A figura do almirante Barroso de pé na proa da fragata Amazonas é uma imagem constante nos livros didáticos de História. Porém, mais do que o mero registro em tons “heróicos” do momento mais marcante da Marinha Imperial brasileira durante a Guerra do Paraguai, o quadro “Combate Naval do Riachuelo”, do pintor Victor Meirelles, revela em sua composição características importantes da maior guerra da América do Sul.
A Marinha brasileira desempenhou papel decisivo na Guerra do Paraguai (1864–1870). As vitórias em Riachuelo (1865) – afluente do Rio Paraná – e na fortaleza de Humaitá (1868) – no Rio Paraguai – foram fundamentais para os aliados (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai. A primeira ajudou a pôr fim ao avanço das tropas paraguaias, obrigando-as a uma retirada. A segunda abriu caminho para a invasão aliada de Assunção e para os combates decisivos em terra até o término da guerra.
No mesmo ano em que a Armada conseguiu transpor Humaitá, foi pedido ao pintor Victor Meirelles – pelo ministro da Marinha, Affonso Celso de Assis Figueiredo (1836–1912) –, que registrasse em duas grandes telas os célebres combates. Os quadros fariam parte do futuro Museu da Marinha, criado pelo ministro por meio do Decreto 4116, de 14 de março de 1868.
Victor Meirelles de Lima (1832–1903) acumulava nessa época as funções de pintor e professor de Pintura Histórica da Academia Imperial de Belas Artes, e desfrutava de grande fama nos meios artísticos, principalmente por ter executado, entre 1859 e 1860, o quadro “Primeira Missa no Brasil”. Passou por longa formação na própria Academia e viajou para a Europa (1853–1861) a fim de aprimorar sua técnica e finalmente assumir o cargo de professor em setembro de 1861, exercendo-o até o fim do Império.
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Feita a encomenda, Meirelles embarcou para o Paraguai em 15 de junho de 1868. A esquadra brasileira ocupava o porto Elisário e estava sob o comando do almirante Joaquim José Inácio de Barros (1808–1869), que deu consentimento ao pintor para ficar a bordo do navio-chefe da divisão, o Brasil.
Ir ao local não possibilitou ao pintor presenciar as batalhas que registrou. Ele apenas testemunhou algumas movimentações da esquadra durante os dois meses em que lá permaneceu. Em carta de 13 de agosto de 1868, Meirelles escreveu ao colega da Academia, Bettencourt da Silva: “Estive algum tempo estacionado diante de Humaitá e dali, às furtadelas, de vez em quando fazendo mesuras às balas que passavam, eu desenhava o que me era possível ver pelo binóculo, mas felizmente, depois da ocupação dessa praça, tenho feito à vontade, em muitos croquis, tudo o que me era indispensável para o quadro da passagem dos encouraçados, faltando-me apenas pouca coisa”.
Como era costume do artista antes de executar uma grande obra, foram vários os desenhos e as anotações feitos no front. Retornando ao Brasil, instalou-se em uma das dependências do Convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro. Como a Academia não oferecia espaço adequado para a tarefa, o Ministério da Marinha enviou ao Convento um pedido, em nome do Governo Imperial, solicitando uma sala para a execução da obra. Ali Meirelles trabalhou até 1872. O resultado de todo este empenho foram os quadros “Combate Naval do Riachuelo”, “Passagem de Humaitá” e inúmeros desenhos e estudos, representando importante conjunto iconográfico sobre a guerra. As duas grandes telas foram exibidas na 22ª Exposição Geral da Academia, iniciada em junho de 1872.
O “Combate Naval do Riachuelo” retrata em sua composição várias passagens célebres da batalha. Alguns detalhes nos remetem a análises importantes sobre a história da guerra. Há um interessante quarteto junto à caixa da roda do navio paraguaio. O negro brasileiro de mão no peito após um tiro traz à discussão a presença desse grupo no conflito. Sabe-se que nem todos os negros participantes da guerra eram escravos. Pesquisas mais recentes indicam que no máximo 10% do contingente brasileiro era de escravos libertos para irem aos campos de batalha. Havia, de fato, muitos negros e mulatos livres, que entraram no conflito como “Voluntários da Pátria” ou por meio do recrutamento forçado do Império. No início do conflito, o brio “patriótico” levou muita gente ao combate, mas, à medida que o tempo passava e a guerra mostrava-se sem solução, novos soldados foram recrutados à força, em especial jovens solteiros. Em muitas cidades, a população masculina simplesmente sumia das áreas urbanas e até do campo, e alguns se casavam às pressas, inclusive com mulheres mais velhas, para fugir ao dever com a pátria. Assim, tornou-se necessário recorrer aos escravos. Mesmo no início do conflito, quando da criação por decreto dos “Voluntários da Pátria”, em 7 de janeiro de 1865, grandes fazendeiros podiam se alistar como “voluntários” e enviar grupos de escravos em seu lugar, mas este recurso foi pouco utilizado no decorrer da guerra.
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Ao lado do marinheiro alvejado estão dois paraguaios e um outro brasileiro muito jovem. O oficial paraguaio (em trajes escuros) é o único dos três a demonstrar combatividade; o velho foge sem condições de luta e o menino está assustado. Note-se que este pequeno grupo faz uma curiosa “síntese” da faixa etária dos contingentes militares que foram à guerra. As populações de ambos os países se viram, com o passar do tempo, forçosamente envolvidas no front. Com o elevado número de mortos ao longo da guerra, os comandantes, especialmente no caso paraguaio, se valiam de todos os recursos humanos possíveis para manter a frente de batalha. Nem mesmo crianças e adolescentes foram poupados. Até porque muitos soldados iam à guerra e levavam suas famílias nos intermináveis deslocamentos pelo interior do país, impostos pelo presidente paraguaio Solano López.
Em Riachuelo, a esquadra brasileira, formada por nove embarcações, passou por momentos difíceis, como na abordagem à canhoneira Parnaíba, representada do lado esquerdo do quadro, entre duas embarcações paraguaias.
O quadro de Meirelles também registra a presença das embarcações chamadas “chatas paraguaias”. Acertá-las era tarefa difícil. O tiro deveria ser certeiro em sua reduzida superfície, e aproximar-se delas poderia provocar o encalhamento dos barcos grandes, já que as “chatas” ficavam ancoradas em locais de pouca profundidade.
Mas a cena principal do “Combate Naval do Riachuelo” está centrada na ação do almirante Francisco Manuel Barroso da Silva (1804–1882), que pôs a pique quatro embarcações paraguaias utilizando a proa da fragata Amazonas. O próprio almirante narra seu feito: “minha resolução foi acabar de uma vez toda a Esquadra Paraguaia, o que teria conseguido se os quatro vapores (inimigos), que estavam para cima, não tivessem fugido. Pus a proa sobre o 1º, e o esmigalhei, ficando completamente inutilizado, com água aberta e indo pouco depois a pique. Segui a mesma manobra com o 2º, que era o Marquês de Olinda” – navio brasileiro apreendido pelo Paraguai em 1864, enquanto levava o governador do Mato Grosso, um dos incidentes que precipitaram a guerra –, “inutilizei-o, depois ao 3º, que era o Salto, o qual ficou no mesmo estado. Os quatro restantes, vendo a manobra que eu praticava (...), trataram de fugir rio acima. Depois de destruir o terceiro vapor, pus a proa em uma das canhoneiras flutuantes, a qual com o choque e um tiro foi ao fundo”.
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Uma cena chama a atenção do observador mais atento. É estranho olhar para a embarcação brasileira com vários oficiais brasileiros despreocupadamente em pé e outros marinheiros em gestos de comemoração, e logo ao lado um grupo de paraguaios apontando armas e canhões. Como justificar esse descompasso nas atitudes de cada lado? A vitória brasileira no combate é o tema do quadro. Mas a obra não representa um momento único e restrito do combate, e sim um “resumo” de mais de sete horas de luta. Na obra “desfilam” momentos considerados marcantes nesse dia 11 de junho de 1865. Assim, a combatividade dos paraguaios e o gesto de vitória brasileira puderam estar lado a lado como elementos de um mesmo combate, mas não necessariamente coesos quando confrontados na composição.
O que é importante observar é a ausência do confronto propriamente dito. O momento de ataque é suprimido pela seqüência posterior ao choque entre as embarcações, restando uma cena que opõe soldados paraguaios ainda revidando e brasileiros em gestos vitoriosos. Este foi um recurso que Meirelles voltaria a utilizar quando pintou o quadro “Batalha dos Guararapes” (1879), que retrata episódio da guerra entre luso-brasileiros e holandeses em Pernambuco no século XVII. Os críticos da época mencionaram, não poucas vezes, o fato de Meirelles não ter “índole” para imprimir cenas mais violentas em suas telas.
A obra também mostra que, ao bater na embarcação paraguaia, vários marinheiros brasileiros foram jogados ao rio. Há muitos deles agarrados a pedaços de embarcações ou boiando. E é justamente um desses que ganha destaque: o marinheiro alvejado pelo oficial paraguaio. Com a mão no peito e o rosto voltado para o alto, tem algo de vítima e herói. É sem dúvida a figura mais inspirada e notável da obra.
Entretanto, o quadro “Combate Naval do Riachuelo” exposto hoje no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, é uma réplica da obra original. Apresentado ao público carioca em 1872, o original foi levado posteriormente para a Exposição Universal da Filadélfia, em 1876. A partir daí, uma sucessão de erros em seu transporte e acondicionamento ocasionou sua deterioração. Após a exposição nos Estados Unidos, o quadro retornou ao Brasil em janeiro de 1877. Em março, a tela foi devolvida, entre outros quadros, à Academia, onde permaneceu enrolada por longos meses. Só quando se aproximava a exposição da Academia de 1879 é que o estrago foi notado. O invólucro de madeira ficara na chuva durante a exposição americana, e a umidade e o longo período em que o quadro ficou guardado fizeram com que o mofo tomasse conta e parte da tinta descolasse, transformando-se em uma pasta disforme.
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Um “segundo original” foi pintado em Paris entre 1882 e 1883. O escritor e jornalista Félix Ferreira (1841–1898) relata em seu livro Belas Artes, estudos e apreciações, de 1885: “Reproduzindo o perdido quadro do Combate Naval do Riachuelo, o Sr. Victor Meirelles conservou-lhe a primitiva composição, dando apenas maior desenvolvimento aos personagens e navios, na proporção do aumento que deu a toda a tela, que foi nada menos de dois metros no comprimento e um na altura”. A versão atual tem as dimensões de 4,60 x 8,20m, e é este o quadro que hoje vemos no Museu Histórico Nacional.
Luiz Carlos da Silva é formado em História pela Universidade Tuiuti, do Paraná, e mestrando na Universidade Federal do Paraná, com dissertação sobre a obra de Victor Meirelles.
Em guerra no Riachuelo
Luiz Carlos da Silva