Instaurada por meio de uma revolução contra a corte portuguesa, a república pernambucana sabia que precisava agir rápido para conquistar legitimidade e aliados externos. No dia 14 de junho de 1817, três meses após a deflagração do movimento rebelde – que alcançou repercussão também na Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará – um representante do governo provisório desembarcou em Boston, nos Estados Unidos. Seu nome era Antônio Gonçalves da Cruz (?-1833). Também conhecido como Cabugá.
A missão foi anunciada previamente por outro agente dos rebeldes, o comerciante inglês Charles Bowen, que havia deixado o Recife no calor dos acontecimentos e encarregou-se de divulgar a vinda do emissário e os objetivos da revolução em várias gazetas estadunidenses, entre elas o Norfolle Herald Office, de Boston.
Cabugá conhecera a Europa nos fins do século anterior. Ficou entusiasmado com as ideias das revoluções americana e francesa (deflagradas, respectivamente, em 1776 e 1789). Antes da Revolução Pernambucana, dirigiu o erário provincial, e em 27 de março foi nomeado pelo governo provisório seu embaixador em Washington.
Os revolucionários nutriam grande entusiasmo pela nação norte-americana, talvez devido à experiência política vivida pelos Estados Unidos durante o seu processo de independência, o que para os pernambucanos era ainda incipiente. Muitas ações dos rebeldes se espelharam em atos daquela população, como a defesa da forma republicana e do federalismo. Uma carta escrita pelo governo provisório – formado pelo padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, José Martins, José Luís de Mendonça, Manuel Correa de Araújo e Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa – em 12 de março de 1817 ao presidente dos Estados Unidos da América do Norte, James Monroe, propunha assegurar-lhe importantes negócios e denunciava a “inépcia ou a maldade do governo da Casa de Bragança” contra a província, ressaltando que a revolução em andamento havia se espelhado no exemplo que aquele país dera ao mundo.
O Brasil fazia parte desde 1815 do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, sob D. João VI. Sobre os ombros de Cabugá caiu a missão de costurar alianças e acordos bilaterais com o governo estadunidense. Mesmo que os Estados Unidos dessem sinais de não reconhecer “publicamente a independência do povo de Pernambuco”, como menciona a carta da junta do governo provisório endereçada ao presidente norte-americano, o governo provisório recomendava que ele procurasse conseguir o apoio dos norte-americanos para o fornecimento de munições de guerra e alimentos, que estavam raros e caros. Como se vê, o governo pernambucano não era ingênuo a ponto de acreditar que os Estados Unidos reconheceriam de imediato a soberania da jovem república. Era voz corrente que aquele país dizia se manter neutro ante as questões separatistas vindas da América Latina. Afinal, precisava continuar atuando no sistema político e econômico atlântico e recuperar seus interesses prejudicados pelas guerras napoleônicas e contra a Inglaterra (1812-1814), e evitava hostilidades com a Espanha, com a qual tinha pendente uma série de questões de fronteira.
Mas a neutralidade se revelou de difícil aplicação. Navios corsários equipados nos EUA com mantimentos de guerra por insurgentes das colônias espanholas eram abastecidos em portos americanos e tripulados por marinheiros americanos antes de atacarem navios espanhóis – o que deu margem a frequentes protestos diplomáticos.
Muitos pesquisadores consideram a missão de Cabugá frustrada, por não ter conseguido o reconhecimento da república e por ter obtido como única conquista a nomeação de Joseph Ray para atuar no Recife como cônsul-geral dos Estados Unidos. Seus méritos, no entanto, foram além. Com o secretário de Estado em exercício, Richard Rush (1780-1859), conseguiu que embarcações de bandeira pernambucana pudessem ancorar livremente nos portos estadunidenses, mesmo sem o país reconhecer a república. Rush também assegurou que os Estados Unidos jamais consentiriam que os portos pernambucanos fossem bloqueados e que o governo ianque permitiria o livre trânsito para a compra de munições de guerra e de outros apetrechos, entre eles gêneros alimentícios, para serem enviados a Pernambuco.
A nomeação de Joseph Ray não foi indicação de Cabugá, pois aconteceu em julho de 1816, logo, um ano antes da eclosão da revolução. Porém, o cônsul só desembarcou no Recife no dia 6 de junho de 1818, quando a revolução havia sido vencida pelo governo instalado no Rio de Janeiro e muita gente era perseguida, tendo se tornado testemunha ocular daqueles acontecimentos e usado da imunidade diplomática para esconder em sua residência vários acossados pela fúria real. Essas ocorrências causaram indignação em agentes da Coroa, que passaram a usar o corpo diplomático instalado em Washington para conseguir a destituição do cônsul e sua substituição por outro, comprometido com os interesses do reino. Juntamente com Joseph Bryan, o cônsul fundara a firma Ray & Bryan, que teria sido procurada por Cabugá nos Estados Unidos para ajustar a vinda de suprimentos para Pernambuco.
Se os Estados Unidos afirmavam que não se envolviam diretamente nas ebulições hispano-americanas, pelo menos as viam de bom grado. É o que mostram as correspondências entre o abade José Correa da Serra, embaixador do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves nos Estados Unidos, e as autoridades portuguesas instaladas no Brasil. Ele temia que a aproximação de Cabugá com os agentes do governo ianque pudesse ser prejudicial ao rei. De certa maneira, tinha razão. Suas desconfianças tomaram força quando soube que Cabugá havia entrado em contato com o ex-imperador da Espanha José Bonaparte e com vários soldados que serviram a Napoleão e que, após a derrota deste, se refugiaram nos Estados Unidos. O emissário pernambucano tinha a missão de convencer os ex-soldados napoleônicos a se alistarem no exército revolucionário e a defenderem a república da fúria de D. João VI.
Tanto a corte carioca como o governo pernambucano tinham conhecimento das armações orquestradas por José Bonaparte para tentar libertar o irmão da prisão na ilha atlântica de Santa Helena. Ao saber da instalação de uma república no Brasil, José Bonaparte pensou que ela poderia ser útil aos seus projetos: utilizaria a Ilha de Fernando de Noronha, que ficava quase na mesma direção de Santa Helena, como rota de fuga para Napoleão. Após alguns acertos com Cabugá, ficou acordado o envio para Brasil do coronel Latapie, do Conde de Pontécoulant (Louis-Adolphe le Doulcet) e dos soldados Artong e Raulet. Eles partiram de Nova York em junho de 1817 e chegaram à Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, em fevereiro de 1818. Nesta localidade ficou o Conde de Pontécoulant, que se dizia interessado em estudos de botânica. Os outros soldados franceses seguiram viagem e desembarcaram na Baía da Traição, na Paraíba, onde receberam voz de prisão dos soldados comandados pelo governador Tomás de Sousa Mafra. Sabendo das articulações promovidas por Cabugá na América do Norte, o governador paraibano conduziu os soldados franceses a Pernambuco para que eles fossem ouvidos pelo governador Luís do Rego Barreto. Este mandou abrir uma investigação contra os prisioneiros, que confirmou a trama e concluiu que os soldados haviam sido enviados aos trópicos para articular o plano de fuga de Napoleão.
Um dos tripulantes da embarcação que conduziu os soldados franceses confessou que havia escutado um diálogo sobre uma fragata que teria partido de um porto estadunidense a fim de dar cobertura aos revolucionários. Segundo o cálculo, no momento da invasão do país, o monarca ficara isolado ante a interferência norte-americana. A novidade soou como um alarme, deixando as autoridades em pânico. Recomendou-se que os portos fossem mantidos em vigilância, que todas as fortificações ficassem em estado de alerta e que os passos de estrangeiros, sobretudo norte-americanos, fossem espionados.
Com a derrocada da revolução, Cabugá continuou a viver nos Estados Unidos, fixando residência na Filadélfia. Após a Independência, D. Pedro I nomeou-o para representar o Império do Brasil como cônsul-geral no governo de Washington, em 1823. Mais tarde foi ainda nomeado representante diplomático na Bolívia.
Servindo à Revolução Pernambucana, contra os Bragança, e depois ao Brasil independente, junto aos mesmos Bragança, Cabugá foi um pioneiro em nossa diplomacia.
Flavio José Gomes Cabral é professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e autor da tese “Conversas reservadas: vozes públicas, conflitos políticos e rebeliões em Pernambuco no tempo da independência do Brasil” (UFPE, 2008).
Saiba mais - Bibliografia
BOURDON, Léon. José Corrêa da Serra: Ambassadeur du Royaume-Uni de Portugal et Brésil a Washington (1816-1820). Fontes Documentais Portuguesas-VII. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian/ Centro Cultural Português, 1975.
GRIECO, Donatello. Napoleão e o Brasil. Coleção General Benício, 304. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1995.
MOURÃO, Gonçalo de Barros Carvalho e Mello. A Revolução de 1817 e a história do Brasil: um estudo de história diplomática. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
VEIGA, Gláucio. “O cônsul Joseph Ray, os Estados Unidos e a Revolução de 1817”. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, v. LII, 1979.
Emissário: Cabugá
Flavio José Gomes Cabral