Diversão: modo de usar

Fernando Gralha de Souza

  • Suntuosidade e elegância para serem admiradas: o carro vencedor na Batalha das Flores de 1907, fotografado por Augusto Malta.Enquanto a elite desfila ou aprecia a festa em palanques cobertos e elevados, a população assiste a tudo em pé, no nível do chão, separada por um cordão. Enquanto carros e personagens principais são enquadrados no centro das fotografias, o povo é retratado nas margens das fotos, de costas, testemunhando um espetáculo. A imagem indica um pouco do comportamento ditado pela cultura dominante no início do século XX: aparentar um determinado padrão de beleza e elegância era estar apto ou não a frequentar determinado espaço.

    A análise da série de fotografias de Augusto Malta sobre a Batalha das Flores, que se encontra no Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro, deixa clara a demarcação dos limites espaciais entre os ricos, “ensinando” a diversão, e os pobres, “aprendendo” a se divertir. O jornal O Comentário, de 1903, publicou:Sabem todos que essas batalhas são divertimento de ricos com o qual tem o povo a ganhar: o gosto visual do luxo em exibição e a emoção artística nos aspectos dos ornamentos das carruagens. É, portanto, um meio de educar esteticamente os rudes e os pobres”.

    A Batalha das Flores foi uma das mais interessantes medidas que visavam à criação e ao estabelecimento de novos e modernos hábitos na belle époque carioca.  Organizada pela prefeitura a partir de 1903, era uma tentativa de civilizar e divertir, um ensaio de hábitos de lazer condizentes com os ditames da sociedade moderna. Malta, como fotógrafo documentarista, contratado pela prefeitura, retratou bem essa festa, assim como as mudanças da reforma do prefeito Pereira Passos (1836-1913).

    Buscando o conforto das temperaturas mais amenas, a festa era realizada geralmente nos meses de agosto e setembro. Tratava-se, portanto, de uma alternativa ao carnaval, na qual a nata da sociedade desfilava em charretes, automóveis e embarcações luxuosamente enfeitadas com flores. Os participantes concorriam a prêmios, além de ornamentarcarros, barcos e barracas, que também eram montadas por eles. Essas atividades emprestavam um clima de quermesse ao evento.

    Nas fotos de Malta, há vários símbolos de riqueza da belle époque: as bengalas, os chapéus masculinos, os femininos encimando os longos cabelos enrodilhados, as sombrinhas e os guarda-chuvas, os vestidos compridos, amplos e cheios de saias que se sobrepõem, e os homens em seus trajes a rigor de acabamento aprimorado, comprados em grandes magazines da época, como o ParcRoyal.

    Um dos elementos que mais chamam atenção nas fotografiasé a presença constante da população menos favorecida cumprindo sempre a mesma função: assistir. Há a intenção de reproduzir as batalhas feitas em cidades europeias, como Paris, Nice e Veneza, educando e “regenerando” a população. As imagens expressam um desejo, como mostrou a revista O Malho em 1903, de dotar a população de “novas prendas morais”, constituindo-se em “verdadeiras escolas de bom gosto artístico e de alto senso esthetico promovendo concertos musicaes e festas públicas que constituem um ensinamento aos povos desta Sebastianópolis”.

    No cortejo dos carros ornamentados, os privilegiados desfilavam, enquanto a população assistia em pé, Na foto de Augusto Malta, a Batalha das Flores de 1902, no Rio de Janeiro.A Batalha das Flores não foi a única estratégia para “civilizar” o carnaval. Ainda no acervo do MIS, é possível ler instruções de como brincar nesses dias. Havia tentativas de coibir o carnaval popular, como a repressão ao entrudo – antiga forma de carnaval – e a providência mais exótica, tomada em 1909: a proibição da fantasia de índio, muito usada pelos mais pobres. Para servir de modelo, a elite carioca importou símbolos e práticas consideradas mais refinadas pelas classes dominantes, trazidas do carnaval de Veneza e da commedia dell’arte italiana, como as fantasias de dominó, pierrô, arlequim e colombina, as batalhas de confete e o desfile em automóveis pelas ruas da cidade.

    Malta fez outra série de fotos dos corsos que simboliza muito bem a ideia da ambicionada dinâmica entre modernidade, civilização e diversão. Esses desfiles tiveram início em 1º de fevereiro de 1907. As filhas do presidente da República, Afonso Pena, (1847-1909) entraram na Avenida Central, atual Rio Branco, em um carro oficial. Com as capotas arriadas, o veículo parou em frente ao edifício, de cujas janelas a família do presidente assistia à folia carnavalesca. O ato contagiou outros donos de automóveis, e em seguida vários deles começaram a transitar com seus veículos pela avenida, subindo e descendo a moderna alameda enquanto seus ocupantes jogavam confetes, serpentinas e esguichavam lança-perfume uns nos outros e nos pedestres que se aglomeravam nas calçadas para vê-los passar. Estava criado o corso.

    As fotografias que Malta fez desta nova e elegante atividade de lazer guardam interessantes semelhanças com a série Batalha das Flores. A ideia de diversão era a mesma; os donos de automóveis desfilavam fantasiados corretamente ou em trajes elegantes da moda, enquanto os mais humildes os viam passar ostentando sua condição social elevada. As fantasias dos privilegiados atendiam à estética do carnaval europeu, que incluía o pierrô, a colombina e o arlequim. Mais uma vez, a separação entre ambos é nítida, mesmo em meio às batalhas de confetes e serpentinas, sempre regadas por lança-perfumes.O automóvel emprestava ao ato uma aura incontestável de modernidade e civilização. A bordo dos elegantes, modernos e caros veículos, os grupos eram constituídos, sobretudo, de famílias, senhoras e cavalheiros que tentavam encher de graça e luxo a Avenida Central, tendo como ponto de encontro a Galeria Cruzeiro, atual Edifício Avenida Central.

    Posteriormente, o trajeto dos corsos se prolongou até a Avenida Beira-Mar, chegando ao Flamengo e a Botafogo, bairros contíguos ao Centro da cidade, margeando a Baía de Guanabara. No palco do corso, a ideia de padrão e de organização fica clara nas imagens que mostram, no quesito fantasias, os ocupantes do automóvel mantendo o tema, todos com a mesma fantasia. Nos carros iam só palhaços, ou só colombinas, ou só marinheiros,  com algumas exceções para os motoristas, que não dispensavam  chapéu,  paletó e  gravata.

    O carnaval dos corsos vistos por Malta era o de um grupo adepto de um carnaval cavalheiro e polido, que preferia a pompa às práticas que lembravam o indesejado entrudo, atrasado e incivilizado, considerado com maior potencial de macular a imagem de sociedade civilizada da belle époque carioca. Combatido por diversas leis e posturas desde o período imperial, ele tem no prefeito Pereira Passos mais um dos seus algozes. Após a posse, ele comunica que a portaria de 1891, que proibia o entrudo, seria severamente cumprida no carnaval de 1904. Paralelamente, recomendou aos diretores do ensino primário e secundário que persuadissem seus alunos a desistir da prática do entrudo, pois, além de se tratar de uma brincadeira de mau gosto, era uma atividade insalubre e que poderia causar uma série de moléstias. De fato, o carnaval de 1904 foi o primeiro, em muitos anos, sem o entrudo. Nesse ano, também a designação “sujo” passou a ser usada para indicar os fantasiados maltrapilhos. E teve início a decadência de manifestações populares, como os blocos de Zé Pereira, grupos de foliões que percorriam as ruas da cidade tocando zabumbas e tambores.

    As fotografias dos corsos e das batalhas das flores descrevem um momento em que as manifestações de diversão do carioca são forçadas à mudança. Os sinais visíveis são os tipos de vestimentas, comportamentos, equipamentos e delimitações espaciais que construíam o cenário onde os atores e espectadores dos eventos se divertiam de forma controlada. Ajustada, portanto, aos tempos modernos.

               

    Fernando Gralha de Souzaé professor das Faculdades Integradas Simonsen e autor da dissertação “Imagens da modernidade na obra de Augusto Malta – 1900/1920” (UFJF- 2008).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    BENCHIMOL, Jaime L. Pereira Passos: um Hausmann tropical. RiodeJaneiro: Biblioteca Carioca, prefeitura do Rio de Janeiro, 1990.

    CAMPOS, Fernando F. Um fotógrafo, uma cidade: Augusto Malta. Rio de Janeiro: 1987.

    CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens: a fotografia como fonte histórica (Rio de Janeiro, 1900-1930). Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

     

    Saiba Mais - Internet

    Portal Augusto Malta

    http://portalaugustomalta.rio.rj.gov.br/

    Saiba mais sobre o entrudo no nosso site: www.rhbn.com.br.