“Eu viajo sentada porque corro no bolo”. Assim, gabando-se de sua habilidade, a diarista Alucilene dos Santos, 49 anos, explica como consegue lugar no trem que liga o município de Japeri à Estação D. Pedro II (Central do Brasil), no Rio de Janeiro. De fato, é uma capacidade e tanto passar a frente de centenas de pessoas, ou melhor, do “bolo”. Alucilene mora em Engenheiro Pedereira, a 64 quilômetros da Central. Mesmo sentada, viaja apertada e já viu “de tudo” dentro dos carros de passageiros: “Assalto, arrastão e até gente baleada”, diz ela. Ainda assim, prefere ir para o Centro da cidade de trem do que de ônibus “porque é mais rápido e mais barato”.
Pagando R$ 2,50, ela leva uma hora e vinte minutos de viagem. De ônibus, ela teria que gastar R$ 4,50 e demorar muito mais pra chegar ao seu destino por causa do engarrafamento. Já chegou a levar três horas em dias de chuva. Botando na balança os prós e os contras da viagem de trem, milhares de pessoas pegam o transporte todos os dias para ir trabalhar como Alucilene. A operadora das composições metropolitanas do Rio, Supervia, recebe cerca de 500 mil passageiros. A Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, mais de 2 milhões.
O público fiel faz com que vendedores ambulantes tenham nos trens metropolitanos seu local de trabalho. No Rio, Fábio de Souza [nome fictício, a pedido do entrevistado] trabalha no ramo há 27 anos. Vende picolé, água, refrigerante e... cintos de couro. “É porque as mulheres são muito vaidosas, sempre compram alguma coisa pra combinar com a roupa”, diz o vendedor, que faz um dos braços de vitrine, onde pendura os cintos à venda. Ele consegue ter uma renda de R$ 500 por semana, trabalhando os cinco dias úteis, de 9h às 17h.
A rotina é como a da maioria dos outros camelôs: a cada estação, ele troca de vagão, da Central à Santa Cruz. Com o dinheiro desse trabalho, Fábio comprou uma casa, mas pretende mudar de ramo. Sonha em abrir uma loja: “Sou grato ao trabalho no trem, mas tem sido muito estressante. A fiscalização está muito forte”. Os fiscais são da própria Supervia e até policiais à paisana, como informou o vendedor. Se um deles o pega no trem, é prejuízo na certa: “ou eles apreendem a mercadoria ou cobram uma 'taxa'”. Que taxa? “É a cervejinha”, esclarece o vendedor.
Se por um lado os passageiros dos trens metropolitanos convivem com aperto e assaltos, os turistas têm a seu dispor paisagens exuberantes e conforto. Em alguns casos, há muito luxo, muito mais do que se tinha no famoso Trem de Prata até a década de 1990 [ver reportagem da pág. 14]. A litorina Great Brazil Express leva turistas de Curitiba a Morretes com toda pompa e majestade, dignas de um hotel cinco estrelas. Com confortáveis poltronas, o turista se sente numa sala de estar. Para desfrutar da viagem é preciso pagar R$ 270. O Pantanal Express, que liga Campo Grande a Miranda, no Mato Grosso do Sul, oferece ao turista a opção de pagar R$ 77 no vagão turístico (semelhante a um ônibus leito) e R$ 400 por um camarote de quatro lugares.
De 2004 a 2009, foram autorizados 22 trechos de trens turísticos pelo país. Uma novidade para 2010 é o Trem das Montanhas Capixaba, que começou a operar em janeiro no Espírito Santo. Há também os trens comemorativos. No Rio de Janeiro, o Trem do Samba lembra o dia desse gênero musical – 2 de dezembro – todos os anos. Pernambuco e Paraíba exibem o Trem do Forró nas comemorações juninas. No pré-carnaval, Recife desfila seu Trem do Frevo.
Como se vê, a história da música é lembrada nos trens. Já a memória das ferrovias é preservada em 16 museus espalhados pelo Brasil. A construção das primeiras estradas de ferro, fotografias de estações, vagões e locomotivas são algumas das peças dessas instituições. O Museu Ferroviário de Curitiba, por exemplo, está instalado onde já funcionou uma antiga estação. Hoje está interligado a um shopping center: uma locomotiva fica estacionada – pra sempre – numa praça de alimentação. Os visitantes podem conhecer os antigos trajes de maquinistas. Em Minas Gerias, é mantido o Museu Ferroviário de São João D’el Rei, em Minas Gerais, onde os visitantes podem ver a primeira locomotiva da Estrada de Ferro Oeste de Minas, com o antigo carro no qual viajou D. Pedro II.
Em se tratando de material para museu, o universo ferroviário é uma fonte e tanto. Frequentemente há lançamentos de livros sobre trens ou ferrovias brasileiras. Os temas vão desde os atrativos das viagens ao tipo de bitola de cada locomotiva. Há também organizações civis dedicadas à preservação do trem, como a Associação Brasileira de Preservação ferroviária, fundada em 1977, a Sociedade de Pesquisa para Memória do Trem e o Movimento de Preservação Ferroviária. Nessas entidades, os aficionados pelo tema pesquisam e discutem formas de se zelar pelo patrimônio ferroviário. “Eu sempre adorei trem, fazia minhas pesquisas de forma solitária. Com a internet, descobri muitos outros fãs”, diz João Bosco Setti, fundador da Memória do Trem, que já editou oito livros sobre o tema.
Para cuidar dessa memória, o Iphan criou a Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário em 2007. Desde então, a instituição trabalha num inventário dos bens móveis e imóveis do setor. Cinco mil edifícios já foram catalogados. “Vários têm valor histórico, artístico e cultural. Muitos estão abandonados ou em condições precárias de preservação”, diz José Cavalcanti, à frente da Coordenação. Para resolver a situação, o Iphan tem procurado articular prefeituras, governos estaduais e sociedade civil. Cavalcanti dá a dica: “Todo patrimônio, para ser preservado, precisa ser utilizado”. Alucilene utiliza. Aliás, ela e todo o “bolo”.
Mais distância, menos passageiros
Enquanto as linhas metropolitanas convivem com apertos, as de longa distância não veem passageiros há muito tempo. Com exceção das operadas pela mineradora Vale – Estrada de Ferro Vitória a Minas e a Estrada de Ferro Carajás, que liga Pará ao Maranhão – todas as outras ferrovias interestaduais atuam apenas com transporte de carga ou estão desativadas. Esse é o principal motivo que levou a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) a anunciar em janeiro que o governo irá rever os contratos de concessões de ferrovias. Um estudo feito pelo órgão indica que apenas cerca de 10% das estradas de ferro privatizadas estão plenamente ocupadas.
Foi de 1996 a 1998 que ocorreu a desestatização da malha ferroviária. Este processo resultou no fim da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). Hoje, há 12 operadoras privadas reguladas pela ANTT. Em troca, essas empresas deveriam manter as linhas e as composições conservadas. Mas como há ainda trechos subutilizados, as concessionárias terão que recuperá-los ou devolvê-los ao governo.
Outra iniciativa que dá esperanças com relação à viagem sobre trilhos é a construção do trem de alta velocidade, o trem-bala, que irá fazer a rota Rio de Janeiro-São Paulo. A rota já foi definida no edital de licitação, indicando a implantação de estações nos principais aeroportos dos dois estados. O investimento está orçado em R$ 34,6 bilhões. Mas por que realizar um projeto tão caro se as tradicionais ferrovias ainda estão subaproveitadas? “O volume de passageiros que há entre essas duas cidades justifica a implantação do trem-bala. Hoje, só há ponte aérea entre Rio e São Paulo, prova de que há de fato uma necessidade maior de agilizar o transporte nesse trecho”, diz Geraldo Lourenço, diretor de Infra-estrutura Ferroviária do Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes (Dnit).
Enquanto a ANTT alega que está trabalhando para que as concessionárias cumpram com seus deveres, uma comissão trabalha para estimular o investimento no turismo ferroviário. Representantes do Dnit, BNDES, Iphan, Secretaria do Patrimônio da União, Ministério do Turismo e da própria ANTT fazem estudos que avaliam a implantação de novos trens turísticos no país. “Cerca de 10 mil quilômetros da malha ferroviária não chegaram a ser privatizados porque as empresas não se interessaram. Esses trechos podem não ser atraentes para o transporte de carga, mas podem ser aproveitados no turismo”, diz Lourenço.
Em Dia - Ferrovias
Vivi Fernandes de Lima