Em cada página uma pista

Vivi Fernandes de Lima

  • Luiz Carlos e Maria Prestes na Rússia, em mais uma foto do acervo familiar.Ele era mestre em descascar abacaxi. Literalmente. Cortava primeiro a parte de baixo. Depois, colocava a fruta em pé e, girando a coroa, ia tirando a casca. “Nunca tinha visto alguém fazer isso com tanta habilidade”, conta Maria Prestes. Essa destreza cai bem como metáfora para sintetizar a trajetória de Luiz Carlos Prestes. Desde o início da Coluna Prestes, em 1925, ele descascou muitos abacaxis e causou outros.

    Prestes era essencialmente político até no trato familiar. “A maior parte do conteúdo das cartas que ele escrevia era sobre a situação política e econômica, principalmente do Brasil”, conta a filha Rosa Prestes. Além da correspondência com os filhos e com a esposa, ele guardava documentos ligados à sua atuação. Alguns deles surpreendem pelo caráter confidencial, como cópias de relatos secretos da Embaixada da União Soviética no Brasil dos anos 1960 e até carta endereçada a Fidel Castro em 1979, ainda às vésperas da anistia. E outros que despertam curiosidade não só pelo ineditismo, mas pela riqueza do conteúdo.

    Vasculhando o acervo pessoal do político, é possível encontrar uma lista de 233 torturadores – apenas da cidade de São Paulo – que estavam a serviço do governo de Ernesto Geisel. A relação faz parte de um documento de 31 páginas sob o título “Relatório da IV Reunião Anual do Comitê de Solidariedade aos Revolucionários do Brasil”, de fevereiro de 1976, quando Prestes estava exilado na URSS. Quem assina é o próprio comitê, que não indica o nome de seus membros. Trata-se de um documento datilografado, original, e que estava guardado na casa de Prestes. Como chegou até ele, não se sabe. Pode-se, inclusive, especular que o relatório tenha nascido de sua máquina de escrever. O Grupo Tortura Nunca Mais – que em 1985, divulgou na imprensa uma relação que apontava 444 torturadores de presos políticos – não tem informações sobre este documento. “Não conheço este relatório de 1976, nem este comitê”, diz a historiadora Cecília Coimbra, presidente do Grupo.

    Quem dá alguma pista é o brasilianista Thomas Skidmore, que destacou a importância desse documento no livro Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985: “O Comitê de Solidariedade aos Revolucionários do Brasil realizou sessões secretas anuais, começando no início de 1973. Seus relatórios anuais incluíam listas de vítimas de torturas, torturadores e detalhes sobre as operações do aparelho repressivo. Publicar listas de torturadores (mesmo sob a forma de boletins datilografados) era potencialmente explosivo, pois alarmava a linha-dura. Obtive cópias dos relatórios de 1975, 1976 e 1977 graças à gentileza de um jornalista brasileiro”.

    A lista de torturadores é encabeçada pelo major de Infantaria do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, o primeiro oficial declarado torturador pela Justiça, em 2008. A maioria dos denunciados aparece com nome, sobrenome, patente, cargo e apelido. Além disso, o relatório traz textos sobre “a farsa dos suicídios” – que ocorriam nas prisões do DOI-Codi, com muito destaque para o caso da morte do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975) – e acusa o governo Geisel de manter a linha dura-na repressão: “O Ato Institucional nº 5, aberração jurídica que escandaliza a consciência da opinião pública do mundo todo, não permaneceu recolhido à gaveta prometida pela nova equipe de ditadores”. O documento denuncia ainda a existência de um “braço clandestino da repressão”, definido pelo comitê como “filho monstruoso do fascismo brasileiro”.

    Nesse período, a luta armada já não era o foco da repressão. “Depois que as organizações armadas foram liquidadas, ela se abateu sobre o partidão. Vários dirigentes foram presos e mortos”, diz o historiador Daniel Aarão Reis, que se dedica à biografia de Prestes desde 2008. A motivação para sua pesquisa surgiu de um certo incômodo com relação ao personagem: “Fiz parte de uma juventude que se apegou aos projetos revolucionários, muito influenciada pela Revolução Cubana e traumatizada pelo golpe de 64. Toda essa gente tinha uma visão muito negativa do Prestes, como se ele fosse o grande responsável pela derrota de 64. O estudo vem me ajudando a rever esses preconceitos sobre a vida de um homem que se empenhou muito pela revolução no Brasil”.

    O historiador Jorge Ferreira, autor de João Goulart, uma biografia, chama a atenção para outro fato que de certa forma diminuiu o prestígio de Prestes nesse período: “Com a vitória fácil do golpe militar, várias lideranças dentro do partido se opuseram a ele, que foi sempre contra a luta armada”.

    Sobre esse momento histórico, o próprio Prestes chegou a declarar em entrevistas o quanto foi inesperado. Nos anos 1980, quando o jornalista Dênis de Moraes perguntou se ele havia suspeitado de algo às vésperas do golpe, Prestes foi muito claro: “Nós tínhamos muita confiança nas Forças Armadas. Tínhamos uma fração muito forte no Exército, mas aqueles elementos não estavam preparados para se defender, para organizar a resistência”.

    Em seu acervo, há outro documento que confirma essa declaração. Desta vez, é um relato da Embaixada da URSS no Brasil, de 11 de janeiro de 1964, que registra a conversa entre Prestes e o embaixador A. A Fomin dois dias antes: “C. [camarada] Prestes contou sobre os últimos acontecimentos no país e as medidas tomadas pelo Presidente Goulart com objetivo de fortalecimento de sua posição. O c. Prestes considera a situação como estável e exclui a possibilidade de alguma atividade séria por parte da reação. (...) De acordo com informação do Prestes, Goulart tem apoio dos industriais mais importantes do país – Gasparian, Matarazzo, Ermírio de Morais e outros”.

    O panorama descrito para o embaixador russo dava a entender que Goulart faria um governo produtivo. Mas a cena acabou mudando de forma brusca, e em 1º de abril de 1964 veio o golpe. Na véspera, Prestes já teria ido mais uma vez para a clandestinidade. “Depois, em 1971, ele vai para Moscou, e ali perde prestígio também com os soviéticos; sua liderança foi questionada”, diz Jorge Ferreira. Mesmo assim, manteve contato com Fidel Castro: às vésperas da anistia de 1979, escreveu uma proposta de agenda de reuniões, prevista para março do mesmo ano em Havana. Entre os assuntos da pauta está “o papel e as responsabilidades dos Partidos Comunistas, marxistas-leninistas, no continente”. A cópia desta carta está no mesmo acervo.

    De volta ao Brasil em 1979, quando o país vivia o clima da abertura política, ele encontra um PCB moderado demais para seus parâmetros. Acusa o partido de ter dado uma guinada à direita. Toda a sua indignação está presente em discursos, entrevistas, cartas abertas e familiares. Ele enviava análises da situação política do país para os filhos, e algumas vezes fazia até previsões. Numa delas, endereçada à esposa, que estava em Moscou, desabafou em 3 de agosto de 1987: “os generais estão tão satisfeitos com a mediocridade e o servilismo de Sarney que preferem tê-lo como presidente. (...) E o próprio Sarney já vai manifestando seus instintos de latifundiário e sua disposição de continuar no poder de qualquer maneira, já não apenas por cinco anos, mas por muito mais...” E não é que acertou na mosca?

    Dias após escrever esta carta, ele enviou outra a Maria, em 14 de agosto, ainda mais desiludido, não só com o governo, mas com a luta partidária: “Tudo indica que chegamos a uma situação em que, dentro do capitalismo, já não há mais remédios que sirvam. Mas não há condições nem mesmo para se tentar uma revolução. Não temos hoje no Brasil nenhum partido político revolucionário. O PCB realizou agora um congresso que foi uma farsa, para reeleger o mesmo grupo dominante. E aprovou uma Resolução em que se fala de uma pretensa ‘Frente única de proletários com empresários’, sob a hegemonia do proletariado!!... Quer dizer: acabam com a luta de classes no País.”

    Além do desmantelamento do partido, é possível encontrar nas cartas de Prestes boa parte dos bastidores da Assembleia Constituinte em 1987, que, para ele, tratava da “Constituição mais reacionária que nosso país já teve”. Nota-se, por exemplo, que aborto e pena de morte eram assuntos já controversos naquela época: “Fala-se até em restaurar a pena de morte para determinados crimes, e já está resolvido que o aborto será em todas as condições um crime”, desabafa.

    Essa indignação presente em diversos momentos da história do país e o hábito de escrever e preservar seus escritos fazem do acervo pessoal de Prestes um material capaz de atender a várias áreas de pesquisa: anistia, ditadura militar, Constituinte, democratização, luta de classes, relações internacionais. Para quem gosta de História do Brasil, é um prato cheio... de abacaxis.



    Saiba Mais

    MORAES, Dênis de. Prestes: lutas e autocríticas. Petrópolis: Vozes, 1988.

    Filme
    “O Velho: a história de vida de Luiz Carlos Prestes”, de, Toni Venturi, 1997.