Contratada como primeira dama da companhia de ópera do Imperial Theatro São Pedro de Alcântara, a cantora francesa Elisa Barbieri foi ovacionada pelo público que lotava o teatro no dia 31 de janeiro de 1828. Naquela noite, a moça cantou junto de vários outros artistas da casa, que a homenagearam com a encenação de uma ópera e um ballet.
Ao final do espetáculo, a artista ganhou do imperador D. Pedro I um anel de brilhantes, e embolsou também o dinheiro obtido com a venda dos ingressos: cerca de dois contos e meio de réis, uma pequena fortuna. Era o dia do seu “benefício”.
Aquela não foi uma ocasião extraordinária, nem privilégio de uma artista de destaque. Assim como Elisa Barbieri, todos os solistas contratados pelo teatro tinham direito a uma representação em seu benefício uma vez por ano. Importado da Europa, o costume era semelhante à prática de concertos e recitais por subscrição – nos quais um grupo de espectadores assinantes patrocinava o evento com a compra antecipada dos ingressos. Para o público do Rio de Janeiro, significava uma oportunidade de homenagear o cantor ou o dançarino de sua preferência. Para os artistas, uma importante contribuição aos seus rendimentos anuais.
O teatro onde essas representações ocorriam era a principal casa de espetáculos da Corte, situada no Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes). Inaugurado em 1826, o São Pedro de Alcântara foi fruto da ousadia do empresário português Fernando José de Almeida, e podia acolher mais de mil pessoas distribuídas entre plateia e quatro ordens de camarotes. A casa chegou a abrigar três diferentes trupes de artistas, mas a Companhia Nacional, que representava peças em português, foi dissolvida poucos meses após a inauguração. O palco então ficou livre para os cantores da Companhia Italiana, encarregada das óperas, e para o grupo de dançarinos responsáveis pelos bailados.
As criações do mestre italiano Gioachino Rossini (1792-1868) – compositor consagrado na Europa – dominavam as temporadas operísticas, permanecendo em cartaz por anos consecutivos. Os primeiros registros da encenação de obras de Rossini no Rio de Janeiro são anteriores à independência do Brasil, em 1822. Mas foi ao longo do Primeiro Reinado que elas se converteram nas principais atrações do teatro da Corte. As comédias O barbeiro de Sevilha e A italiana em Argel estavam entre as obras preferidas do público. No gênero sério, sobressaíam títulos como Tancredi e Aureliano em Palmira, exemplos do que havia de mais moderno no repertório da época. Apresentadas em italiano por uma companhia de cantores estrangeiros, eram difíceis de compreender por grande parte do público, que por vezes recebia um resumo do enredo para acompanhar a ação.
A Companhia Italiana tinha ainda em seu repertório títulos de compositores como Pietro Generali, Francesco Basili e Ferdinando Paer. Novas partituras chegavam da Europa a cada temporada. O corpo de dança, por sua vez, era chefiado por um coreógrafo francês, apresentando bailados inéditos a cada ano. Em geral, os números de dança ocorriam após as óperas ou entre os atos da peça musical.
A representação em benefício de um artista prestigiado podia converter-se em um dos grandes atrativos da temporada. Anúncios eram publicados em jornais, como o Diario do Rio de Janeiro, o Diario Fluminense e O Spectador Brasileiro, em geral se limitando a divulgar o nome do beneficiado e o programa do espetáculo. Vez por outra, porém, o artista aproveitava o espaço nos jornais para dirigir-se pessoalmente ao público. Um deles foi o cantor João Crespi, que em 1828 escreveu suplicando respeitosamente a “proteção” do público da Corte, garantindo-lhe a sua eterna gratidão.
Os artistas assumiam por uma noite as atribuições do empresário do teatro. Tinham autonomia para combinar com os colegas o programa do espetáculo, levando em consideração as obras e os recursos disponíveis para a encenação. Em geral vendiam os ingressos em sua própria casa. Esse curioso procedimento reforçava ainda mais a relação entre o artista e seus admiradores, tornando-a direta, quase familiar.
Os primeiros artigos de crítica teatral começaram a ser publicados em 1826, nos jornais Diario Fluminense e O Spectador Brasileiro. Não se tratava, porém, de uma crítica especializada, com longas análises técnicas sobre as óperas e os bailados. Às vezes eram os próprios redatores que se encarregavam dos comentários. Em outros casos, a tarefa podia ser delegada a um colaborador anônimo, que assistia aos espetáculos e partilhava suas impressões com os leitores. Defensores do bom gosto, os jornais denunciavam com frequência o mau comportamento do público. Entre as atitudes condenáveis estavam os assobios na plateia e o hábito de lançar moedas no palco para ofender um artista. Em 1827, os artigos de crítica já apareciam em outros jornais, como a polêmica Gazeta do Brasil e O Espelho Diamantino, dedicado às senhoras da Corte. Quem sabia ler em francês podia consultar ainda as colunas sobre teatro publicadas no L’Indépendant a partir de abril daquele ano. Seus sucessores, L’Écho de l’Amérique du Sud (1827-1828) e Courrier du Brésil (1828-1830) ajudaram a propagar a crítica no Rio de Janeiro. Os artistas e a administração do teatro eram alvos frequentes de reclamação, e alguns leitores enviavam cartas aos jornais expressando suas opiniões sobre os espetáculos.
Para o crítico de L’Écho, havia um excesso de benefícios nas temporadas do teatro: “todo mundo no teatro ganha dinheiro, exceto o diretor”. A afirmação era um pouco exagerada, pois para a temporada iniciada em 1828 estavam previstas 123 récitas, entre as quais apenas 20 (pouco mais de 16%) eram reservadas para os benefícios dos artistas.
O fato é que a opinião dos críticos e as exigências do público faziam alternar sucessos e fracassos no palco do São Pedro de Alcântara. Para os artistas menos destacados, que não contavam com a simpatia da plateia, um espetáculo em seu benefício nem sempre era certeza de triunfo. Pelo contrário, havia verdadeiros fiascos. Alguns artistas voltavam para casa com uma recompensa irrisória, depois de atuarem num teatro vazio. Em outros casos, a renda da noite não era sequer suficiente para cobrir os gastos com a encenação do espetáculo, gerando prejuízo para o artista “homenageado”. Nas representações em benefício, os críticos exigiam do público uma postura de redobrado respeito em atenção ao artista. A etiqueta recomendava maior tolerância diante do desempenho fraco dos cantores ou dos bailarinos. Mas a paciência do público tinha limite e, no caso de apresentações monótonas ou pouco interessantes, “se o bom tom não permite vaiar, ele não impede de dormir” – como escreveu um jornalista da época.
O fracasso de alguns benefícios, no entanto, não era capaz de frear o interesse da plateia pelos espetáculos, sobretudo quando havia novidades no palco. Os críticos alimentavam polêmicas, como a que opunha Elisa Barbieri à cantora Maria Teresa Fasciotti, irmã e protegida do diretor da Companhia Italiana. Atacada sobretudo pela Gazeta do Brasil, Maria Teresa ganhou o apoio de um leitor do jornal Astrea, que passou a escrever artigos em sua defesa. O clima de rivalidade entre os críticos reverberou na plateia: formaram-se partidos adversários em torno de cada uma das cantoras. Barbieri suscitava os comentários mais entusiasmados. Após o sucesso do benefício da francesa, o crítico do jornal O Espelho Diamantino manifestou sua esperança de que a artista permanecesse no Rio de Janeiro. Barbieri, contudo, decidiu retornar à Europa pouco tempo depois. Um poema de despedida em francês foi publicado na imprensa por um de seus admiradores.
A crise provocada pela abdicação de D. Pedro I e pela instauração da Regência, marcada por tumultos e discussões políticas inflamadas na capital, levou ao fechamento temporário, em 1831, do antigo teatro São Pedro de Alcântara, que pouco antes havia sido rebatizado com o nome de Constitucional Fluminense. Sem palco e sem recursos, as companhias acabaram se desfazendo em seguida. Diante da falta de opções, alguns artistas estrangeiros embarcaram para tentar a sorte no exterior. Os grandes espetáculos de ópera e ballet só reapareceriam na Corte na década de 1840, já durante o Segundo Reinado. Com eles, as grandes noites de benefício voltariam a merecer a atenção dos jornais, e novas polêmicas teatrais mobilizariam o público e a crítica no Rio de Janeiro de D. Pedro II.
Fernando Santos Berçoté autor da dissertação “As funções do palco: ópera, ballet e crítica de espetáculos no Rio de Janeiro do Primeiro Reinado” (UFRJ, 2013).
Saiba mais:
GIRON, Luís Antônio. Minoridade crítica: a ópera e o teatro nos folhetins da Corte (1826-1861). São Paulo: Editora da USP; Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
PACHECO, Alberto José Vieira. Castrati e outros virtuoses: a prática vocal carioca sob a influência da corte de D. João VI. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2009.
SUCENA, Eduardo. A dança teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/ Fundação Nacional de Artes Cênicas, 1989.
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Fernando Santos Berçot