Do lar para o mundo

Rafaella Bettamio e Vaneza de Azevedo

  • “Mulher é gente”, afirmou o Papa João XXIII no início dos anos 1960. Estranho pensar que há poucas décadas parecesse necessário o Papa vir a público declarar tamanha obviedade. O discurso do pontífice foi manchete de Mulher, desfigurada, um panfleto produzido em 1973 por grupos de oposição à política econômica e social da ditadura militar.

    A publicação integra a Brazil’s Popular Groups (BPG), uma coleção organizada pelo Escritório da Biblioteca do Congresso norte-americano no Rio de Janeiro e microfilmada nos Estados Unidos. A BPG reúne uma miscelânea de materiais efêmeros – como panfletos, folders, atas de assembleias e conferências – produzidos por grupos sociais do Brasil. Em 1990, a primeira fase da coleção, trazendo documentos datados entre 1966 e 1986, foi doada à Biblioteca Nacional. Desde então, a coleção continua sendo produzida anualmente para, em seguida, ser microfilmada e enfim depositada na BN – os últimos rolos de microfilmes depositados apresentam documentos recolhidos em 2011. A coleção é bem extensa: só a primeira etapa (1966-1986) concentra mais de mil documentos microfilmados, todos armazenados na Divisão de Publicações Seriadas da Biblioteca Nacional.

    Em meio ao contexto global da Guerra Fria (1945-1991), diante de um mundo dividido entre duas potências e dois sistemas econômicos antagônicos, a coleção reunida pelos Estados Unidos pode ser interpretada como uma tentativa de mapear a mobilização dos movimentos sociais no maior país da América Latina – e talvez avaliar o grau de “ameaça” interna que poderia interferir na supremacia do capitalismo na região.

    Mulher, desfiguradatranscreve trechos de artigos de jornais, livros e publicações diversas que, entre os anos de 1972 e 1973, abordavam o universo feminino. Os assuntos são variados, mas não tão ultrapassados como se poderia supor. Abrangem desde a crescente inserção da mulher no mercado de trabalho (e naquele tempo a regulamentação da profissão de empregada doméstica já era alvo de debates) até o alto índice de denúncias de violência familiar e de casos de estupro, relacionando-os à “recente libertação sexual feminina”. 

    Apesar de não se ter informações sobre sua real origem, o documento é classificado pela Library of Congresscomo panfleto. De fato, ele apresenta características típicas desse material: expõe suas ideias de forma didática e é direcionado a um público específico. As mulheres são, ao mesmo tempo, o público-alvo e o assunto. Entre as pautas estão alguns elementos do processo de emancipação feminina, como no trecho transcrito do jornal alternativo A Cigarra, de 1972: “Durante décadas prevaleceu ‘a superioridade normal da energia física e espiritual do homem’, como diz Weber em seu livro ‘Economia e Sociedade’. Condicionados por essa ‘superioridade’ masculina, homem e mulher chegaram à Era Industrial. Esta trouxe consigo uma revolução cultural, que foi colocada ao alcance dos dois sexos, através da tecnologia e da comunicação de massa. Preconceitos e condicionamentos começaram a ser eliminados”.

    Outros textos, no entanto, discutem a postura ainda submissa das mulheres em relação aos homens. “Um garotão do sexo masculino, a partir, por exemplo, de 15-16 anos, começa a sentir-se muito mais livre que sua própria mãe. Começa a tratá-la com ares paternalistas com o que se comprazem, evidentemente felizes, as mães, o que nos leva a crer que estão satisfeitas com sua menoridade dourada, e a julgar que é delas e não dos homens que procede a resistência à maioridade sociológica da mulher”, sugere a obra Mulher Presença, de Lauro Oliveira Lima (1970), também transcrita pelo panfleto.

    Enquanto fonte para a pesquisa histórica, Mulher, desfigurada pode ser um bom ponto de partida para a discussão de um período muito significativo para a mulher brasileira de forma geral. Parece consensual que aquele foi um tempo de transformações culturais, com a saída de muitas mulheres dos limites circunscritos ao espaço privado, destacando-se no mercado de trabalho, na mídia, e reivindicando politicamente o direito de serem sujeitos autônomos e de faces múltiplas: mãe, esposa, cidadã, dona de casa, trabalhadora, chefe de família.

    Os “anos de chumbo” da ditadura militar foram também os da primeira grande leva de anticoncepcionais no Brasil; de Eva Wilma premiada pela TV Tupi por seu papel na primeira versão de Mulheres de Areia; de Malu Mulher e a reafirmação da maioridade social feminina. A “mulher desfigurada” estava se reconfigurando.