A eleição de Juscelino Kubitschek (1902-1976) para a Presidência da República, em outubro de 1955, e a movimentação de bastidores para impedir sua posse, que enfim foi realizada em janeiro de 1956, mantinham alta a temperatura da política brasileira naquele tempo. Mas a sucessão presidencial não era o único assunto “quente” nas páginas dos jornais. Um filme de nome sugestivo, “Rio, 40 graus”, ganhava destaque ao ser proibido pelo chefe de polícia da então capital, Rio de Janeiro, com justificativas que iam desde a ligação de seu diretor com o comunismo até a afirmação de que o título era mentiroso, pois na cidade nunca fazia tanto calor.
Dirigido por Nelson Pereira do Santos, “Rio, 40 graus” é um marco do Cinema Novo – movimento surgido nos anos 1950, inspirado pelo neorrealismo italiano, que utilizava atores não profissionais, locações reais e temas sociais. Sua produção apresentou problemas desde o início, e só foi possível graças a um esquema em que a equipe se tornou sócia do filme, por meio do sistema de cotas. Durante as gravações, a trupe ainda dividiu um minúsculo apartamento de dois quartos – a república dos dez – em prédio conhecido por seus prostíbulos, atrás da Praça da Cruz Vermelha, no Centro do Rio, para economizar nas despesas.
Passado em um domingo de verão, o filme traz como personagens principais cinco meninos negros que vivem no Morro do Cabuçu, na Zona Norte, e vendem amendoim em pontos turísticos da cidade, como o Corcovado, o Pão de Açúcar e Copacabana. Os atores mirins foram escolhidos no próprio morro. A mistura de ficção e realidade trouxe às telas os contrastes sociais que incomodavam muitos setores da classe média, cuja cultura rejeitava a pobreza como tema de cinema.
A primeira análise da censura, em agosto de 1955, liberou o filme para maiores de 10 anos. No entanto, um mês depois, entrou em cena o chefe de polícia, coronel Geraldo de Menezes Cortes (1911-1962), que proibiu a exibição da obra em todo o país. No dia 29 de setembro, ele deu uma entrevista coletiva para justificar sua decisão: “O filme ‘Rio, 40 graus’ tem como fim a desagregação do país. Só apresenta os aspectos negativos da capital brasileira, e foi feito com tal habilidade que serve aos interesses políticos do extinto PCB (Partido Comunista Brasileiro)”.
Os jornais Última Hora e Correio da Manhã apuraram que Cortes não tinha visto o filme, e o proibira com base em denúncia anônima de que estaria associado ao Partido Comunista, banido da arena política desde 1948.
A justificativa do diretor de Censura, Lafaiette Stocker, para apoiar a decisão de Cortes era ainda mais pífia. Ele argumentava que uma cena poderia “desagradar a uma nação amiga”, referindo-se à participação de duas personagens representando turistas americanas.
A militância de Nelson Pereira dos Santos no PCB de São Paulo era conhecida, mas, ao contrário do que especulava Cortes, o partido não apoiava o filme por vê-lo como “uma aventura”.
Após a proibição do filme, começou um movimento para pedir sua liberação. Nelson e sua equipe decidiram exibir “Rio, 40 graus” a formadores de opinião. A primeira sessão privada foi feita no dia 24 de setembro, ainda antes da coletiva de Cortes. Estavam presentes vários profissionais do cinema, entre eles Anselmo Duarte (1920-2009), futuro diretor de “O pagador de promessas”.
Apoiados pela imprensa e com a opinião pública mobilizada, os produtores do filme propuseram uma segunda sessão na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), convidando autoridades e veículos de imprensa estrangeiros, como a revista Time e a rede de televisão NBC.
Mas Cortes vetou a sessão alegando “excesso de publicidade”. Para aplacar as críticas, concordou em assistir ao filme pela primeira vez, o que não ajudou muito na luta por sua liberação. A projeção só serviu para o chefe de polícia ampliar seu repertório de justificativas para a censura: o filme não tinha enredo, trazia um título mentiroso (não fazia 40 graus no Rio) e ressaltava aspectos negativos da cidade.
O Diário Carioca noticiou que, entre os personagens condenáveis mostrados no filme, Cortes identificara os malandros glorificados, as crianças exploradas por esses malandros, o pai de família cachaceiro sustentado pela mulher, o pervertido sexual, a prostituta cuja atividade era encorajada pelos pais e o político interiorano corrupto e analfabeto.
Para se contrapor às críticas após a proibição na ABI, Cortes convocaria uma entrevista coletiva, transmitida ao vivo pelas rádios. Diante dos questionamentos do jornalista Pompeu de Souza, Cortes acabou soltando a seguinte “pérola”: se fosse chefe de polícia na Itália do pós-guerra, também proibiria os filmes neorrealistas, por serem “todos comunistas”.
No dia seguinte à exibição pública frustrada, saiu um artigo do escritor Jorge Amado (1912-2001) no jornal Imprensa Popular, órgão oficial do PCB, com críticas à proibição. Amado dizia que a censura era um recurso contra os “heróis do filme”: “os vendedores de amendoim, os moradores das favelas, os jogadores de futebol, os trabalhadores, os sócios das escolas de samba”. E acrescentava que, para Cortes, o cinema deveria “ser crônica mundana com algo que prove estarmos no melhor dos mundos”.
Amado pedia também a união de todos os intelectuais para “exigir a liberação” de “Rio, 40 graus”. Com esse fim, conseguiu a adesão de artistas e intelectuais estrangeiros ao movimento, como o ator e cantor ítalo-francês Yves Montand e o poeta e roteirista francês Jacques Prévert.
O artigo de Amado foi publicado menos de uma semana antes das eleições presidenciais que deveriam encerrar um momento histórico confuso. Desde o suicídio de Getulio Vargas, em agosto de 1954, o vice Café Filho (1899-1970) governava o país em meio a um agitado cenário político. A expectativa da vitória de JK sobre Juarez Távora (1898-1975) para presidente e de João Goulart (1919-1976) para vice alimentava os rumores de um possível golpe por parte da União Democrática Nacional (UDN) e de militares insatisfeitos.
No dia da eleição, 3 de outubro, a distribuidora Columbia entrou com um mandado de segurança pela liberação do filme temendo prejuízo, já que as cópias estavam prontas, as exibições estavam agendadas e o material publicitário, na rua.
Enquanto a solução para “Rio, 40 graus” parecia estar próxima, a crise política no país chegou ao ápice no início de novembro, quando Café Filho se afastou da Presidência alegando problemas cardíacos. No dia 8, o presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz (1894-1961), assumiu o poder, mas três dias depois foi substituído pelo número um do Senado, Nereu Ramos (1888-1958), sob acusação de estar tramando para impedir a posse de Juscelino. No mesmo dia, o ministro da Guerra, general Henrique Lott (1894-1984), realizou o que foi chamado de “golpe preventivo”: uma mobilização de tropas do Exército, com a ocupação de edifícios governamentais, estações de rádio e jornais, para garantir a posse do presidente eleito.
Após o afastamento de Café Filho e de Carlos Luz da Presidência, Menezes Cortes deixou o cargo de chefe de polícia com a equipe do prefeito nomeado do Distrito Federal, Alim Pedro (1907-1975).
Após dois meses de estado de sítio, JK assumiu a Presidência, e em março de 1956 “Rio, 40 graus” finalmente estreou nos cinemas, explorando o episódio de sua proibição com o slogan “O filme que abalou o país”. Mas parte da plateia que entrava no cinema esperando ver cenas picantes saía decepcionada com um filme singelo sobre os pobres do Rio de Janeiro.
Apesar de só ter conseguido se pagar dois anos após o lançamento, “Rio, 40 graus” foi um sucesso de crítica. Ganhou os prêmios de melhor filme, melhor direção e melhor argumento no Festival do Distrito Federal de 1956. Levado para a então Tchecoslováquia por influência de Jorge Amado, recebeu o prêmio de Jovem Talento no festival de Karlovy Vary. O tema de abertura, “Eu sou o samba”, de Zé Kéti (1921-1999), foi sucesso no carnaval daquele ano.
Para Nelson Pereira dos Santos, “Rio, 40 graus” representou a defesa de seu manifesto “O problema do conteúdo no cinema brasileiro”, apresentado em 1952, no qual afirmou que o conteúdo como reflexo da vida, dos costumes e dos tipos brasileiros era fundamental para a aceitação do público.
O resto da história do diretor é bem conhecida. Com o dinheiro dos prêmios conquistados com “Rio, 40 graus”, ele produziu “Rio, Zona Norte”. Em 1963, lançou um dos filmes mais importantes do Cinema Novo, “Vidas secas”. Já o ex-chefe de polícia Menezes Cortes não viveu para ver a consagração do cineasta. Morreu em 1962, num acidente de avião, quando era deputado federal pela UDN, três anos após publicar o livro Favelas – assunto que o tornou celebridade –, propondo sua erradicação.
Alexandre Octávio R. Carvalho é pesquisador do documentário “Nelson, 40 graus” e autor da dissertação “O Instituto Nacional do Câncer e sua memória: uma contribuição ao estudo da invenção da cancerologia no Brasil” (FGV).
Saiba Mais - Bibliografia
RAMOS, Fernão (org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: O sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
SILVA, Hélio. História da República Brasileira: A novembrada, o governo Café Filho (1955), v. 15. São Paulo: Editora Três, 1975.
VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1959.
Discussões acaloradas
Alexandre Octávio R. Carvalho