Diogo Curto

Rodrigo Elias e Nelson Cantarino

  • O português Diogo Curto anda encantado com a historiografia brasileira. Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, ele esteve por aqui recentemente para abrir um colóquio sobre a Casa Literária do Arco do Cego, editora que funcionou em Portugal entre 1799 e 1801, e pôde observar com gosto: “Vocês estão vivendo um momento de uma vibração extraordinária”. 

    Curto é doutor em Sociologia Histórica, foi professor no Instituto Universitário Europeu de Florença e lecionou como visitante em diversas universidades nos EUA e na Europa (Brown, Yale, King's College-Londres, EHESS-Paris). Seus principais interesses de investigação situam-se na área da história global, do colonialismo, do imperialismo e da escravatura. Em todos eles, autores brasileiros parecem guiá-lo. Por isso mesmo, está inconformado com o descaso dos portugueses com a História do Brasil.

    Além do preconceito, a falta de um debate sobre os contextos políticos das relações entre Brasil e Portugal seria o motivo desse descaso. Para ele, a solução seria combater a reprodução de modelos pré-construídos feita por pequenos grupos: “Eu tenho um certo horror a essa ideia de escola”. Simpático, Curto ainda discorreu sobre a noção de império e fez questão de acrescentar ao trio de importantes intelectuais brasileiros dos anos 1930 – Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr – o escritor Mário de Andrade. Para ele, este quarteto não tem paralelo em lugar algum. E avisou que não falaria sobre sua trajetória pessoal porque não acredita em “ego-história”.

    REVISTA DE HISTORIA Esta é a terceira vez que você vem ao Brasil este ano?

    DIOGO RAMADA CURTO Sim. Eu encerrei um seminário realizado no Museu de Astronomia, no Rio de Janeiro, depois estive na USP em agosto, e, desta vez, vim abrir esse colóquio sobre o Arco do Cego do D. Rodrigo de Souza Coutinho. Devo dizer que estou encantado com a historiografia brasileira. Vocês estão vivendo um momento de uma vibração extraordinária. Em primeiro lugar, vejo acontecer por aqui uma espécie de passagem de testemunho de uma geração de historiadores para outra. Estou me referindo à geração de Fernando Novais, de Evaldo Cabral de Mello, de Carlos Guilherme Mota. E tenho visto uma nova e jovem geração com enorme capacidade de resposta aos desafios, em lugares de decisão. O projeto da Brasiliana, que reúne no mesmo local o Instituto de Estudos Brasileiros e a Biblioteca Mindlin, conduzida agora pelo Pedro Puntoni, é uma coisa verdadeiramente extraordinária. Às vezes acho que ainda falta à historiografia brasileira acreditar mais em suas próprias origens e na riqueza das perspectivas já incorporadas.

    RH Poderia dar um exemplo?

    DRC Eu acho que Rubens Borba de Moraes é mais importante do que os historiadores do livro e da leitura franceses ou ingleses. O trabalho que ele fez é muito mais importante. É preciso passar exatamente por aquela base, por aquela matriz que surge nos anos 30: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Caio Prado Jr. e Mário de Andrade. Não há paralelo. Se você puser o Mário de Andrade como um estudioso dos aspectos folclóricos de uma cultura popular com raízes africanas, isso ultrapassa em termos de importância aquilo que nós podemos desenvolver – com todo respeito ao E.P. Thompson ou a todos os pesquisadores da história da cultura popular. É uma pena Portugal desconhecer a vitalidade desta historiografia.

    RH Os portugueses conhecem a História do Brasil?

    DRC Eu acho que há um esquecimento profundo da História do Brasil. Um esquecimento que passa pelo fato de obras básicas para a compreensão do Brasil, como Os Donos do Poder (1958), de Raymundo Faoro, não existirem na Biblioteca Nacional de Lisboa. Isto é precisamente um indicativo dessa ignorância. Uma ignorância crassa que é, na verdade, uma falta de respeito. Como é que os historiadores portugueses podem se relacionar com o Brasil? Eu o faço porque sou maníaco por livros. Há 20 anos tento constituir a minha Brasiliana. Acho que há outros colegas, mas são casos isolados. Agora, do ponto de vista da formação em Portugal dos historiadores interessados no Brasil, o desconhecimento é total. E poderia não ser assim. O nosso relacionamento em termos historiográficos sempre teve momentos mais ou menos fugazes.

    RH Quem seriam esses historiadores portugueses?

    DRC O livro sobre o Brasil do Oliveira Martins [O Brasil e as Colônias Portuguesas, 1880] em finais do século XIX. A edição em Portugal do João Francisco Lisboa também em finais do século XIX. Em 1922, há o Carlos Malheiro Dias, que envolve até um conjunto de historiadores portugueses. Neste mesmo período, houve a viagem do Gago Coutinho, que é bastante reconhecida em Portugal, um grande momento das relações entre os dois países. Depois, já na década de 1940, o Brasil acolheu muito bem Jaime Cortesão. Pela primeira vez, graças a um enquadramento institucional, o Cortesão teve a possibilidade de passar do brilhante ensaísmo histórico que ele praticava para uma perspectiva mais analítica, que se traduziu em três grandes coleções documentais: Pauliceia; Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, com todos os apêndices; e na publicação dos manuscritos da Coleção De Angelis. E aí o fato é inverso: estas coleções são totalmente desconhecidas em Portugal. Naquele momento, o próprio Gilberto Freyre era um autor desconhecido.

    RH Por quê?

    DRC Em Portugal, os círculos oficiais alimentavam uma perspectiva diferente. Era claramente racista, claramente eugênica, combatida precisamente por homens como o António Sérgio e o Jaime Cortesão. Não foi por acaso que o António Sérgio fez a introdução, em 1940, de O mundo que o português criou, do Freyre, não é?

    RH Mas a academia brasileira vai construir uma visão diferente de Gilberto Freyre, como um homem que estava ao lado do regime autoritário.

    DRC Isto vai acontecer posteriormente, sobretudo após a Segunda Guerra. Sobretudo a partir da guerra de independência de Angola em 61, a coisa volta a se complicar para o lado de Gilberto Freyre. Enquanto a guerra está em curso, Freyre parecia justificar o modo português de estar nos trópicos. Aí já não existe a possibilidade de os círculos intelectuais que estavam contra a guerra, ou seja, contra a presença colonial portuguesa em Angola, poderem ler o Gilberto Freyre, quer dizer, existe um divórcio claro.

    RH Então a relação entre pensadores portugueses e brasileiros é episódica?

    DRC Sim, e com conotações políticas de teor muito diferente. Eu poderia resumir esta questão em dois elementos fundamentais. O primeiro é essa fugacidade. O segundo é a falta de debate sobre os contextos políticos nos quais temos vivido, sem o qual pouco podemos compreender as diversas formas de politização da História, à direita ou à esquerda. Sem esta reflexão, é muito difícil compreendermos por que o diálogo falhou e por que tem falhado.

    RH E como um historiador como Vitorino Magalhães Godinho entra neste cenário?

    DRC Godinho é um caso à parte [Ver RHBN nº 69]. Ele foi para o Brasil na missão francesa, para substituir o próprio Fernand Braudel. Portanto, Godinho encarnava a perspectiva da “nova história”. Ele publica um artigo seminal sobre a história do Atlântico, sobre as frotas do açúcar, que traduz uma outra abertura. Mas ela também é fugaz. Digamos que a obra do Jaime Cortesão vale para a primeira metade do século XX como a obra do Godinho vale para a segunda metade. Esse aspecto é importante porque nos ajuda a cartografar, digamos assim, as tentativas mais ou menos fugazes. Godinho é admitido pela segunda vez na universidade em Portugal no final da década de 1950, mas no início da década de 60, na sequência da greve dos estudantes e do início da guerra em Angola, sua posição institucional era extremamente frágil. Ele era obrigado a trabalhar, sob contrato, para diferentes editoras lá em Portugal. Algumas delas, aliás, como a Cosmos, tiveram bastante impacto aqui no Brasil. Este cenário deixou Godinho desempregado, quer dizer, sem condições de encontrar o tal quadro institucional que lhe permitisse aprofundar suas investigações no arquivo.

    RH O que acontece depois da Revolução dos Cravos?

    DRC Depois de 74, os historiadores com uma sensibilidade mais de esquerda se afastam dos estudos sobre o império e as colônias. E esse território começa a ser ocupado precisamente por historiadores e por elementos que prolongavam, e que ainda prolongam, determinadas perspectivas claramente de direita, não é? De elogio ao colonialismo português, com sucessivas políticas de comemoração. Isto era evidente do ponto de vista editorial. Neste sentido, aliás, a História da Expansão Portuguesa (1998), também dirigida pelo meu colega e amigo Francisco Bethencourt, acabou abrindo um novo diálogo. Do ponto de vista de Portugal, o que de mais interessante saiu nesta obra se deve à capacidade de organização de Francisco Bethencourt. Também me surpreendeu a colaboração de Joaquim Romero Magalhães, grande discípulo de Godinho, que foi fundamental. Dos historiadores portugueses, ele é quem mais sabe sobre o Brasil; é outro historiador muito bem recebido no Brasil. E nós não soubemos ainda corresponder ao acolhimento de que nossos historiadores têm sido alvo deste lado do Atlântico.

    RH Por quê?

    DRC– Não sei. É uma coisa verdadeiramente tocante. É evidente que são relações que se estreitaram com a geração do Luiz Filipe de Alencastro, da Laura de Mello e Souza, da Silvia Hunold Lara ou do João Reis. São relações que passam por outros historiadores, como, por exemplo, o Ronaldo Vainfas e toda uma geração que surge em finais da década de 80. Mas o momento em que nós nos encontramos ainda é extremamente desigual. Há uma vitalidade da historiografia brasileira envolvida com a América portuguesa, com o período colonial. Essa vitalidade tem proporcionado enorme acolhimento dos historiadores portugueses. E estes, tanto do ponto de vista individual como do institucional, não têm sabido corresponder a esse mesmo acolhimento. Desconhecem a historiografia brasileira na sua profundidade. Não existe uma valorização do ensino da História do Brasil nas universidades portuguesas.

    RH Isto também não teria a ver com uma certa amarra nacionalista?

    DRC O que existe em muitos casos são pequenos grupos, pequenas clientelas, escolas historiográficas. E eu tenho um certo horror a essa ideia de escola, porque isso acaba sendo uma forma de reprodução de modelos pré-construídos. Isso existe até por efeito de uma certa censura interna. Os alunos precisam reproduzir as ideias dos mestres, que geralmente têm pouca base analítica. Em Portugal, a institucionalização é, em boa medida, responsável por isso. É assustador. Eu acho que a História tem que ser também uma prática da História vivida eticamente em liberdade.

    RH De que maneira?

    DRC Veja: eu estive tantos anos fora de Portugal que falo um pouco como um recém-chegado a um universo que eu conheço mal e em relação ao qual tenho pouco peso institucionalmente. Eu acho que a distância nos permite ver as coisas em perspectiva e sair de uma certa reprodução de determinados modelos que são pré-construídos. A História é algo que nos liberta, é um exercício de liberdade. A reprodução de modelos, a cristalização em escolas, contradiz de certa maneira este aspecto da História. Hoje posso dizer que conheço bem a obra de Sérgio Buarque, e não me parece que ele esteja restrito a uma escola. É mais essa voracidade pelo conhecimento, pelo desejo de compreender e de fazer compreender. Essa ideia de escolas, de cristalização a partir de escolas, serve para escamotear um trabalho que é mais lento, mais hesitante, mais difícil.

    RH Foi o que você tentou fazer ao estudar a noção de império português?

    DRC Sim. Temos sempre que partir da ideia de sistema colonial tal como ela foi proposta pelo Fernando Novais e em boa parte retomada com uma cronologia diferente pelo Luiz Filipe de Alencastro. É daqui que eu parto. E parto para compreender, lógico, múltiplos fatores, em especial a criação de um processo que desenvolve formas extremamente violentas de comportamento, tão bem analisadas historicamente pela Silvia Lara. Algo que no dia a dia está, por exemplo, sintetizado numa figura como a do capitão do mato. O processo da violência não é um processo histórico. É um processo que nos remete a múltiplas configurações. E essas configurações têm que ser estudadas. A grande novidade da historiografia do século XX foi romper com uma história legal, uma história política feita a partir das leis. E nós hoje vamos tentar ver as coisas como elas acontecem, como o capitão do mato age.

    RH É mais complexo então pensar em um processo imperial?

    DRC Claro. É algo que tem que partir dessa mesma base e que nos conduz necessariamente a uma história de um Estado colonial, que é sempre um Estado incapaz de controlar o território. É sempre precário. Não há nenhum Estado colonial que consiga, de uma forma totalitária, controlar um determinado território. Este controle não diz respeito somente à questão da violência, mas também à realidade do mercado. Estas são as duas temáticas que me interessam e me parecem centrais nessa tentativa de compreender o império.

    RH É possível relacionar esta lógica imperial da Época Moderna com o contexto colonial do século XX?

    DRC Aí esbarramos mais uma vez na necessidade de não reduzir o estudo dos processos a modelos interpretativos que possam ser reproduzidos. Eu acredito que o historiador que se dedica ao estudo do século XVII e às relações entre Angola e o Brasil deve utilizar as categorias macro e se interessar também pelo presente. O processo do controle da violência, por exemplo, se dá no nível cotidiano. Ora, uma das grandes iniciações que tive em relação à violência foi precisamente esse modo de teorizar a temática que encontro nos relatórios secretos enviados ao Salazar. Estou me referindo aos relatórios escritos pelo então secretário de Estado do Ultramar, que veio a ser depois ministro do Ultramar, Adriano Moreira, um dos maiores responsáveis pela difusão da ideia do luso-tropicalismo em Portugal. Sob a capa dessa mesma fachada, o que ele defendia era a concentração de poderes em um militar, em um general, acabando com todo tipo de negociação. Era a ideia do combate ao terrorismo a partir de “todos os meios possíveis”.

    RH A política do terror.

    DRC Isso. Qual é o risco da hipervalorização de uma iniciativa como esta? “Ah, a política de terror é só uma situação de conflito”. Não. Esta política de terror era algo que se dava no cotidiano. Era estrutural. Tinha a ver, por exemplo, com o sistema de endividamento que não libertava os trabalhadores. Quando ganhavam, eles já estavam na dívida, não é?

    RH Mas você veio ao Brasil tratar de um projeto político e cultural do final do século XVIII. Havia procura por literatura iluminista?

    DRC Acredito que de fato existe naquele período uma demanda por uma literatura que poderíamos chamar de iluminista. Há o iluminismo heterodoxo tal como o que foi proposto pelo Luiz Carlos Villalta. Há um iluminismo que subverte a simples tese de uma transferência de ideias da Europa para o mundo extraeuropeu. No caso do Arco do Cego, como demonstrou Caio Boschi, cerca de 40% dos autores envolvidos eram nascidos no Brasil ou viviam no Brasil, e muitos deles, a maior parte, eram mineiros. O que subverte completamente essa ideia das relações entre a metrópole e a colônia. E isso é importante para um debate acerca do lugar do estrangeirado na cultura portuguesa.

    RH Por quê?

    DRC Porque esta é uma discussão que os historiadores mais conservadores tentaram destruir. É o caso de um texto de um historiador português, Jorge Borges de Macedo, de 1973, em que ele defende que o debate dos estrangeirados em pesquisas nunca teve importância na dinâmica da cultura portuguesa. Há uma outra tradição republicana-democrata que tenta enfrentar os atrasos, prolongados por um regime fascista, de vangloriar a contribuição dos estrangeirados, ou seja, a discussão sobre o século XVIII reflete, na prática, oposições políticas do século XX. Era preciso repensar esse debate a partir das ideias de uma cultura iluminista cosmopolita.

    RH E é possível pensar a cultura e a política além das elites?

    DRC Sim. Foi o que pretendi fazer em um livro sobre a cultura política durante o tempo dos Filipes [Cultura política no tempo dos Filipes (1580-1640), de 2011]. Em primeiro lugar, contradizer uma história excessivamente centrada nas elites e que trata o povo como uma coisa que está ali e nunca decidiu nada e que nenhuma importância teve. Em segundo, retomar o tema de uma cultura política popular. Não estou dizendo que as elites não tenham importância, mas é fato que as sociedades do Antigo Regime são, antes de tudo, sociedades divididas entre pobres e ricos, nobres, senhores e camponeses. O problema está em tentar pensar precisamente os estratos intermediários. E pensar, digamos assim, os diferentes modos, as diversas hierarquias sociais. Reduzir o debate à existência de uma sociedade corporativa é uma reprodução de determinadas ideias que já foram objeto de debate nos anos 30, nomeadamente dentro dos Annales. Um debate em que Marc Bloch e Lucien Febvre se envolveram. É preciso historicizar essa discussão. E aí eu devo dizer, repare, um trabalho como os Desclassificados do Ouro, da Laura, é um trabalho exemplar, uma obra que me guia nessa perspectiva. Como venho dizendo: todos queremos ser brasileiros (risos).