Dos pés à cabeça

Murilo Sebe Bon Meihy

  • Pode parecer mais uma daquelas histórias exóticas que acabam transformando um ato mórbido em evento corriqueiro. Mas o médico, psicanalista, psicólogo, folclorista e antropólogo Arthur Ramos usava em seus estudos, na década de 1930, um método de pesquisa que hoje pode parecer um tanto estranho: ele se servia de técnicas da Antropologia Criminal. Este conhecimento, desenvolvido por Cesare Lombroso – médico italiano influente nos estudos clínicos na primeira metade do século XX –, se baseava na idéia de que havia um caráter biológico no comportamento dos criminosos.

    O preceito era o seguinte: a partir da análise física de um cadáver, chegava-se a uma dedução evolucionista, que considerava ser possível encontrar no corpo sinais trazidos pela hereditariedade. Essas marcas indicariam resquícios de elementos primitivos da evolução humana, que acabariam afetando a conduta dos indivíduos. Dessa maneira, os médicos legistas poderiam identificar pelas medidas de partes do corpo, como o crânio e a mandíbula, tendências consideradas anti-sociais, fazendo com que o criminoso fosse visto como um sujeito que retorna à condição de selvagem, marcante nos primórdios da humanidade.

    Arthur Ramos foi um defensor das técnicas de Lombroso em suas pesquisas sobre as características físicas e sociais do povo brasileiro. Em seu arquivo pessoal, comprado pela Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional em 1956, encontram-se cerca de cinco mil documentos com estudos, fotografias, recortes de jornais e rascunhos de pesquisas. Assim, é possível observar o vínculo de Arthur Ramos com as técnicas da Antropologia Criminal. Sua atuação nas áreas de medicina legal, psiquiatria e antropologia foi fartamente registrada, fato que transforma o discípulo de Nina Rodrigues em um dos maiores estudiosos da composição racial da população brasileira. 

    Um dos documentos que ressaltam o envolvimento de Ramos com as pesquisas de antropometria (técnica utilizada para medir o corpo humano ou suas partes) é um gráfico de estatura e índice cefálico de 539 cadáveres. O quadro descreve a variação da altura de homens e mulheres de diferentes raças, o que contribuiu para que o legista pudesse elaborar um perfil físico dos corpos estudados. Este tipo de análise privilegiou o papel do sujeito na construção do saber sobre a composição racial do Brasil, traçando um panorama das peculiaridades de cada raça por meio de medidas corporais que,  acreditava-se, indicavam padrões de inteligência e comportamento.

  • Transformando o Instituto Médico Legal em fonte de pesquisa, o alagoano Arthur Ramos de Araújo Pereira avaliou casos criminais ou de conduta social estranha noticiados pela imprensa e que foram por ele autopsiados. A coleção mencionada de documentos manuscritos da Biblioteca Nacional inclui uma pasta com recortes de jornais sobre suicídios no período de 1928 a 1934 na Bahia e no Rio de Janeiro. Este material acabou dando origem a um conjunto de anotações, sugerindo que, além dos laudos das dissecações dos cadáveres, outros documentos compunham seus estudos sobre o tema. Ao lado desse fúnebre acervo encontram-se cartas de suicidas e fotografias sobre os casos pesquisados, o que torna ainda mais curiosa a ressonância do método de investigação utilizado por Arthur Ramos.

    Dentre os elementos que podem ser encontrados nessa coleção estão as correspondências que o antropólogo trocou com personalidades científicas de sua época. O envio de seus trabalhos de psicanálise aos principais estudiosos do tema fez de Arthur Ramos um intelectual conhecido e lido em todo o mundo. Algumas dessas cartas encontradas na Biblioteca Nacional trazem cumprimentos de autores renomados como Eugen Bleuler, psiquiatra suíço conhecido por nomear a esquizofrenia e o autismo, e Sigmund Freud, fundador da psicanálise.

    Os estudos de Arthur Ramos não estariam completos sem o denso material complementar produzido pelas suas pesquisas e que se encontram disponíveis para consulta. Cada pequena anotação contida nos rascunhos de seus trabalhos; cada acanhado comentário presente em seu acervo revela como o pensamento científico brasileiro depende dos cadáveres anônimos investigados pelo olhar minucioso de um pesquisador atento à sociedade que vivia. 

    (Por Murilo Sebe Bon Meihy)