Nas primeiras décadas do século XIX, Minas Gerais tinha apenas 16 municípios. Na época da Proclamação da República (1889) já eram 111, e atualmente são 853 – é o estado com o maior número de municípios. Estas circunscrições surgiram dos desmembramentos sucessivos dos “termos” – territórios municipais – de três vilas: Nossa Senhora do Carmo (atual Mariana), Vila Rica (Ouro Preto) e Sabará, que celebram este ano o tricentenário de sua fundação.
Quando uma povoação recebia o título de “vila” – ou seja, quando ela era escolhida para sede de um novo município –, realizava-se uma cerimônia oficial, geralmente presidida pelo governador da capitania. O ponto alto da solenidade era o levantamento do pelourinho, uma coluna de pedra que simbolizava a Justiça exercida pelo poder municipal. Entre abril e junho de 1711, este ritual se repetiu de maneira quase idêntica nas três localidades: antes mesmo da eleição dos juízes e vereadores, no centro da poeirenta praça principal, o governador Antônio de Albuquerque fez erguer o monumento, sob os aplausos da nobreza, do clero e do povo do arraial e das redondezas. Na Vila do Carmo, a primeira a ser criada, o pelourinho era de madeira tosca, o que não destoava das casas em volta: o povoado constituía-se de simples ranchos de pau a pique, havendo um único sobrado com cobertura de telhas – chamado pomposamente de “palácio” por servir de residência ao governador.Para acabar com as disputas pelo ouro entre paulistas e emboabas, o governo distribuiu cargos públicos para integrantes dos dois grupos rivais
Para fundar as vilas, Albuquerque teve que contar apenas com o entusiasmo e a ambição dos moradores, pois a Coroa raramente contribuía financeiramente para equipar os municípios coloniais. Diante da promessa de recompensas futuras, as pessoas mais ricas e influentes se dispuseram a assumir diversos encargos, fornecendo materiais e escravos para as obras mais urgentes ou emprestando (ou alugando a preço módico) uma modesta casa para acolher provisoriamente as assembleias municipais. Décadas mais tarde, algumas vilas conseguiriam recursos suficientes para erguer uma bela e sólida Casa de Câmara e Cadeia, e um novo pelourinho de pedra lavrada – como o que existe hoje na cidade de Mariana.
Apesar de boa parte dos mineiros viverem em acampamentos efêmeros, já havia cerca de 30 arraiais estáveis na região. Em que critérios Antônio de Albuquerque teria se baseado para conceder o cobiçado título de vila? Seriam essas três povoações as mais populosas e ricas? Ou havia outras razões para tal preferência?
Em meados de 1709, as Minas viviam os últimos momentos da chamada Guerra dos Emboabas – conflito armado iniciado em 1707 que opôs os paulistas, descobridores das minas, aos “emboabas”, grupo formado por reinóis (portugueses recém-chegados da metrópole) e “baianos” (colonos do Nordeste) que afluíam continuamente à região, atraídos pelo ouro. Os paulistas logo se tornaram o grupo minoritário e foram vencidos: alguns perderam suas terras e seus postos de guardas-mores e superintendentes das minas; outros foram vítimas de verdadeiros massacres. Mas nada parecera mais alarmante à metrópole do que o desrespeito à autoridade régia: o líder reinol Manuel Nunes Viana chegara a se proclamar governador das Minas.
A Coroa foi obrigada a tomar providências mais sérias para controlar a região mineradora. No dia 17 de julho de 1709, o Conselho Ultramarino – órgão encarregado de tratar de questões referentes à Colônia – reuniu-se especialmente para discutir a questão: era necessário criar milícias e órgãos de Justiça, e melhorar a cobrança dos impostos. Para levar a cabo tão importante missão, o rei D. João V designou o experiente Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho (1655-1725), que acabava de tomar as rédeas do governo do Rio de Janeiro e que assumiu, meses depois, o comando da nova Capitania de São Paulo e Minas do Ouro.
Ouro Preto foi capital de Minas por mais de 100 anos, mas Mariana foi a primeira a receber o título de cidade e Sabará teve uma área que chegava à divisa com Goiás
Em vez de castigos severos para todos os revoltosos, o Conselho Ultramarino sugeriu soluções conciliatórias, pois a Coroa precisava do apoio dos poderosos locais para efetuar a cobrança do quinto – taxa de 20% sobre o ouro extraído. Por isso, a concessão do título de vila era uma medida que apresentava diversas vantagens. A criação do Poder Judiciário municipal e a distribuição equilibrada dos cargos na Câmara entre os grupos rivais ajudaria a pôr fim às disputas. Além disso, se implantadas de modo estratégico, as vilas poderiam cumprir vários outros papéis: centros de coleta do quinto, alfândegas e praças militares para combater os contrabandistas e quilombolas. Para evitar os extravios do ouro, as sedes municipais deveriam ser instituídas nos três arraiais mais próximos das grandes estradas que davam acesso à região: o arraial do Rio das Mortes, no caminho para São Paulo, e o do Campo do Ouro Preto, no trajeto que conduzia ao Rio de Janeiro. Não foram dadas diretrizes a respeito do caminho da Bahia, mas sabe-se que haveria ali pelo menos duas opções: Roça Grande e o arraial da Barra. Ficariam assim sob controle os três principais polos mineradores: Ouro Preto (bacia do Rio Doce), Rio das Mortes (vale do Rio Grande) e Rio das Velhas (bacia do São Francisco) –, nos quais foram constituídas as primeiras comarcas (circunscrições judiciárias e fiscais) da capitania.
O governador não seguiu à risca estas recomendações, pois logo percebeu a necessidade de levar em conta as diferentes configurações do poder político local. Segundo o historiador Diogo de Vasconcelos (1843-1927), as escolhas de Albuquerque começaram a se definir numa assembleia realizada em novembro de 1710 no arraial do Carmo. Este povoado reunia muitos paulistas, mas nas vizinhanças viviam também reinóis abastados. Apesar da presença de ambas as facções, ali não houve grandes incidentes, e os moradores tinham se recusado a obedecer a Nunes Viana. Para não despertar a inveja dos portugueses que residiam nas minas do Ouro Preto, poucos meses depois o governador organizou ali uma nova assembleia de paulistas e reinóis. Definia-se, assim, a localização das duas primeiras sedes municipais de Minas: em 8 de abril de 1711 era erguida a Vila de N. Sra. do Carmo; três meses depois, e a poucas léguas dali, surgia Vila Rica, pela reunião dos arraiais e freguesias do Pilar e de Antônio Dias.
A Vila Real de Sabará foi a última das três a ser instituída, em 17 de julho de 1711. Devido à necessidade de satisfazer à população reinol, majoritária, e à desconfiança que as autoridades régias tinham dos paulistas, o lugar escolhido pelo governador foi o arraial da Barra, sede da paróquia de N. Sra da Conceição do Sabará. Foi assim desprezado o arraial mais antigo do Rio das Velhas: Roça Grande, também chamado de arraial do Borba, por ter sido fundado pelo famoso genro de Fernão Dias, o bandeirante Manuel de Borba Gato (1649-1718). O arraial do Rio das Mortes também foi preterido, pelo fato de os combates entre paulistas e emboabas ali terem sido mais sangrentos e duradouros – somente em 1713 foi fundada uma vila na região, São João del Rei.
Desde o início, estabeleceu-se uma grande rivalidade entre as Câmaras mineiras, especialmente entre as vizinhas Vila Rica e Vila do Carmo. A primeira foi honrada com a função prestigiosa de sede da comarca do Ouro Preto e, a partir de 1720, de capital das Minas, mas a segunda conseguiu conquistar a “cabeça” do bispado. Em 1745, passava a se chamar Mariana – em homenagem à esposa do rei D. João V – e a fazer parte do grupo seleto das localidades luso-brasileiras com o título de “cidade” (então dado principalmente às sedes episcopais e às localidades fortificadas do litoral). Em 1823, D. Pedro I decidiu conceder o título às capitais de província, e Vila Rica se tornou então a “Imperial Cidade de Ouro Preto”. Na década seguinte, as sedes de comarca também passaram a receber a promoção, e em 1838 Sabará se tornou uma “cidade”.
As três municipalidades disputaram palmo a palmo o território mineiro: enquanto Mariana e Sabará chegaram a controlar povoações e zonas rurais nas fronteiras do Espírito Santo, do Rio de Janeiro e de Goiás, a capital, Ouro Preto, situada em posição mais central, acabou ficando com um território bem menor. As Câmaras procuraram impedir que os arraiais a elas submetidos obtivessem o título de vila, pois isso as privaria de preciosas fontes de renda. Como se vê, a fundação de vilas nas Minas coloniais envolveu questões econômicas e provocou grandes polêmicas, semelhantes às que ocorrem ainda hoje quando se discute a criação de um novo município.
Cláudia Damasceno Fonseca é professora da Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e autora de "Arraiais e vilas del Rei. Espaço e poder nas Minas setecentistas" (Ed. UFMG, 2011).
Saiba Mais - Bibliografia
ANASTASIA, Carla. Vassalos rebeldes. Violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 1998.
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
VASCONCELLOS, Sylvio. Vila Rica. Formação e desenvolvimento – Residências. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1977.
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974 (2 vols.).
Embates mineiros
Cláudia Damasceno Fonseca