Emanoel Araújo

Marcello Scarrone

  • Olhar o passado para antever o futuro. Para o escultor, desenhista, gravador, cenógrafo, pintor, curador e museólogo Emanoel Araújo, esta é a missão de um museu. Ele sabe bem do que está falando.  Além de ter feito exposições individuais e coletivas por todo o Brasil, Europa, Estados Unidos e Japão, Emanoel Araújo esteve, durante muitos anos, à frente de diversos museus e casas de cultura, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo. E, por onde passou, empenhou-se em unir, como ele mesmo enche a boca para dizer, “arte e memória”.

    Nascido em 1940 na pequena cidade de Santo Amaro da Purificação, na Bahia, Emanoel Araújo teve os primeiros contatos com a arte ainda menino. Descendente da terceira geração de grandes ourives, ainda novo foi aprendiz de marceneiro, trabalhou na Imprensa Oficial do Estado, e tomou gosto por temas que o inspirariam posteriormente, como a presença africana na cultura brasileira. Mudou-se para Salvador nos anos 1960 com o intuito de cursar Arquitetura, “mas, no meio do caminho, passei pela escola de música e resolvi cursar Belas Artes”, diz ele, com a convicção de quem já assinou centenas de esculturas, gravuras e obras gráficas. A partir dos anos 1980, quando assumiu a direção do Museu de Arte da Bahia, passou a se destacar como curador de inúmeras exposições. Foi responsável pela revitalização da Pinacoteca de São Paulo e pela criação e direção do Museu Afro-Brasil, sobre o qual não mede as palavras.

    E foi na sede do museu, em São Paulo, que Emanoel Araújo recebeu a equipe da RHBN. Ele lembrou, com certa nostalgia, de sua família em Santo Amaro e avaliou sua formação: “Sou um misto do século XIX e do século XX”, diz, referindo-se à sua formação acadêmica. Para ele, os tempos mudaram, e o cenário artístico não anda bem das pernas no Brasil. Com mais de 45 anos de uma carreira diversificada, Emanoel Araújo falou sobre sua passagem pela Pinacoteca e se deteve em sua atual menina dos olhos: o Museu Afro-Brasil.

    REVISTA DE HISTÓRIA O senhor vem de uma família de ourives, não é?

    EMANOEL ARAÚJO Não só meu pai era ourives, como seus irmãos, seu pai e seu avô também foram. São três longas gerações de ourives. Minha mãe era uma mulher doméstica, nascida em São Gonçalo dos Campos. Ela e meu pai, natural de Irajá, no sertão da Bahia, foram criar família em Santo Amaro da Purificação, onde eu nasci. Santo Amaro era uma cidade que vivia da produção de açúcar e tinha muitas tradições culturais e religiosas. Fiquei por lá até os meus 18 anos, quando segui para Salvador.

    RH Foi em Santo Amaro que teve o seu primeiro contato com a arte?

    EA – Quando eu tinha nove ou dez anos, fui obrigado a trabalhar como marceneiro. Depois fui ser impressor na tipografia da Imprensa Oficial da cidade de Santo Amaro. Nós imprimíamos o Diário Oficial. Comecei como ajudante de composição e depois como impressor de pequenas coisas. Só larguei o trabalho para voltar aos estudos. Terminei o ginásio aos 18 anos e segui para a capital do estado. Minha intenção era fazer Arquitetura, mas, no meio do caminho, passei pela escola de música e resolvi cursar Belas Artes.

    RH Na Universidade Federal da Bahia?

    EA Isso mesmo, no início dos anos 60. Mas acabei ficando pouco tempo no curso. A universidade estava me jogando para uma questão acadêmica. Eu não queria aquilo. Decidi tentar a vida de artista. Fiz cartazes, tipografia, cenografia, figurino, etc. Em 65, tive uma experiência no Centro Popular de Cultura e trabalhei na publicidade da campanha de alfabetização do Paulo Freire. Depois passei pelo teatro popular, teatro de rua, me enturmei com o pessoal da esquerda e conheci gente como o Sarno, o Capinam, o Carlos Alberto Caó...

    RH Foi nesse período que o senhor foi investigado pela polícia?

    EA Foi em 64. Eu fui chamado e respondi durante algum tempo à investigação de um tenente chamado Maziero. Ele era treinado para descobrir quem era comunista. Fui submetido a vários interrogatórios. Eu batia o ponto no quartel-general toda semana. Um dia, apareceu por lá o diretor do Usis, um americano chamado Mr. Maclausky. E esse Mr. Maclausky tinha ido ao meu ateliê e comprado uma série de gravuras. Ele acabou sendo o meu álibi. Eu cheguei a levar pra ele o convite da exposição que fiz no Usis [risos]. E foi muito engraçado ver a cara desse senhor quando ele se deu conta de que eu estava fazendo a exposição na galeria de arte do Usis, nos Estados Unidos.

    RH Como avalia sua formação como artista?

    EA O que eu posso dizer é que a minha formação se deu de maneira bem diferente do que acontece hoje. Costumo dizer que sou um misto do século XIX e do século XX. Isso porque a minha formação é toda acadêmica, dessa época, da escola de Belas Artes. E a academia mudou bastante desde então. Houve toda uma evolução com o computador. No meu tempo, trabalhávamos em desenho de modelo vivo, geométrico. Você estudava a história da arte no Brasil. Era uma formação muito mais ligada à questão do século XIX. O artista hoje se forma de uma maneira muito mais livre.

    RH Como vê a relação entre a arte contemporânea e a academia?

    EA Essa questão é muito complexa. De certa forma, somos todos contemporâneos. E, na verdade, o que chamam hoje de arte contemporânea é uma coisa que antigamente atendia pela expressão “arte de vanguarda”. Eu acho que a arte de vanguarda dos anos 60 e a arte contemporânea de hoje têm propostas muito parecidas. Não sou contra a arte contemporânea, mas não gosto desta espécie de compromisso, de um certo modismo, que faz com que o Brasil caminhe sempre na direção do mercado. Dentro dessa lógica do mercado, os museus e alguns artistas de um determinado período acabam sendo esquecidos. É como se a chamada arte contemporânea fosse um selo único e fundamental. E isso põe o modernismo, outras escolas e aprendizados, outras inovações e manifestações em segundo plano. O que é muito grave.

    RH Os colecionadores são responsáveis por esses modismos?

    EA O mercado está sempre ligado ao colecionismo e às galerias de arte. Mas os curadores, os críticos de arte e os marchands também contribuem, de uma maneira ou de outra, para esse cenário. Veja o caso do curador. Qual é o papel dele hoje? Como ele define o que é ou não arte, o que é ou não movimento, o que é ou não contemporaneidade? É preciso levantar e debater estas questões. Acho que se deu ao curador um papel muito importante e fundamental. E me pergunto se a crítica, de certa forma, não se eximiu diante dele. Quando eu me tornei artista, nos anos 60, os jornais tinham críticos do mais alto calibre, como Quirino Campofiorito, Quirino da Silva, Jaime Maurício, Ferreira Gullar, Mario Pedrosa... Eram verdadeiros pensadores. Eles desapareceram e deram lugar aos chamados curadores.

    RH O cenário é o mesmo no campo da arquitetura?

    EA Acho que sim. A arquitetura brasileira virou neoclássica, não mais incorpora os artistas nacionais, que estão aí. Antigamente você tinha os painéis de Di Cavalcanti, de Portinari, obras de escultores importantes que estavam dentro do espaço público, visíveis. Brasília é um exemplo disso. Veja a obra de Athos Bulcão, de Ceschiatti, de Bruno Giorgi. Então, havia uma tentativa de incorporar a arte à arquitetura. Isto se perdeu. Não há mais construções como o Ministério da Educação e Cultura, por exemplo. Hoje a arquitetura brasileira está dominada por um tipo de construção padrão neoclássica, repetindo certo gosto de uma classe média mal informada, pequeno-burguesa e inculta.

    RH O que fazer para voltar ou superar esse momento?

    EA Eu sempre me pergunto isso. Em outros países, como a Espanha, mais especificamente a cidade de Valência, nós vimos o nascimento das obras do Calatrava: o Museu da Ciência, a Ópera, a Cidade da Música. Ele é um grande arquiteto e estava em sintonia com a cidade, que enriqueceu seu patrimônio. Agora, no Brasil, é tudo mais complicado. Mas acho que nós talvez tenhamos uma chance de reverter esse quadro com o desenvolvimento econômico do país. Talvez, dessa maneira, esses ícones da arquitetura possam voltar a ser importantes. Estou falando de prédios institucionais que pudessem abrigar novos pensamentos arquitetônicos e acabassem valorizando suas cidades.

    RH Isso foi feito no período em que esteve no comando da Pinacoteca.

    EA O edifício estava muito deteriorado e precisava de um projeto arquitetônico. O Paulo Mendes da Rocha assinou este trabalho, que acabou estabelecendo os princípios pelos quais se poderia realmente fazer uma nova instituição. A Pinacoteca foi minha terceira experiência. Primeiro, quando o Chateaubriand fez aquela série de museus pelo Brasil afora, eu acompanhei o arquiteto Cesar Tavares e sua equipe na montagem do museu de Feira de Santana. O museu tinha todo um acervo de arte brasileira e inglesa reunida por Chateaubriand. Depois, trabalhei no Museu de Arte da Bahia por dois anos. E aí, sim, veio a Pinacoteca, onde permaneci por quase dez anos. Foi um enorme desafio, porque a casa estava praticamente no chão. Era uma instituição a ser totalmente recuperada. E isso só foi possível com o empenho do governador Mário Covas, do Marcos Mendonça, de outros secretários de Cultura, como o Ricardo Ohtake e o Adilson Monteiro Alves. E foi quando eu comecei também a trazer essa questão do negro para dentro do museu de arte.

    RH Esse movimento culmina no Afro-Brasil. Como um museu como este se justifica?

    EA A sua pergunta é estranha, embora pertinente. O Brasil é um país estranho. Somos uma nação multicultural onde a contribuição da cultura africana é enorme. A África foi fundamental no período do ouro, do açúcar, da cana, do gado, do café, todos eles sustentados pela mão escrava.  Foi essa gente que forjou e possibilitou a riqueza e o engrandecimento de muitas oligarquias que até hoje dominam o país. Aos poucos, sem que as pessoas percebessem, os africanos mudaram verdadeiramente a cultura brasileira, inserindo suas contribuições, seja na alimentação, na escultura, na ourivesaria, na cultura... De tal maneira, que a gente não pode deixar de reconhecer que as três personalidades mais importantes do Brasil são todas afrodescendentes: Pelé, Machado de Assis e Aleijadinho. E o museu, portanto, surge com a intenção de ser um espaço de arte e memória. Este é um museu muito brasileiro, independentemente de ser afro-brasileiro. É um museu brasileiro porque trata a História transversalmente, ou seja, ele se encontra e se reencontra. Eu gosto muito de dizer que o museu funciona como um espelho.

    RH De que maneira?

    EA Um espelho através do qual a gente possa se mirar na própria história da África, desde o navio negreiro até as manifestações individuais de escritores, poetas, pensadores, geógrafos, etc. Vejam bem. O Brasil é um país dividido. Nós excluímos populações inteiras, imensas. E essas populações são as que estão na periferia, que não têm oportunidade nem direito às tais cotas de educação. Diferente dos Estados Unidos, por exemplo. Enquanto o Brasil proibia a alfabetização, os Estados Unidos liberavam o acesso até mesmo de escravos a universidades como a Harvard University. É esta diferença que o museu pretende mostrar. Não é um museu de Antropologia, de Etnologia ou de Sociologia. Ele não é um museu acadêmico do ponto de vista restrito do estudo dessas manifestações. Ele é uma demonstração dessas questões todas, nos fazendo olhar para o passado e, possivelmente, antever o futuro. Eu acredito que o Afro-Brasil é extremamente original em termos de museografia.

    RH Por quê?

    EA Porque esse museu não é estanque. Então, você vê o artista Rubem Valentim, um homem que fez a sua representação simbólica a partir dos ícones africanos, cristãos e das religiões indígenas. Ele sintetizou na sua obra muitas manifestações. Então, este é um museu em que história suscita história. Nós propomos uma costura, cruzamentos interessantes, como os estandartes dos maracatus de Pernambuco, dos caboclinhos. Acho que é por isso, inclusive, que o museu atrai tantos estrangeiros. É um museu aberto sobre o Brasil. É um museu que representa a nossa alma mesmo.

    RH O que acha das críticas de que o museu contribuiria para a segregação da cultura negra?

    EA Bom, o museu se chama Afro-Brasil. Não é um museu de gueto. Ele é um museu aberto às manifestações brasileiras e de origem africana. E me diga: como se pode imaginar o princípio do carnaval, da escola de samba, sem a África? Este é também um museu preocupado em desconstruir uma visão tipicamente folclórica e perversa da África que ainda parece predominar na nossa sociedade. Neste sentido, poderíamos dizer que o museu tem uma função nova: descobrir e resgatar personalidades negras ou afrodescendentes que tenham sido importantes para o Brasil.

    RH Como a cultura negra vem sendo representada nos demais museus nacionais?

    EA Eu acho que não existe essa representação. É uma questão complexa. Até hoje o Brasil ainda não se resolveu socialmente nessa questão do estigma da escravidão. Este estigma existe e persiste, embora ainda haja quem afirme que nós não somos racistas. Ora, ligue a televisão. São todos brancos, louros e austro-húngaros, não é? Você não vê negro na televisão brasileira, na publicidade. Será que eles não são consumidores? Esse cenário é completamente diferente do de outros países, como, por exemplo, os Estados Unidos, que tiveram um contingente muito menor de escravos.

    RH O museu chegou a fazer uma exposição que tratava do legado da escravidão nos EUA.

    EA Chamou-se “De King a Obama”, e pegava todo o legado de Martin Luther King até esse novo personagem do Barack Obama. Nossa ideia era fazer com que as pessoas pudessem cotejar essa diferença entre os Estados Unidos e o Brasil. O primeiro teve um total aproximado de um milhão de negros no sul do país, enquanto o segundo chegou a somar quase dez milhões. Era possível ver os respectivos documentos da emancipação dos escravos, assinados pela princesa Isabel, em 1888, e por Abraham Lincoln, 25 anos antes. Queríamos mostrar o quanto a vida negra americana foi diferente da vida negra no Brasil.

    RH Gostaria de ter mostrado o museu ao Obama, por exemplo?

    EA Para conhecer o Brasil, não se precisa ir à favela. Isso é sempre uma fala minha. Sempre reclamo porque temos que mostrar nossas feridas de maneira errada. Então, trazer Obama para ver uma comunidade pobre, excluída pelo próprio país, é demonstrar a incapacidade e a incompetência brasileira de não ter resolvido essas questões.

    RH E como avaliaria as políticas culturais do país no que diz respeito exatamente às tradições afro-brasileiras?

    EA Acho que não existem políticas culturais. Não é que não sejam muito positivas. Elas não existem de fato, são apenas ocasionais. E não se pode determinar como políticas públicas fatos ou acontecimentos folclóricos. Eu acho que o carnaval, por exemplo, é um fato folclórico. Ele não chega a ser um fato cultural. Veja, por exemplo, as escolas de samba. Eu me pergunto: onde está a comunidade dessas escolas de samba? Hoje as rainhas de bateria são todas senhoras brancas, bonitas e louras. São todas atrizes. A comunidade mesmo está onde? Na ala das baianas? Eu pergunto onde é que está? Essa construção toda é muito complexa e vulnerável, como toda coisa pública, não é?