dos artistas, das Filhas da Chiquita, dos católicos e não-católicos e, evidentemente, também da Igreja. Assim, para além dos discursos oficiais e do mito de origem da devoção à Virgem em Belém – que, quando levada para casa pelo caboclo que a encontra, teima em “fugir” reiteradamente para o local original de sua aparição –, o que as práticas populares parecem insinuar é que o valor patrimonial do Círio se concentra, sobretudo, nas múltiplas possibilidades criadas em seus festejos para que diversos atores sociais reencenem constantes “fugas” e “reapropriações” da santa na cidade: na igreja, na rua, no teatro, no palco, no bar, na roda-gigante. Não por acaso, Nossa Senhora de Nazaré aparece como Tia Naza, Nazica, Nazinha, arrastando ao seu redor gente de toda parte do Brasil, que se identifica com suas muitas faces.


    Luciana Carvalho é pesquisadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan/Minc e autora de “Inventariando saberes, criando patrimônios”, publicado em Textos escolhidos de cultura e arte populares. (Uerj, 2004). Maria Dorotéa de Lima é superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Minc e co-autora, com Raymundo Heraldo Maués, de “Reflexões a propósito do registro do Círio de Nazaré como Patrimônio de Cultura Imaterial”, publicado em Registro e políticas de salvaguarda para as culturas populares. (Iphan, CNFCP, 2005).