Ecos da Avenida Ipiranga

Stella Elia Martins Santiago

  • No corre-corre do centro da cidade de São Paulo, muitas pessoas que passam pelo Condomínio Edifício Vila Normanda talvez não prestem atenção em suas paredes. Mas as galerias do andar térreo preservam uma obra de arte em murais de quase dois mil metros quadrados. O trabalho parece ecoar, com suas formas geométricas, o ritmo e a agitação do centro da cidade. Situado no número 318 da Avenida Ipiranga, com vizinhos famosos e imponentes – como a Praça da República e os edifícios Itália e Copan –, o monumento arquitetônico escondido em uma pequena vila é um legítimo exemplo da arte concreta paulista.

     Criado pelo artista plástico e designer Antonio Maluf (1926-2005), o trabalho foi executado em 1964, por encomenda do arquiteto Lauro Costa Lima (1917-2006). O prédio foi projetado para abrigar centros comerciais, com uma galeria de lojas no térreo, e acabou recebendo o nome de “Vila Normanda”: ali havia uma série de casas residenciais em estilo normando, que foram derrubadas nos anos 1960 para dar lugar ao arranha-céu.

    Os murais foram concebidos com base na obra “Subdivisões de um retângulo em torno dos eixos ortogonais e diagonais” (1958), do próprio Maluf. O designer fundamentou a criação nos princípios da arte concreta, uma tendência que invadiu o meio artístico brasileiro e se desenvolveu principalmente na década de 1950, quando surgiram artistas que propunham uma nova linguagem visual abstrata e geométrica, e deixaram de lado a arte figurativa até então predominante.

    A chegada da abstração contaminou o meio artístico, e as Bienais de São Paulo, realizadas pelo Museu de Arte Moderna a partir de 1951, representaram o ápice do desejo de modernização. Essa tendência já vinha se formando também com a criação de novos museus: o Museu de Arte de São Paulo (1947), o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1948) e o Museu de Arte Moderna de São Paulo (1949). Estes lugares hospedavam exposições internacionais e nacionais, divulgavam escolas e cursos relacionados à arte e ainda abriam espaço para a divulgação dos trabalhos das novas gerações.

    O progresso econômico fazia necessária a formação de novos profissionais que dominassem as linguagens visuais modernas, regidas pela racionalidade das formas geométricas, mais apropriadas à reprodução em série dos meios industriais. Para isso, o Masp criou, em 1951, o Instituto de Arte Contemporânea, que por três anos ofereceu o curso de Desenho Industrial. Antonio Maluf frequentou o instituto por seis meses, e lá deu início à sua formação como designer, ao mesmo tempo em que sua produção artística começava a se espelhar nas ideias do concretismo. Um de seus primeiros trabalhos baseados na nova linguagem, ainda como estudante, acabou se consagrando vencedor do concurso de cartazes da I Bienal de Arte de São Paulo (1951), o que deu repercussão internacional à sua arte.

    Maluf foi contemporâneo dos concretistas Waldemar Cordeiro, Alexandre Wollner, Geraldo de Barros, Lothar Charoux, Luiz Sacilotto, Judith Lauand e Mauricio Nogueira Lima. Chegou a compartilhar ideias com alguns deles, mas jamais aderiu ao grupo paulista. Preferiu manter uma trajetória independente, fiel aos propósitos da arte concreta, mesmo depois que a maioria dos artistas passou a buscar novos caminhos, a partir da década de 1960.

    Para compreender o trabalho de Maluf, é necessário, antes de tudo, entender a relação entre o concretismo e o abstracionismo geométrico. A expressão “arte concreta” foi criada em 1930, pelo artista holandês Theo Van Doesburg (1883-1931), para definir a arte fundada em elementos plásticos que não eram abstraídos da natureza, e sim de formas geométricas e cores. Mas o “concretismo” ganhou novas especificidades em 1936, quando o suíço Max Bill (1908-1994) pegou emprestado o termo e expandiu suas propostas iniciais, definindo como arte concreta as obras que se valiam de uma linguagem visual baseada em princípios matemáticos, como métodos de estruturação do espaço (grelhas e divisões do plano) e leis de desenvolvimento (progressões geométricas, proporções e estudos das formas). Seu talento se voltou para várias atividades, como as de pintor, escultor, designer, arquiteto e professor. Ao lado de outros artistas, desenvolveu pesquisas relacionadas à percepção visual e defendeu a proposta de uma arte integrada à sociedade por meio da participação dos artífices nos processos industriais.

    As ideias de Bill começaram a se difundir no Brasil quando o Masp organizou uma exposição de suas obras em 1950. No ano seguinte, o suíço foi premiado na I Bienal de Arte de São Paulo, e em 1953 ele participou do evento. Seu trabalho influenciou toda a produção artística de Antonio Maluf, que daí em diante ficou marcada pela pesquisa das formas e das cores, e acabou sendo submetida a estruturas que organizavam o espaço da composição. Estas norteavam o desenvolvimento de cada obra, definiam o ritmo, a regularidade e o alinhamento dos elementos visuais, linhas, pontos e planos, assim como o uso das cores.

    O conjunto de murais criados para revestir a galeria no térreo dos blocos A e B do Vila Normanda representa um desdobramento dessas ideias. Maluf usou como ponto de partida o estudo da forma retangular dos azulejos que seriam empregados na execução do trabalho – que mediam 15 x 30 cm. Depois que dividiu o retângulo usando linhas diagonais, ele explorou as possibilidades dos triângulos derivados e projetou três matrizes, que serviram para a produção em série dos azulejos pré-moldados industrialmente.

    A partir dessas matrizes, e usando as cores cinza, azul e branco, o artista criou doze módulos que foram utilizados na concepção do mural. Diferentes combinações de azulejos geraram inúmeras variações nas composições que podem ser vistas nas paredes do condomínio. Os desenhos projetados para cada espaço do prédio foram definidos em plantas elaboradas manualmente pelo próprio artista: esboços que serviram para orientar a colocação dos azulejos. 

    Com isso, as paredes acabaram sendo revestidas com figuras geométricas que não se repetem, deixando evidente a proposta do artista: alcançar combinações infinitas a partir de elementos limitados, explorando o potencial dos desdobramentos do módulo geométrico dentro de um único trabalho. Ao caminhar diante da obra, a sensação que se tem é de que os desenhos se movimentam e criam ritmos que acompanham o percurso do observador.

    Localizada numa região em que a circulação de pessoas é intensa, essa peça de arte concreta é usufruída, vivida e percebida no dia a dia paulistano. Integrados à arquitetura do edifício, os murais podem ser vislumbrados pelos usuários do condomínio de escritórios, pelos frequentadores dos estabelecimentos comerciais que têm acesso à galeria, por pedestres em diferentes pontos da calçada e também por aqueles que passam de carro pela Rua Major Sertório e pela Avenida Ipiranga.

    Os murais de azulejos nas fachadas de prédios reverenciam uma tradição arquitetônica herdada de portugueses e espanhóis, mas são vários os exemplos em que pastilhas de vidro, pinturas nas paredes e painéis foram usados para, de certa forma, facilitar o acesso do público às artes plásticas. A colaboração entre as artes plásticas e a arquitetura ocorreu em diversas fases da história da arte brasileira. Mas foi no século XX que essa relação chegou ao auge, mais precisamente quando artistas como Candido Portinari, Di Cavalcanti, Rossi Osir, Athos Bulcão e Burle Marx foram chamados para colaborar em projetos arquitetônicos de Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Rino Levi e Vilanova Artigas, entre muitos outros.

    Juntos, Antonio Maluf e Lauro Costa Lima proporcionaram uma interação entre a arte e a própria cidade. O trabalho do artista se incorporou ao projeto arquitetônico e ao cotidiano das pessoas, modificando o ritual de contemplação destinado às artes plásticas em geral. Tamanha visibilidade gera tanta intimidade entre público e obra que o painel acaba se tornando tão anônimo quanto seus apreciadores. Visitar o edifício no centro de São Paulo propicia um mergulho na arte concreta e em algumas das ideias que marcaram a estética de uma época. Quem já conhece essa “instalação permanente”, mas nunca percebeu a importância e as especificidades da obra de Antonio Maluf, pode repetir a visita com um novo olhar.

     

    Stella Elia Martins Santiagoé professora de Artes da rede estadual de ensino de São Paulo e autora da dissertação “Antonio Maluf: arte concreta na arquitetura moderna paulista (1960/70)” (USP, 2009).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    AMARAL, Aracy. Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950-1962). Rio de Janeiro/São Paulo: MEC/Funarte, 1977.

    ARRUDA, M. Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio século XX. Bauru: Edusc, 2001.

    BANDEIRA, João. Arte concreta paulista. São Paulo: Cosac & Naify/Centro Universitário Maria Antonia da USP, 2002.

    BARROS, Regina Teixeira. Antonio Maluf.São Paulo: Cosac & Naify/Centro Universitário Maria Antonia da USP, 2002.