Divina ‘increnca’

Carlos Eduardo Schmidt Capela

  • Fare l’ America. Fazer a América. Este era o sonho dos italianos que aportavam em São Paulo em busca de oportunidades de trabalho. Desde que foi firmado um convênio oficial entre os dois países, em 1888, a cidade se tornou o mais procurado centro de imigração italiana no país. Concentrados principalmente nos bairros do Brás e do Bexiga, muitos deles viam seu sonho ir pelo ralo, amargando subempregos e uma sofrível condição social. Mas, pelo menos, contavam com alguém na imprensa para escrever em seu nome. E no seu dialeto todo peculiar.

    A genti vê p´ra spettoria da migraçó, dove a genti apanha una sóva tuttos dí di manhã cidinho p´ra si alivantá. Illos manda a genti lavá a gaza, dá di mangiá p´ro gaxorro, butá acqua p´ras galligna ecc. Quando illos té cavado imprego p´ra genti, a genti vá p´ra facenda garpiná o gaffé; garpina, garpina i quando vê o fí do meiz, buta uno puntapé p´ra genti i non apaga nada.

    Ma che figlio da máia. Io giá vo aparlá p´ros minhos patrizio di non vim pur aqui pur causa que ni faiz maise a Ameriga. Io per insempio, faiz quaranta quattro anno chi estó alavorando, sô barbiére, sanfoniste i giornalista i non fiz inda a Ameriga.

    A mistura vulgar do português com o italiano, chamada pela crítica de “macarrônica”, era o grande trunfo de um jornalista que começou a assinar, em outubro de 1911, uma coluna na revista semanal O Pirralho. Seu nome era Juó Bananére, na verdade um personagem criado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933). Durante mais de duas décadas, Juó marcou presença na cena cultural brasileira com textos criativos e bem-humorados, arriscando-se nos mais variados estilos literários e alcançando enorme popularidade.

    A seção “As cartas d’Abax’o Pigues” havia sido criada dois meses antes por Oswald de Andrade, também escondido atrás de um pseudônimo: Annibale Scipione. Juó Bananére herdou o espaço em seguida e ganhou vida própria, usando e abusando do seu linguajar macarrônico. 

    As inúmeras infrações a normas e convenções da linguagem escrita (tanto do português como do italiano) conferiam ao personagem um perfil nada nobre. Ele incorporava os traços do estereótipo comumente atribuído aos imigrantes daquele país: exaltação, fanfarronice, ufanismo, agressividade, exagero e dissimulação. Mas eram justamente estes modos degradados que tornavam Juó Bananére o veículo ideal para a criação satírica. O autor o utilizava, por exemplo, para desancar figuras públicas. No início da década de 1910, a ameaça de intervenção federal no estado de São Paulo devido à Campanha Civilista – contrária à candidatura presidencial do marechal Hermes da Fonseca – despertou a reação de Juó:

    Li comunico Che sto cum molta voluntá de vedé a guerre co a intervençó. Ma che si pensa quello disgraziato do Hermese da Funzega! Si pensa chi nois temos a paura do inzercito? (...) semos capais disculhambá co inzercito intirinho e també co a ‘briosa’ e també com a Republiga do Portogallo.

    Ao contrário do que muitos pensavam, o autor por trás do personagem não era descendente de imigrantes. Engenheiro formado pela Escola Politécnica da USP, Alexandre Machado dedicava-se ao jornalismo para complementar a renda. Estava alinhado com o pensamento das elites paulistanas, mas simpatizava com a vivacidade dos italianos. E deu tanta corda ao seu personagem que, com o tempo, Juó Bananére desgarrou-se do criador. Se a princípio era um imigrante genérico, ao longo dos textos surgem referências que o identificam como uma pessoa específica. Apresenta-se como “giurnalista mais universale”, filiado ao clube Palestra Itália (depois Palmeiras) e “barbiere” orgulhoso de ter entre os clientes “Uoxiton Luigi”, maneira macarrônica de chamar o político Washington Luís, futuro presidente. Fala também de sua família – com esposa e filhos que se casam, novos filhos que nascem, netos – e conta peripécias em torno desse núcleo. O cronista deixa de ser um estranho, um estrangeiro na sociedade paulista, para se tornar sujeito da narrativa. E amplia sua produção.

    Juó passa a escrever em outros veículos, e em 1915 publica o primeiro livro macarrônico lançado no Brasil: La divina increnca. Produz uma série de peças de teatro, grava dois discos recitando seus versos, colabora com o jornal A Manha, do Barão de Itararé, e em 1933 funda seu próprio periódico: Diario do Abax’o Piques.

    A vocação para a sátira e a paródia o fez transitar pelas mais diversas formas escritas: de editoriais a tratados acadêmicos, passando por textos de publicidade, notícias policiais e até telegramas de agências internacionais. Suas paródias de clássicos da literatura fizeram sucesso. Nesses textos, Juó verte para o macarrônico obras de escritores de renome, como Olavo Bilac, Machado de Assis, Edgar Allan Poe e La Fontaine. A partir do original, ele inventava referências disparatadas e situações absurdas, ultrapassando os limites do nonsense. Nem por isso perdia sua força crítica.

    Bom exemplo é a crônica “A invençó do Brasile”, em que o personagem polemiza com a versão oficial da descoberta de Pedro Álvares Cabral (ou “Pietro Caporale”). Com seu jeito aparentemente ingênuo, mas ferinamente malicioso, recria o episódio da perspectiva dos italianos simples de São Paulo, destacando a contribuição dos conterrâneos para a modernização do país. Como mote de paródia, escolhe a decantada “Canção do exílio” (1843), de Gonçalves Dias, emblema do Brasil como paraíso natural:

    Quano o Pietro Caporale disamuntó du navilio fizero una brutta manifestaçó p’ra elli i disposa livaro illo p’ra avisitá o museu i a Gademia di Diretto.
    Inda a Gademia o Dolore Brittofrango fiz un bunito discursimo i disposa arricitó aquillo sunetto do Camonhes;
    (...)
    Na migna terra tê parmeras
    Dove canta a gallinha d’angolla;
    Na migna terra tê o Vap’relli
    Che só anda di gartolla.
    O Pietro Caporale gustô molto da festa e io tambê.


    O “Vap’relli” era Spencer Vampré (1888-1964), respeitado jurista e intelectual. Ao ironizar a pompa de uma recepção na “Academia de Direito” – incluindo discurso e récita de poema –, a voz dissonante do imigrante serve como crítica à eloquência tão apreciada pelas elites. Sua narrativa totalmente fora dos padrões ajuda o leitor a se despir de preconceitos para perceber a nação – sua cultura, sua história, suas tradições – de modo distinto da versão oficial. E assim enxergar a si próprio de modo diferente.

    Juó Bananére não tinha pudores de se manifestar como se fosse um intelectual, opinando sobre os mais variados temas de interesse do momento, debatidos seriamente na imprensa. Portanto, não poderia deixar de dar sua contribuição quando veio a público a proposta de uma reforma da ortografia nacional:

    A artograffia muderna é una maniera de scrivê, chi a genti scrive uguali come dice. Per insempio: – si a genti dice Capitó, scrive Kapitó; si si dice Alengaro, si scrive Lenkaro; si si dice dice, non si dice dice, ma si dice ditche. (…) Io non gusto tambê a artograffia muderna, pur causa chi a genti non si puó indiscobrí as originia da as parola.

    O projeto de reforma ortográfica ao qual ele se refere foi proposto em 1912 por professores de escolas estaduais de São Paulo, que defendiam uma notação fonética para a grafia do português do Brasil. Embora não tenha sido oficialmente instituída, a reforma chegou a ser empregada, em algumas edições, por um respeitável órgão da imprensa de então, o jornal O Estado de S. Paulo.

    Com seu estilo rude, Juó Bananére não tinha qualificação social, moral ou intelectual para se meter em assuntos da cultura erudita. Ao desrespeitar essa interdição imposta pela “boa sociedade”, não só fazia rir como contribuía para a superação – ou, no mínimo, para a relativização – dos estereótipos aplicados aos imigrantes naquele início de século. Um feito e tanto para um mero italiano ignorante. Macarronicamente, Juó Bananére fez a sua Ameriga.

    Carlos Eduardo Schmidt Capela é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autor de Juó Bananére irrisor, irrisório (São Paulo: Nanquim/EDUSP, no prelo)
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    Saiba Mais - Bibliografia:

    ANTUNES, Benedito. Juó Bananére: As Cartas d’Abax’o Pigues. São Paulo: Ed. Unesp, 1998.

    MACHADO, Alexandre Ribeiro Marcondes. Juó Bananére – La Divina Increnca. São Paulo: Editora 34, 2001.

    Saiba Mais - Site:

    Ouça discos gravados por Juó Bananére em http://ims.uol.com.br.