Quem passa hoje pela Avenida Francisco Bicalho, no Centro do Rio de Janeiro, não imagina que um enorme manguezal tomava conta da região até meados do século XIX. O Saco de São Diogo – como era chamado o mangue – se estendia da Praça Onze à Baía de Guanabara, e seu aterramento foi uma das mais importantes obras de saneamento do Império. Isso porque o pântano era considerado por muitos um grande foco de doenças. Após a construção do Canal do Mangue, o trecho do bairro da Cidade Nova mudou muito. Já foi local de passeio e até cartão-postal da cidade, mas, nas últimas décadas, ficou abandonado e foi se degradando em consequência do descaso do poder público, que prioriza em seus investimentos áreas nobres da cidade, como a Zona Sul e a Barra da Tijuca. Em breve, os arredores da Francisco Bicalho mudarão novamente: sobre os escombros de construções antigas nascerá um novo bairro. No entanto, resta saber se o que será feito desta vez repetirá os mesmos erros do passado ou se de fato beneficiará a população local.
O novo projeto, batizado de Porto Olímpico, integra a ação de revitalização da zona portuária denominada Porto Maravilha, iniciada em 2009 pela Prefeitura do Rio de Janeiro e que pretende reestruturar os cinco milhões de metros quadrados cercados pelas Avenidas Presidente Vargas, Rodrigues Alves, Rio Branco e Francisco Bicalho. Cabe especificamente ao Porto Olímpico redefinir 850 mil metros quadrados de um trecho da Francisco Bicalho, que vai da Rodoviária à Estação Leopoldina. A expectativa dos arquitetos envolvidos é que o entorno dessa parte do canal ganhe uma Vila Olímpica com padrão internacional, que incluirá a construção de edifícios residenciais, um hotel de luxo de 45 andares, uma zona de passeio público a 15 metros do solo, centros de convenções e novas ruas para melhorar o trânsito. Ainda não se sabe o que de fato sairá do papel, já que o projeto arquitetônico foi resultado de um concurso em que o primeiro colocado obteria da prefeitura o compromisso de executar 40% do que está previsto.
Alberto Gomes Silva, assessor especial da presidência da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), diz que tanto o projeto do Porto Maravilha quanto o do Porto Olímpico querem “resgatar a região como uma área histórica”, tentando levar para os bairros abrangidos uma concepção de “repovoamento do Centro”. Segundo ele, vivem atualmente na região portuária cerca de 28 mil pessoas, e a expectativa é que o número aumente para 100 mil após as obras. O que não está claro é se os antigos moradores continuarão na região após uma possível especulação imobiliária devido às melhorias urbanas, como aconteceu nas reformas ao longo do século XX. Uma coisa é certa: tudo o que for construído para o megaevento internacional só será disponibilizado para uso público a partir de seu término, em 2017. Quanto aos bilhões de reais que serão gastos nas obras, ainda não há uma previsão. Só se sabe que o antigo cartão-postal não se parecerá em nada com o que já foi um dia.
Apesar da postura otimista adotada pelo governo com relação aos megaeventos que o Rio de Janeiro sediará nos próximos anos, como a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016), o estado é de atenção para os intelectuais da área. Para o arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti, professor da UFF, as obras da zona portuária podem repetir “o mesmo erro” que ocorreu com a construção da Avenida Presidente Vargas na década de 1940. “Essa intervenção pontual foi desastrosa, não pensou o conjunto da cidade. Naquela área onde hoje é a rua, existiam patrimônios importantes do período colonial”. Além da perda do patrimônio material, Cavalcanti indica como outro grave problema uma possível valorização da região e a expulsão dos antigos moradores para áreas mais distantes e ainda mais desprovidas de infraestrutura adequada oferecida pelo Estado. “Geralmente, a indenização que se paga a essas pessoas é mínima e elas não conseguem mais comprar uma casa na mesma área porque o terreno valorizou. Isso gera um deslocamento deles para zonas periféricas ou favelas. O Estado é um dos grandes geradores de favelados”, acrescenta.
Uma das vezes em que esse deslocamento aconteceu no Rio de Janeiro foi no início do século XX, com as conhecidas reformas urbanas e sanitárias do governo Rodrigues Alves, durante a gestão do prefeito Pereira Passos. Entre 1902 e 1910, a capital da República passou de uma cidade com péssimas condições de higiene à Paris dos trópicos e uma das consequências imediatas disso foi a remoção agressiva das pessoas que moravam nas áreas centrais para a periferia. Nesse contexto, a Cidade Nova serviu de abrigo para os novos sem-teto, já que o baixo custo de vida aliava-se ao fato de estar situada próxima às suas áreas de trabalho. Nessa época, o bairro ainda ganhou sua segunda grande reforma, que transformou o Canal do Mangue no novo cartão postal da cidade. Ali foi construído um bucólico boulevard, uma área de passeio, que ligava o Porto reformado ao interior da cidade, por onde transitavam senhores de cartola e senhoritas de vestidos longos e sombrinhas. Além da mudança estética, uma nova canalização do mangue foi realizada e diminuiu o problema das enchentes na região.
O arquiteto e urbanista Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, professor da PUC-Rio, comenta que as reformas do Canal do Mangue na primeira década do século XX não valorizaram a região, que permaneceu “ocupada por gente pobre”. Ele ainda situa a reforma num contexto em que a cidade vivia seu apogeu, selado com a inauguração do novo Porto do Rio, em 1910.
A remoção arbitrária dos moradores de seus bairros tradicionais gera outro grande problema: o esvaziamento cultural dessas áreas. Antônio Edmilson Rodrigues, professor de História na PUC-Rio, diz que todo grande processo urbanístico tem dois lados. Um deles é positivo: no caso dos projetos na zona portuária, “as reformas tenderão a ampliar a visibilidade da região central da cidade e, com isso, elevar as condições de observação, de vivência e de uso dessas tradições como o aumento das visitas aos centros históricos e culturais”. Por outro lado, ele pondera: “Há a possibilidade das tradições culturais serem colocadas num segundo plano ou de serem eliminadas pelo avanço das reformas urbanas”.
Foi, aliás, na região da Praça Onze onde nasceu, no final do século XIX, o samba carioca. Toda essa área do entorno do canal era de uma grande atividade cultural, povoada por ex-escravos, trabalhadores e imigrantes, que implementaram suas atividades de diversão conforme a cidade e o comércio se expandiam. “Cresceram também as festas e as atividades musicais. Com a fundação da casa de samba Cananga do Japão, tornaram-se referências as casas de várias mulheres como a Tia Ciata”, explica Edmilson acrescentando que as reuniões criaram para o bairro uma identidade, chamada de Pequena África.
A falta de interesse do governo pela Cidade Nova fez com que, sobretudo nos últimos 50 anos, ela se tornasse degradada e foco de violência urbana: muros pichados, lixo espalhado e moradores de rua compõem uma paisagem que não tem nada de cartão postal. Para a urbanista Margareth da Silva Pereira, pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, o Canal do Mangue recebeu seu xeque mate após a construção dos viadutos da Perimetral e o Paulo de Frontin. “Nos últimos anos houve uma expansão irresponsável da cidade, que, baseada no automóvel, produziu grandes vazios urbanos”. Ela considera os planos do Porto Olímpico, em certa forma, benéficos para a zona portuária, que pode ganhar importantes obras de infraestrutura em transportes, saneamento básico e iluminação, há muito não realizadas pelo governo nessa região. Mas opina que os projetos precisam ser discutidos pela população, já que a cidade é uma construção coletiva.
Quando a “revitalização” é decidida apenas pelo governo e pelos grandes investidores, pode cair como uma bomba, causando verdadeiros abalos que, no futuro, serão dificilmente corrigidos. As consequências são agravadas pela lentidão de ação do poder público, piorada com a troca de governo e de seus respectivos interesses a cada quatro anos. As constantes mudanças no entorno do Canal do Mangue reforçam isso. Apesar de tudo o que foi feito, o trecho caiu na obsolescência, permanecendo como uma região de passagem e degradada.
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Do pântano ao asfalto
Alice Melo