Os brasileiros podem não conhecer muito o Benim, mas o pequeno país de pouco mais de 8 milhões de habitantes, na África Ocidental, tem enorme importância na história do nosso país. Foi do porto da cidade costeira de Uidá que milhares de africanos foram enviados para o Brasil. Unidos pelo tráfico transatlântico, os dois países compartilham uma história que, segundo o professor beninense Elisée Soumonni, “dificilmente pode ser contada de forma isolada”.
Mais de dez anos depois da inclusão do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial, o interesse de alunos e acadêmicos só cresce. Algo que Soumonni diz ser natural, afinal “o Brasil é um grande país, e não é possível formar um especialista tão rapidamente”. O professor, no entanto, adverte para a necessidade de encontrarmos nosso próprio caminho. “É preciso que os estudantes aqui encontrem suas próprias razões para estudar, descobrir como e o que vão abordar da realidade brasileira”.Em visita ao Rio de Janeiro para um seminário, Elisée Soumonni conversou com a equipe da Revista de História sobre suas pesquisas, o interesse pela diáspora africana, projetos de pesquisa e sua formação particular. Ele contou que, para fazer seu doutorado, optou pela Universidade de Ile-Ifé, na Nigéria, em vez de retornar à França, onde fizera sua graduação – pois lá, nas suas próprias palavras, “não aprenderia nada de novo”.RH – O que o levou a estudar o Brasil?ES – Era quase natural. Há uma ligação muito forte entre o Benim e o Brasil. Os retornados me interessavam muito. Eu queria saber o porquê da origem dos seus nomes. Eles voltavam para o Daomé com sobrenome Pereira, Oliveira, Silva... enfim, nomes que tinham origem no Brasil. Esses afro-brasileiros mantiveram, na sua maioria, o nome dos antigos senhores e com isso um certo status de classe. Esses senhores, claro, não eram seus pais biológicos, mas guardavam muitas relações com suas famílias. Por isso os arquivos da Bahia são muito importantes: eles guardam fontes importantes para reconstruir o passado desses retornados e a vida que tinham lá. A ligação era imensa.
RH – Os países foram unidos pelo comércio transatlântico.
ES – Sim. Posso dar um exemplo. Em Uidá há um forte português, hoje transformado em museu, que abrigou Francisco Félix de Souza, traficante e comerciante de escravos. Não era um retornado, mas um brasileiro que se estabeleceu lá por muito tempo. Ele teve muitos filhos, ninguém, nem ele mesmo, sabe ao certo quantos. Seus muitos descendentes são hoje parte de uma elite no país. Ele continuou no tráfico de escravos durante o século XIX e é importante lembrar que, como ele [que chegou a ser escrivão e contador da fortaleza], os diretores dos fortes portugueses eram nomeados em Salvador da Bahia. O diretor não vinha de Lisboa. Era o Brasil que administrava a maior parte dos fortes portugueses ao longo da costa da África, afinal era uma colônia muito maior do que Portugal. Eu gosto de dizer que era graças ao Brasil, seu tamanho e recursos naturais que o pequeno Portugal conseguiu administrar seu vasto império. Daí a proximidade entre os países. Eu diria que o Brasil permanece no imaginário do Benim até hoje.
RH – Não só para os historiadores?
ES – Não. No Benim, o Brasil não é só parte da nossa história, mas está presente na nossa vida cotidiana. Em Uidá existe o quarteirão do Brasil, a casa do Brasil. Mas não há nada como o quarteirão de Portugal. No imaginário coletivo, a maioria da população conhece o Brasil, não Portugal. O quarteirão diz respeito aos que vieram do Brasil, mas o nome característico é Agudá. A origem vem de um forte português chamado São João Baptista de Ajuda, daí veio a palavra agudá, em referência aos afro-brasileiros.
RH – O senhor veio muitas vezes ao Brasil?
ES – Sim. Em 2003 eu dei um curso na UFF, algo como Introdução à História Africana. Isso foi um pouco depois de o governo brasileiro decidir pela obrigatoriedade do ensino da história da África. Mas é muito difícil começar um curso assim. Tentei só dar uma ideia sobre o que significa estudar isso. Como não falo português, as minhas aulas foram em francês e inglês, e parece ter dado certo graças à ajuda de colegas que falam muito bem essas línguas. O mais interessante foi perceber como o tema era apaixonante para os estudantes. Muitos professores também foram assistir às aulas. É compreensível a importância dessa troca, quer dizer, de se estudar a história da África no Brasil. Há uma série de referências para a cultura afro-brasileira, como a religião, o candomblé ou o carnaval, que não são necessariamente só africanas, mas não é possível compreender a história afro-brasileira sem se reportar à historia da África. Quando estudamos retornados, por exemplo, há um conjunto de experiências sobre o continente americano, sua interação com europeus e ameríndios, que são fundamentais para se compreender a transformação da cultura africana original. Quando retornam com essa experiência, o impacto cultural fica evidente.
RH – Poderia dar um exemplo?
ES – A farinha foi um produto vindo do Brasil, eram os índios que sabiam fazer. Foi com eles que os africanos aprenderam como fazer a farinha de mandioca. E este é apenas um exemplo de como a cultura africana dificilmente pode ser compreendida sem se referir à experiência americana. O mesmo pode se dizer da cultura americana, isto é, que sem referência à cultura africana de origem é muito complicado estudar alguns elementos.
RH – Como foi sua formação?
ES – Na época em que nasci, o Benim ainda era Daomé. Lá fiz meus estudos na escola primária e secundária e, depois, fui para a França. Porque, afinal, Daomé era uma colônia francesa e a maioria dos que iam para a universidade precisava ir para a França. Lá fiz meus estudos de história, tirei um diploma equivalente ao do mestrado. Naturalmente o curso não era de história africana, mas de história em geral mesmo. Dentro do programa, havia muito pouca coisa sobre história africana.
RH – Que tipo de coisa?
ES – Apenas questões relacionadas à colonização europeia, sobretudo a francesa. A história da África aparecia dentro de um discurso muito voltado a destacar os bons aspectos da colonização francesa. Para mim essa não era a história da África, mas uma história da atividade europeia ou francesa no continente, sem levar em consideração a cultura da população africana. Quando terminei meus estudos em Paris, voltei ao Benim para ensinar por alguns anos na escola secundária. Tornei-me professor em um período interessante, em que tínhamos um novo programa, este sim com um forte conteúdo dedicado à África. Isso porque foi montado depois da independência (1960).
RH – Por que escolheu história?
ES – Não sei, não foi uma escolha fácil. Eu tinha muitas opções. Quando cheguei à França não tinha muita certeza. Conversei com um psicólogo que me perguntou o que eu queria fazer. Disse filosofia. Ele perguntou por quê. Bom, eu disse simplesmente que me interessava, que tinha boas notas em filosofia na escola. Daí ele me perguntou em que outra disciplina eu tinha boas notas. Falei história. Foi quando ele disse que se eu estudasse história, necessariamente passaria também pela filosofia. Ele tinha razão. Além disso, pensei que para me tornar professor, algo que eu queria, estudar história poderia ser mais interessante. Foi assim que escolhi. Não foi nada muito planejado, mas eu não me arrependo da minha escolha. A forma de reconstruir o passado, as diferentes perspectivas, os meios, as formações, o documento do arquivo, tudo isso faz parte das coisas que realmente me interessam. Acho que todo mundo quer conhecer a história de sua família. Mas a formação na França não me permitia aprender o que eu queria.
RH – Como resolveu isso?
ES – Eu decidi que deveria ir às universidades africanas para fazer meu doutorado em História Africana. Eu já sabia que na França não aprenderia nada de novo. Era mais interessante ir para uma boa universidade no continente. Pensei em ir para a Nigéria, que era um país próximo, e sabia que a Universidade de Ile-Ife [hoje Universidade Obafemi Awolowo] era muito boa. Claro que, por conta da minha formação francófona, precisei aprender inglês para poder estudar lá, mas encontrei muitos professores de história – europeus, americanos, canadenses e brasileiros – que ampliaram as minhas perspectivas de pesquisa. Lá conheci Pierre Verger, que tinha sido convidado para falar da relação entre Brasil e África Ocidental. Foi assim que comecei a me interessar pela história da diáspora e pela relação entre Daomé e o Brasil.
RH – O senhor fez parte de um grande projeto da Unesco. Como foi?
ES – Ah sim, você se refere ao “The Slave Routes” [As Rotas dos Escravos]. Essa é uma longa história. A iniciativa do projeto partiu do Haiti, no contexto da comemoração dos 500 anos da chegada de Cristóvão Colombo à América, em 1492. Nesses eventos, a África foi praticamente esquecida. Então o Haiti, para onde grande número de escravos africanos foi transportado, achou justo que a celebração da aventura de Colombo não negligenciasse o protagonismo africano, ou seja, a contribuição dos africanos ao desenvolvimento econômico da América. Como na comemoração de 1992 tinha havido esse viés europeu, sem levar em consideração o sacrifício de milhões de negros, eles queriam, afinal, associar os africanos ao seu projeto. Então decidiram fazer uma conferência, em 1994.
RH – O senhor esteve envolvido desde o começo?
ES – Sim. O Haiti, como o Benim, tem uma relação especial com a história da escravidão e, portanto, fui chamado para ajudar o pessoal da Unesco na época. A conferência contou com a participação de gente de muitos lugares diferentes do mundo, afinal essa é a natureza da diáspora.
RH – E ela aconteceu em Uidá. Por quê?
ES – Sim, Uidá foi escolhida por ser um lugar importante de memória da diáspora africana. Era o ponto de partida de milhares, talvez milhões, de africanos para diferentes lugares do mundo. Essa escolha teve, sem dúvida, um caráter simbólico. Mas, na verdade, a conferência deveria acontecer no Haiti. Esta era a ideia original. Porém, por conta da particular instabilidade política do país naquele período, por razões de segurança, era impossível organizar lá uma grande conferência. Então foi para o Benim.
RH – Quais foram os desdobramentos do projeto?
ES – Depois da conferência houve mais integração não só entre as instituições do continente, mas entre os centros que estudam história africana pelos países da diáspora, na América e mesmo na Europa. Muito do projeto está relacionado a centros de pesquisa, como a Universidade de York [no Canadá] e institutos de vários outros países. [O historiador canadense] Paul Lovejoy veio à conferência graças ao projeto. Há também um centro de pesquisa na Grã-Bretanha concentrado em estudar as tentativas do país em abolir a escravidão desde o começo do século XIX. Você sabe que os ingleses tiveram um papel importante nesse processo.
RH – Sim, começaram proibindo o tráfico.
ES – Mas abolir o comércio não era o mesmo que abolir a escravidão. Há o status do escravo, que passa por um longo processo até conseguir se libertar. Em 1807 aboliu-se o comércio, mas não a escravatura. Dentro dessa discussão, não podemos nunca esquecer que a Revolução Haitiana, em 1804, aconteceu quando o comércio ainda existia. Talvez isso ajude a entender um pouco o país hoje. O Haiti constitui um exemplo de abolição e do fim do sistema pela revolta. Isso todos sabem. Porém, o problema do Haiti se explica, para mim, pelo fato de ter se tornado independente num momento em que não apenas a escravidão estava ainda em vigor, mas também o próprio comércio de escravos.
RH – Foram isolados por isso, não?
ES – Exatamente. Para que não contaminasse as demais colônias, o Haiti recebeu um embargo que, além de deixar o país isolado, também impediu seu desenvolvimento. Além disso, é importante lembrar que a França exigiu que o Haiti independente pagasse uma multa aos senhores de escravos que perderam seu meio de produção.
RH – O senhor acha que o interesse pela África está crescendo no meio acadêmico?
ES – É isso que estamos vendo aqui no Brasil. É por isso que digo que a nova lei é algo progressivo, não produz seu efeito imediatamente. O Brasil é um grande país, e não é possível formar um especialista tão rapidamente. Também não poderíamos ensinar a história da África no Brasil do mesmo jeito que faríamos na África. É preciso que os estudantes aqui encontrem suas próprias razões para estudar, descobrir como e o que vão abordar da realidade brasileira. Isto significa fazer sempre um exercício de aproximação, isto é, fazer história a partir de uma perspectiva comparativa.
RH – A mesma lógica vale na África?
ES – Não podemos ensinar a história do continente sem essa perspectiva comparativa. Não há uma etnia pura na África. No interior das sociedades africanas aprendemos os elementos, uns dos outros, pelo contato das culturas. Falamos do tráfico transatlântico, mas antes dele já existia o comércio de escravos entre os países muçulmanos. Isto precedeu em muitos séculos o comércio para as Américas. E, antes de existir o tráfico de escravos, há também uma longa história que o precedeu.
RH – Os temas de estudo sobre história africana têm se modificado?
ES – É difícil dizer. Não conheço bem os programas porque cada universidade é, em certa medida, independente. Elas mesmas determinam seus programas de ensino. Sei que nos primeiros anos havia um programa em comum, mas nunca soube exatamente o conteúdo. Isso é muito difícil. Na África nós também temos História da América nos nossos programas. Claro, temos História da Europa, da África, das diferentes colonizações. Mas há uma certa ideia dos aspectos americanos que influenciaram nossa cultura, assim como a história dos africanos na América. Pouca gente estuda, mas muitos foram para o Maranhão e o Paraná depois de 1818. O que estou dizendo, enfim, é que mesmo lá a história da África deve ser repensada permanentemente.
RH – No período das independências o estudo da história local teve mais importância?
ES – Claro, existia um programa de formação cívica do qual muitos historiadores participavam. Ensinavam-se coisas como a evolução do país, a crise, um certo fervor patriótico que incluía os heróis nacionais antes da colonização, ou os que apareceram depois da independência. Não surpreende que muitos historiadores tenham se envolvido mais tarde com a política. Mas, como eu disse, mesmo os programas de hoje precisam ser melhorados continuamente. No Brasil, as diferentes partes da África são ensinadas, muitas vezes, como se formassem um único conjunto: a influência africana na cultura brasileira. Mas são muitos e diversos os aspectos do que estão sendo chamados de africanos. Há a cultura alimentar, que tem toda uma história. E os africanos muçulmanos, que se converteram antes de chegar ao Brasil e que aqui organizaram revoltas como a dos Malês, na Bahia.
RH – O senhor tem feito um trabalho de formar novos historiadores, não só no seu país.
ES – Sim, mas não é bem assim. Quando você ensina, não o faz necessariamente para historiadores. O que quero dizer é que mesmo aqueles que seguem o caminho das ciências também fazem disciplinas em história. Nada mais natural. Todos precisam dessa perspectiva histórica. Claro, há uma grande diversidade de histórias também. Há história da ciência, das artes, das religiões etc. Na verdade, cada disciplina, cada profissão tem sua história. E é importante refletir sobre o processo de sua formação, de sua especialização. Não é obrigatório que todos sejam historiadores.
RH – A multidisciplinaridade é importante.
ES – Claro. Os pioneiros da história africana não eram os historiadores de profissão. Tínhamos antropólogos, como [o norte-americano] Melville [Jean Herkovits]. Quando se estudam as sociedades, isto é, como elas se organizam hoje, muitas vezes somos obrigados a retornar ao seu passado. É natural que antropologia e história não tenham uma barreira definida, uma fronteira clara. Elas ganham juntas uma ajuda e esclarece a outra. Posso falar da minha experiência aqui no Brasil. Mesmo sem estrutura, muitos historiadores têm a sorte de contar com os trabalhos dos antropólogos em suas pesquisas. Mas não são só eles. Há os arqueólogos também. Não se pode ignorar o imenso material cultural que produzem acerca dos períodos que estudam. Isto nos permite saber sobre épocas em que não podemos contar com documentos escritos.
RH – Seu trabalho tem como meta buscar o cruzamento desses saberes?
ES – É difícil responder a isso. Eu diria que como método, sim. Mas meta é algo diferente. Acho que o historiador africano precisa saber lidar com uma história fragmentária, que não diz respeito à similitude de culturas. Este é um ponto importante. Mas o meu combate hoje é ultrapassar a cultura da fronteira colonial para fazer os estudos da história e da cultura africanas.
Glossário
Agudás: Termo que designa, no Benim, os descendentes de escravos ou de mercadores de escravos brasileiros, que no século XIX começaram a emigrar para a costa ocidental africana.
Retornados: Escravos libertados no Brasil que retornaram aos seus países de origem.
Pierre Verger (1902-1996): Fotógrafo e etnólogo franco-brasileiro que se dedicou ao estudo da diáspora e do comércio de escravos, além das religiões africanas no Brasil.
Francisco Félix de Souza (1754-1849): Nascido em Salvador, foi um dos grandes traficantes de escravos da África para o Brasil. Radicado na costa ocidental africana, desfrutou de enorme prestígio local e foi agraciado com o título de Chachá.
Revolta dos Malês (1835): Sublevação em Salvador de escravos e libertos africanos, de etnia iorubá, jeje e haussá, com grande preponderância de islâmicos (ou “malês”, como eram chamados). Cerca de 600 indivíduos aderiram ao movimento. Quatro foram fuzilados no dia 14 de maio de 1835.
Obras do autor:
“The Administration of a Port of the Slave Trade: Ouidah in the Nineteenth Century”. In:LAW, Robin & STRICKRODT, Silke (eds.). Ports of the Slave Trade (Bights of Benin and Biafra. Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling, 1999.
“The Neglected Local Source Material for Studying the Slave Trade and Slavery in Dahomey”. In: LAW, Robin (ed.). Source Material for Studying The Slave Trade and the African Diaspora. Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling, 1997.
La construction transatlantique d'identités noires – Entre Afrique et Amériques.Paris: Karthala, 2011. Em co-autoria com Livio Sansone e Boubacar Barry.
Daomé e o mundo atlântico. Rio de Janeiro: Sephis – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. Disponível em http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/08/Daome-e-o-mundo-atlantico.pdf.
Elisée Soumonni
Bruno Garcia