Em versos, (re)versões

Marcos Pasche

  • Imagine-se, leitor, num programa televisivo de perguntas e respostas imediatas. Você recebe uma indagação sobre um fato de forte repercussão, e tem a oportunidade de pedir ajuda a um historiador ou a um poeta. Neste caso, a quem recorreria?

    É coerente supor que o historiador seria o escolhido, pois, em tese, é o intelectual mais habilitado a tratar dos “grandes acontecimentos”. O poeta, dado à imaginação, não prioriza em seu trabalho a “realidade concreta dos fatos”. Apesar de antiquíssima, essa diferenciação ainda é motivo para debate, e não poucos a tomam ao pé da letra, vendo no poeta um mentiroso.   

     Mas nenhum corpo se compõe só por pés, e com o das letras brasileiras não é diferente. O Modernismo – anunciado oficialmente na Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, e consolidado como tendência intelectual durante grande parte do século XX – costuma ser lembrado por ter subvertido formas tradicionais de composição estética. Mas a ideologia do movimento também foi adotada como orientação para as ciências humanas, pois seus partidários acreditavam na necessidade de reconsiderar todas as vertentes da arte e do pensamento nacional.

    A poesia modernista estabeleceu um conflituoso casamento com o registro de eventos passados. Livros como Pau-Brasil (1925), de Oswald de Andrade, e Novas Cartas Chilenas (1954), de José Paulo Paes, estampam questionamentos a respeito do “foi assim que aconteceu”. Nas entrelinhas destas obras, seus autores apontam para a artificialidade da historiografia consagrada, que seria incapaz de contemplar a complexidade da história.

    O mineiro Murilo Mendes (1901-1975) é outro que se destaca entre os que fizeram uma poesia marcada pela revisão dos registros oficiais da vida brasileira. Apesar do título aparentemente imparcial, História do Brasil, publicado em 1932, é um conjunto de textos irônicos, inclinados a retirar a maquiagem dos discursos que fazem o “histórico” rimar com o “heroico”. Uma vez que sua obra é sempre associada ao Surrealismo – movimento de vanguarda europeu identificado com a recusa de referências lógicas – torna-se ainda mais surpreendente verificar que, por meio da poesia (reino do inventado, do fictício, do irracional e da inverdade) se pode ter uma dimensão mais apropriada e verossímil dos acontecimentos relativos à nação tupiniquim.

    No livro, a ordenação dos textos baseia-se na cronologia usual. Os poemas são dispostos de acordo com a referência factual que tematizam, começando pela chegada dos primeiros europeus ao território até a época em que Murilo elaborava o volume. Essa forma de organização permite supor que a obra esteja afinada com o modo convencional de escrita historiográfica. Mas os primeiros sintomas de que a suposição será desfeita se encontram já no texto de abertura, “Prefácio de Pinzón”:

    Quem descobriu a fazenda,

                       Por San Tiago, fomos nós.

                       Não pensem que sou garganta.

                       Se quiserem calo a boca,

                       Mando o Amazonas falar.

                       Mas como sempre acontece,

                       Nós tomamos na cabeça,

                       Pois não tínhamos jornal.

                       A colônia portuguesa

                       Mandou para o jornalista

                       Um saquinho de cruzados.

                       Ele botou no jornal

                       Que o arquimedes da terra

                       Foi um grande português.

    A menção ao nome do navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón explicita um debate acerca da efetiva “descoberta” do Brasil. Para alguns estudiosos, Pinzón chegou ao norte da costa brasileira em janeiro de 1500, meses antes, portanto, do português Pedro Álvares Cabral desembarcar na costa baiana, em abril daquele ano. Por esta razão, o poema, que simula um discurso do próprio Pinzón, fala em “fazenda” – pois o território ainda não havia sido nomeado pelos europeus – e diz ter na palavra do rio Amazonas uma garantia argumentativa. Apesar da fiança, o navegador espanhol lamenta a ausência de documentos que comprovem seu feito (“Nós tomamos na cabeça,/ Pois não tínhamos jornal”). Afinal, a história é o acontecido ou o que recebeu o carimbo da autenticação? O sucesso do português foi contar com os serviços de um “jornalista”, termo metafórico para designar Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de Cabral. Os versos “Não pensem que sou garganta”, “Nós tomamos na cabeça” e “Ele botou no jornal” evidenciam outra mola propulsora do livro e do Modernismo: o humor que ridiculariza formalidades oficiais.

    Para “desmonumentalizar” a história do Brasil, era imprescindível reordenar a forma como ela é tradicionalmente relatada. Por isso, é estrutural no volume o teor satírico na abordagem de eventos famosos – “Quando o almirante Cabral/ Pôs as patas no Brasil/ O anjo da guarda dos índios/ Estava passeando em Paris” – e de personagens vultosos: em “O Bacharel de Haia”, o autor escreve sobre a morte de Rui Barbosa (1849-1923): “Um dia, velho, morreu./ O país chorou a perda/ De seu filho amado e ilustre; / A consternação foi geral./ Sobretudo entre os bicheiros:/ No dia da sua morte/ Deu a águia, todo o mundo/ Jogara nela... Que azar!”.

    A sátira foi empregada pelos modernistas para diluir a grandiloquência dos pronunciamentos institucionais. Em História do Brasil, isto se comprova especialmente nos textos que alvejam momentos cobertos de grande furor nacionalista. É o caso de “Fico”, que tematiza a famosa declaração de D. Pedro I em 1822: “(...) Eu fico, mas vou/ Falar com a Marquesa,/ Já volto pra ceia./ Falando em comidas/ Eu fico, pois não”. O mesmo ocorre em “Preparativos da pescaria”, sobre os antecedentes do grito da Independência: “(...) Meu pai não fez coisa alguma/ Por vocês, ó vrazileiros./ Se meu pai disse que fez/ Ele mente pela gorja./ O que fez o rei de bom/ Não foi ele, meus meninos,/ Foi o conde de Linhares”. E também nos versos de “Proclamação de Deodoro”, acerca da instituição da República em 1889: “Ó que belo movimento!/ Ouro-Preto não estrilou./ Foi tudo feito com rosas/ E salva de 21 tiros./ Apenas quase matamos/ O pobre Barão do Ladário”.

    O revisionismo de Murilo Mendes e de seus pares não se resumia a zombar de homens e eventos célebres. A fundo, repensava-se a própria nacionalidade em seus diversos elementos. A expressão desse projeto deveria isentar-se de inflamações ufanas. E isso tanto no retrato antropológico da gente nacional, como em “Homo brasiliensis” (“O homem/ É o único animal que joga no bicho”), quanto no tratamento de fenômenos pouco inspiradores de paixão nacionalista, como as desrazões administrativas da coisa pública:

    Um presidente resolve

    Construir uma boa escola

    Numa vila bem distante.

    Mas ninguém vai nessa escola:

    Não tem estrada pra lá.

     

    Depois ele resolveu

    Construir uma estrada boa

    Numa outra vila do Estado.

    Ninguém se muda pra lá

    Porque lá não tem escola.

    A simplicidade modernista corresponde à ideia de que a vida também deve ser assimilada pelo que não é rico ou de requinte, como um gesto delicado de quem vê a beleza onde em geral ela não é anunciada. Em História do Brasil, essa simplicidade da escrita decorre de uma firme tomada de posição para interpelar com rigor ideologias “nobres” que determinaram rumos da vida nacional. O tom menor da poesia quis repelir o megafone da historiografia estridente, denunciando suas dissonâncias. Por este sentido, parece que a invenção do poeta não é tão inventada como se possa supor.

    A linhagem poética aqui destacada efetua um ato de confluência com a história, rejeitando a crença irrestrita no factual para dar atenção ao factível. Procura se aproximar de interpretações históricas que ela entende como mais procedentes do que as cristalizadas ao longo do tempo, sem renunciar à transfiguração da realidade própria da arte do verso. Assim, mantendo seus idiomas específicos, historiador e poeta encontram um ponto em que falam a mesma língua.

    Pense nisso, leitor, caso participe de um programa de perguntas e respostas.  

    Marcos Pasche é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor de De pedra e de carne: artigos sobre autores vivos e outros nem tanto (Confraria do Vento, 2012).

    Saiba mais

    ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia e correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000.
    ÁVILLA, Afonso (org.). O Modernismo. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
    BARBOSA, João Alexandre. “Convergência poética de Murilo Mendes”. In: ___. A metáfora crítica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1974. p. 117-136.
    LIMA, Luiz Costa. “Tríptico sobre Murilo Mendes”. In: ___. Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002. p. 71-110.