- Sem propósito, sem planejamento e sem recursos. Relator da Comissão de Engenheiros na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), Visconde de Taunay lamentou em suas Memórias a batalha que tirou a vida de inúmeros jovens brasileiros em terras paraguaias. Mas a frente de combate trouxe ao menos um saldo positivo: foi na expedição ao sul do Mato Grosso que Taunay colheu a matéria-prima que permeou sua extensa produção literária. A viagem e a experiência do confronto marcaram profundamente sua trajetória pessoal e seu desenvolvimento como escritor.
Antes de ser agraciado com o nobre título de Visconde, ele atendia pelo nome de Alfredo D’Escragnolle Taunay. Nascido em 1843 no Rio de Janeiro, centro do poder monárquico, descendia de uma importante família de artistas franceses que veio para o Brasil na época de D. João VI e colaborou com o projeto de modernização da cidade. Seu avô, Nicolas Taunay, era um famoso pintor de paisagens europeias, e à frente da “missão artística francesa” colocou de pé a Escola de Belas Artes. No reinado de D. Pedro II, esta e outras instituições culturais receberam incentivos pessoais do imperador, que chegou a estudar pintura com o pai de Alfredo, o também pintor de paisagens Félix-Émile Taunay.
Formado nesse ambiente de refinamento estético e fortes relações sociais, Taunay pouco tinha a ver com a carreira militar. Mesmo assim, vestiu a farda e atravessou os pantanais do Mato Grosso numa época em que havia mais lendas do que conhecimento sobre a geografia da região. As águas e as doenças ameaçavam tragar os homens, sob os efeitos devastadores do clima local. A árdua tarefa rendeu-lhe notoriedade, alguns cargos públicos de relevância e um farto material para o conjunto de sua produção.As experiências foram transformadoras para o jovem Taunay. Durante a campanha militar de Laguna, escreveu o Relatório Geral (1867), uma espécie de diário de viagem em que registrou os acontecimentos da guerra e captou momentos que oscilam entre a agonia do sofrimento humano e o êxtase perante a beleza da paisagem. Seus textos do período são um exercício estético fruto da experiência-limite do escritor, tomado pelo clima de tensão e pelas marcas deixadas com a dolorosa vivência do conflito.Nos arredores de Aquidauana, ele conheceu, aos 22 anos, a índia Antônia, cujas apaixonadas lembranças estão registradas nas Memórias (1948) e representadas no conto Ierecê a Guaná (2000). No Relatório Geral, a presença das notas de margem revela diferenças de estilo: enquanto no corpo do texto as descrições informam objetivamente as dificuldades enfrentadas nos caminhos, os comentários de pé de página ampliam o relato em tom menos formal e tomado pelo sentimento da paisagem: “O espetáculo que se goza do alto da serra [...] é uma das mais belas paisagens que é dado contemplar-se. A vista descortina imensa perspectiva, dominando as dobras da serrania”.Muitas dessas notas reaparecem em outros escritos, servindo de matéria-prima para suas primeiras obras: Cenas de viagem, de 1867, e A Retirada da Laguna, publicada no ano seguinte. Estão, portanto, na origem da ficção do escritor, como se vê em Inocência, de 1872: “Corta extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima Província de Mato Grosso, a estrada que da vila de Santana do Paranaíba vai ter ao sítio abandonado de Camapuã [...] depois, porém, rareiam as casas, mais e mais, e caminha-se largas horas, dias inteiros sem ver morada nem gente até o retiro de João Pereira, guarda avançada daquelas solidões”.Das anotações de campo à ficção, delineiam-se os quadros da natureza, as personagens e a índole do sertanejo. As singularidades do interior brasileiro se transformam em elementos estéticos significativos para a compreensão do sentido de nação. O fato de dedicar parte de sua obra ao Mato Grosso não significa que sua produção tenha caráter regional. Em publicações futuras – como Histórias Brasileiras (1874), Céus e terras do Brasil (1882), Trechos da minha vida (1890) e A cidade do ouro e das ruínas (1891) – confirma-se uma obra construída a partir de experiências vivenciadas no sertão brasileiro, mas que guarda, em seu conjunto, um projeto literário que deveria contribuir para pensar o Brasil a partir do interior mais distante e selvagem.As imagens desenhadas, tanto no Relatório quanto nos textos ficcionais, dão visibilidade a uma região até então pouco conhecida dos próprios brasileiros e reconhece Mato Grosso sob dupla percepção: primeiramente, enquanto região alagada e quase impenetrável – pelas experiências no aquático Pantanal; depois, como sertão bruto, pouco habitado, insalubre e com uma gente indolente e sem cultura. A maneira de se referir ao sertanejo mantém os preconceitos que se fixaram ao longo do tempo, ou um lugar a ser civilizado.O percurso da força expedicionária, a transposição dos pantanais em meio à lama visguenta que sepultou muita gente, as doenças e as mortes, tudo isso representa um sentimento heroico do soldado brasileiro, presente tanto nos momentos da caminhada eufórica em direção ao cenário da guerra, como no retorno forçado em um meio hostil. O leitor, acostumado ao tom oficial do relato, é absorvido, nas notas de rodapé, pelo espetáculo dramático e de proximidade com a natureza.Quando Taunay registra o cenário da guerra em sua primeira publicação oficial, comporta-se como relator do diário. Mas nas outras duas obras desse período – Cenas de viagem e A retirada da Laguna – ao recriar os fatos, transforma-se em ficcionista. Nelas, há o esboço de um projeto literário voltado não só para a necessidade de cumprir a tarefa a que estava destinado, mas para construir uma imagem plástica do interior brasileiro.
Nessa proliferação de escritos, Alfredo Taunay revisita a memória, recria suas impressões e relê seu contexto. Privilegia a construção de uma imagem de Brasil com pouca renovação do tema, mas que recompõe quadros de um tempo, de um lugar e de um ideário de época que foi o período de transição entre o Romantismo e o Realismo, do qual Taunay é um dos representantes na história literária. É um trabalho de reelaboração da memória e dos dados coletados. Este exercício liga-se ao que a obra traz de paisagem brasileira, e também ao modo como o escritor reorienta a visão da natureza no século XIX e registra a contemplação romântica como expressão subjugada pela emoção estética.Com a força da expressão descritiva, Taunay exerceu um papel preponderante nas rediscussões do Romantismo brasileiro e no conceito de paisagem. Enquanto artista-escritor, tem a capacidade de reproduzir o pitoresco das cenas que narra pela forma como delineia a geografia local. A narrativa é um convite à leitura pelo sabor pictórico e pela lenta descrição da vida sertaneja.Assim, sem um projeto de viagem, movido apenas pelo cumprimento do dever, pela aventura, pela busca do conhecimento e, possivelmente, pelo desejo de fama, Taunay surge como um viajante singular: um jovem militar que observa o mundo visitado com sentimento de artista. Afirma os temas locais e constrói cenas que formatam uma região, assim como circularam no mundo os ícones registrados por outros viajantes, desde o século XVI, contribuindo para a reinvenção da imagem da América.No caso de Taunay, os cenários de Mato Grosso expostos pelo olhar do artista-viajante faz com que continuemos, ainda hoje, a nos interessar não só pelo tema abordado, mas também por sua obra.Olga Maria Castrillon-Mendes é professora da Universidade do Estado de Mato Grosso e autora de Taunay viajante: construção imagética de Mato Grosso (Ed. da UFMT, 2013).Saiba mais:ALAMBERT, Francisco & ALMEIDA, Angela Mendes et al. (orgs.). De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro: Faperj/ Mauad, 2001.MARETTI, Lídia Lichtscheidl. O Visconde de Taunay e os fios da memória. São Paulo: Ed. Unesp, 2006.SOUZA, Gilei Martins de. “Incursões de fronteira: as contradições da modernização brasileira no sertão mato-grossense segundo o Visconde de Taunay”. Dissertação de Mestrado em Estudos da Linguagem, UFMT, 2011.WIMMER, Norma. “Marcas francesas na obra do Visconde de Taunay”. Tese de Doutorado em Letras, FFLCH/USP, 1992.
Do relatório se fez ficção
Olga Maria Castrillon-Mendes