A vida religiosa romana precisa ser “escavada” para compreendermos sua presença e ação em seu contexto social, político e cultural. Estudá-la pode ser produtivo para a compreensão de fenômenos e instituições sociais da Antiguidade, lançando luz sobre uma sociedade da qual somos “herdeiros” sob muitos aspectos. Mas esta área de estudo traz grandes dificuldades à pesquisa.
As “premissas monoteístas” modernas são uma das maiores dificuldades. O termo “paganismo”, por exemplo, é ainda recorrente na historiografia e tem como base a dicotomia “cristianismo x paganismo”. Em oposição ao “paganismo”, noção inexistente na Roma antiga, cria-se uma ilusão de unidade religiosa, quando, na verdade, havia uma miríade de religiões no território imperial romano.A religião romana também sofreu o ataque do racionalismo moderno, que a viu como fenômeno exclusivamente político, criando a miragem de uma religião fria, manipuladora e, mais grave, afastada das crenças e da fé. O culto imperial, por exemplo, tornou-se um modelo moderno para o uso político da religião, desconsiderando-se suas bases religiosas propriamente ditas. A preocupação de historiadores com fenômenos como os fascismos do século XX levou à invenção de uma “religião estatal” romana, mas os romanos não conheceram uma “religião estatal” de tipo moderno.Além dos textos clássicos, chegaram até nós milhares de inscrições, representações figurativas, objetos e vestígios de centenas de lugares de culto. A atenção às possibilidades de pesquisa abertas pelo interesse dos historiadores pela cultura material e pelo diálogo com outras disciplinas permite a ampliação dos estudos de antiguidade. Pesquisas arqueológicas vêm ocorrendo em grande escala e o fácil acesso a relatórios e catálogos desses estudos, graças à internet, contribui para essa investigação. Há também o esforço de instituições e pesquisadores para tornar disponíveis ao público documentos existentes no Brasil, como parte do acervo de moedas gregas e provinciais romanas do Museu Histórico Nacional.Por outro lado, a abundância documental também traz problemas. São vestígios de difícil interpretação e muitas vezes peças isoladas, fragmentárias, especialmente para períodos anteriores ao século II a.C. Os textos literários são, com poucas exceções, evasivos ou especulativos, interessados na religião como um tema teórico. Citam, aqui e ali, algum ritual ou elemento do culto, sem detalhá-lo.Por fim, é comum entre os próprios pesquisadores da Antiguidade a ideia de que os romanos não tiveram mitos além dos “importados” da Grécia. Tal visão é, no mínimo, redutora. Transformar dados da experiência vivida em mito era um traço fundamental daquela sociedade. Religião, sociedade, crenças e instituições são termos inseparáveis no estudo da Roma antiga.A religião romana é ainda, em grande medida, uma ilustre desconhecida, e a pesquisa pode revelar aspectos antes insuspeitados ou pouco explorados na construção do conhecimento sobre Roma e o Império romano.Claudia Beltrão é professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e co-organizadora de Intelectuais, poder e política na Roma antiga (NAU editora, 2010) e Semiótica do espetáculo: um método para a História (Apicuri, 2013).
Em busca da religião romana
Claudia Beltrão