Eni de Mesquita Samara

Rodrigo Elias e Nelson Cantarino

  • Eni de Mesquita Samara está animada. E não é para menos. Em uma de suas muitas visitas a arquivos e acervos de toda parte, a professora da USP fez uma descoberta daquelas: encontrou preciosos inventários do brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão e de sua esposa, Gertrudes Galvão de Oliveira Lacerda. O casal foi protagonista da tese de doutorado de Eni Samara, lá nos anos 1970, sobre as mulheres e a família no Brasil Colônia. “Eu ficava imaginando que fim eles tiveram, e que um dia eu daria continuidade àquilo. Agora estou podendo fazer isso. Fazia tempo que não me sentia tão motivada”.

    Em cada descoberta que faz, ela confirma o quanto a história de mulheres é importante para o estudo da sociedade. Mesmo assim, essa linha de pesquisa ainda enfrenta dificuldades. “Os estudos sobre a mulher e o universo feminista estão crescendo, ganhando espaço, mas ainda são vistos como um problema menor”, diz Eni, diretora do Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina (Cedhal) e ex-presidente da Associação Nacional de História (Anpuh) e do Museu Paulista da USP. Na pós-graduação, já apaixonada pelos arquivos, esbarrou em diversos documentos sobre a situação da mulher e da família no período colonial, e pouco depois, quando estudava na Universidade de Indiana, nos EUA, viu nascer o movimento feminista e se assumiu como tal. O que se seguiu foi uma trajetória acadêmica marcada pela necessidade de afirmação da pluralidade de modelos familiares e femininos presente na História do Brasil.

    Eni Samara recebeu a equipe da Revista de História na USP e conversou a respeito de um certo descompasso entre a memória que se perpetuou ao longo da História e o que as pesquisas e documentos nos mostram. Para ela, é um equívoco afirmar que o modelo da família patriarcal é predominante. É igualmente errôneo insistir que as mulheres na Colônia eram submissas. Mas, quanto a isso, Eni Samara está otimista: “Acho que com a presença da Dilma, esse cenário de dominação masculina começará a mudar um pouco”.

    REVISTA DE HISTÓRIA O modelo de família patriarcal corresponde à realidade da sociedade colonial?

    ENI SAMARA Não. Essa família patriarcal, tal como descrita pelo Gilberto Freyre, é certamente o modelo mais influente e poderoso, mas não corresponde à maior parte das formações. O meu livro A família brasileira tenta justamente desconstruir essa imagem sobre o período colonial mostrando que, na verdade, apenas um segmento da população vivia dessa maneira, ou seja, dentro dos modelos chamados patriarcais, de família extensa. A maioria das famílias tinha outra estrutura. Então, é um equívoco dizer que a família patriarcal é o modelo predominante no Brasil. Pode ser o modelo mais influente, mais importante. Até porque este é um modelo para as famílias mais ricas e poderosas. Então, essa estrutura familiar era como que o projeto de desejo de todos. Até mesmo os escravos tentavam reproduzir esse modelo. São muitos os casos de ex-escravos que compravam seus próprios escravos.

    RH Pode descrever um pouco essa organização familiar extensa, patriarcal?

    ES Seria o casal – às vezes só um dos cônjuges, porque se morria muito cedo -, depois os filhos, os agregados, os escravos e, muitas vezes, os filhos casados. A família nuclear é somente o casal, os filhos e escravos também. Mas o modelo de família brasileira que a gente conhece e que é apropriado para a toda a História do Brasil em diferentes momentos, é a família extensa.

    RH Como a maioria da população se organizava no que diz respeito à família?

    ES Para você ter uma ideia, poucos eram os casamentos. Casar era muito caro, dificultoso, você tinha que trazer documentos que estavam muitas vezes em outras partes do Brasil. Imagine o custo de se trazer para São Paulo documentos que estavam na Bahia. O casal acabava vivendo junto e, aos poucos, tinha filhos, que não são legítimos, mas constituem uma família. Ou seja: a família do período colonial não está associada à ideia de casamento. As uniões eram, do ponto de vista religioso e legal, ilícitas. As famílias eram compostas de um casal ou um indivíduo e seus filhos ilegítimos. Esse era o quadro mais representativo. Então, a gente tem que entender que família não está só associada a casamento.

    RH Mas esse ideal de uma família em que o casal se casa na igreja está se perdendo hoje, não está?

    ES Está se perdendo. Uma festa de casamento é cara. Fazer um casamento na igreja é uma fortuna. Agora, existe uma camada da sociedade que ainda valoriza muito as festas de noivado e as festas de casamento. É quase um retorno ao que a gente tinha um tempo atrás, porque se gastam fortunas nesses casamentos.

    RH Os padrões familiares da América portuguesa eram diferentes dos da espanhola?

    ES Os países mais pesquisados do lado espanhol foram México e Peru. Eu diria que, em geral. o padrão é muito semelhante ao que encontrei no Brasil. A Cidade do México se aproximava de São Paulo e do Rio de Janeiro no que concerne o predomínio de um modelo de família de elite, embora a maior parte da população não casasse. A Cidade do México tem um cenário muito parecido com o que descrevi a respeito de São Paulo. Em algumas cidades mexicanas havia também um dado curioso: o número de mulheres era maior que o de homens. Muitas mulheres chefiavam famílias.

    RH Isso ocorreu no Brasil?


    ES Sim. O maior grupo de mulheres trabalhando e chefiando famílias foi encontrado em Vila Rica de Ouro Preto, onde 45% das mulheres eram chefes de domicílio. O percentual de São Paulo era de 30%. Isso é um achado, não é? Quando me chamam para falar sobre isso – agora o assunto não está tão em pauta como há alguns anos –, eu digo: “Gente, as nossas estatísticas a respeito das mulheres eram maiores do que as que encontramos hoje. Ai, meu Deus, hoje no Brasil tem 30% ou 28% de mulheres chefiando domicílios. Em Vila Rica de Ouro Preto, em 1804, o dado era de 45%!” As pessoas costumam achar que agora é que houve um crescimento, mas o padrão já era alto lá no período colonial.

    RH E você acredita que a demografia histórica tem mudado nossa visão sobre o passado colonial?

    ES Bastante. As pesquisas feitas em demografia histórica são importantíssimas para conseguirmos entender melhor não só o período colonial, mas também o independente, após 1822. E eu acho que os trabalhos demográficos deveriam ser mais valorizados e mais consultados, já que esses dados coletados embasam os contextos históricos. As pessoas dizem: “Ah, eu não quero ficar trabalhando com número”. Ora, não é só isso. É feito um levantamento, que é bastante difícil e leva anos de pesquisa para poder contextualizar e compreender melhor uma dada sociedade. Só os números não bastam.

    RH Encontrou casos especiais nas pesquisas sobre o século XVII?

    ES Sim. Eu tenho mais facilidade de falar sobre o século XVIII, que é um período que eu conheço melhor. Mas, para o concurso de professora titular, resolvi fazer uma pesquisa sobre o século XVII. Fiz uma pesquisa específica sobre inventários e fiquei realmente impressionada: havia muitas mulheres no caminho do sertão. Não era só aquela história de que as mulheres ficavam e os homens iam. Não era bem assim. Eu encontrei muitas mulheres pelo caminho, algumas ricas e outras pobres. Fala-se muito de uma Maria Raposa, que morava no caminho de Mogi das Cruzes. Ela vivia sozinha em um sítio. Não dá para entender. Eu ficava pensando: “Gente, não dá para imaginar que eu encontraria uma mulher morando sozinha em um sítio no século XVII”.

    Não é surpreendente?

    RH Aquela ideia de uma mulher submissa, que fica exclusivamente em casa, não corresponde à realidade?

    ES Não é bem assim. Esse padrão existe. Eu não estou descartando a existência dessas mulheres. A minha intenção é mostrar que o quadro era muito mais colorido. Esse modelo que foi cristalizado e identificado como o da mulher do período colonial convivia com muitos e muitos outros padrões. Existiam mulheres viúvas morando sozinhas no interior, mudando com a família no povoamento. Não era só o homem que ia sozinho. Existem rupturas desse modelo que são muito importantes, que também contam uma história. É preciso ver a história sob outros prismas.

    RH Como se dá a relação entre o movimento feminista e os estudos históricos?

    ES Existem duas questões aí. Os estudos sobre a mulher e o universo feminista estão crescendo, ganhando espaço, mas ainda são vistos como um problema menor. São poucos os professores que orientam e apoiam esse tipo de pesquisa. Eu penso, inclusive, que se eu não deixar pessoas com alguns estudos de gênero, essa linha de pesquisa vai praticamente acabar aqui no departamento. Em geral, ainda veem o tema como uma “perfumaria”, um problema menor. Fazer história de mulheres é traçar uma análise da sociedade também. Agora, feminista é uma coisa que causa arrepios. A minha tese de livre-docência teve por título “O Feminismo e o Trabalho”, e eu acabei me arrependendo, porque deu problema na banca o uso da terminologia “feminismo”. É muito difícil você ir a um lugar e as pessoas dizerem “eu sou feminista”. Quando perguntam para mim “o que você faz?”, eu digo: “eu faço história de mulheres e história da família”. Dificilmente eu falo “eu sou feminista”. É muito difícil porque existe realmente um “preconceito”. Entre aspas, mas existe. Todo mundo acha que a feminista tem que ser uma mulher feia, mal-amada. Não é essa história?

    RH Ainda existe a imagem da feminista como uma pessoa problemática?

    ES Pois é. Como não encontrou um marido, não construiu sua família, não se realizou como mulher, então ela vai ser feminista. E não é nada disso. É uma coisa muito séria. O compromisso com o feminismo é uma coisa muito séria. Eu participei do início do movimento feminista nos Estados Unidos, quando estudava na Universidade de Bloomington, na Indiana University. As primeiras dissertações e todo aquele ambiente me incentivaram bastante a pensar esse assunto e me assumir como feminista.

    RH O que é ser feminista?

    ES Para mim, ser feminista é fazer a história das mulheres comprometida com as questões voltadas para as suas políticas. Então, acho que uma professora, que está na universidade, que trabalha com um tema como o da história das mulheres e das famílias, não pode deixar de ser feminista. Ela tem que estar, na verdade, compromissada com as políticas voltadas para as mulheres, com as questões relativas às mulheres. Isso é ser feminista.

    RH A representação das mulheres é tratada nos museus?

    ES Eu acompanhei esse problema de muito perto como diretora no Museu Paulista. E entendo que não existe essa preocupação de se pensar a representação das mulheres nesses grandes espaços da memória. É a mesma dificuldade que a gente sente aqui no meio universitário. O que existe num museu como o Paulista é a preocupação com a historiografia do período colonial. O museu é voltado para isso. E mesmo quando estive à frente do Museu, nós não fizemos nenhuma exposição especificamente voltada para as mulheres ou algum seminário que tratasse dessa questão.

    RH Por que escolheu estudar essa questão?

    Desde o ginásio, em Santos, eu já gostava muito das aulas de História. Eu lia muito, chegava a levar bronca dos pais para sair um pouco e não ficar só estudando. Na pós-graduação, eu pensava em estudar o trabalho livre na sociedade escravocrata, do final do século XVIII ao começo do século XIX, entre 1780 e 1830. Inicialmente, era isso que eu pretendia. Mas a pesquisa acabou me conduzindo para temáticas que eu considerei mais importantes. Encontrei muito material sobre as mulheres e sobre as famílias, fiz um capítulo sobre o trabalho feminino na sociedade escravocrata e me interessei pelo assunto. Devo dizer que o professor Boxer também foi responsável por isso. Ele foi meu orientador nos EUA, na Universidade de Indiana, onde fiquei por dois anos. O professor tinha escrito um livro chamado Mary and misogyny: women in Iberian expansion overseas, e me direcionou muito para essa área das mulheres.

    RH Novas descobertas ainda podem alterar nossos conhecimentos sobre a família no Brasil?

    ES Sim. Depois que eu fiz meu doutorado, escrevi muito sobre as mulheres e a família. E foi uma coisa que me cativou bastante. Mais recentemente, comecei a trabalhar com os inventários. E não é que eu fiquei realmente apaixonada pela coisa? Passei a procurar nos inventários aquelas pessoas que eu havia encontrado nas minhas primeiras pesquisas sobre as mulheres e a família lá nos anos 70, e descobri documentos sobre o brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão e sua esposa, Gertrudes Galvão de Oliveira Lacerda. Aí vocês vão falar: “Ah, mas o que tem isso de interessante?”. Quando fiz o doutorado e estudava sobre casamentos, esbarrei no contrato de casamento desse casal. E ele queria tudo para si e não deixava nada para ela. Era um contrato de casamento que merecia ser lido.

    RH De que período?

    ES Ele é exatamente de 1820. É um contrato de casamento realmente magnífico. Bom, não para a Gertrudes, não é? O documento previa tudo: o que aconteceria em caso de divórcio ou se eles tivessem filhos... Eu fiquei muito curiosa com aquilo, já lá nos anos 70. O contrato me deixou cheia de interrogações. Mas, desde então, não tinha encontrado mais nada sobre o casal. Imagine, então, a minha surpresa quando encontrei o inventário do brigadeiro?!

    RH Como foi isso?

    ES Foi incrível. A primeira folha do inventário dele é o contrato. Eu tinha encontrado essa folha não sei onde, em alguma das pesquisas que fiz para o meu doutorado. E eu ficava imaginando que um dia eu daria continuidade àquelas questões. Agora estou podendo fazer isso. Com esse novo documento eu poderia responder a todas as minhas dúvidas. E o inventário dele é uma coisa enorme, com cinco volumes. Então, vocês não sabem o que aconteceu? Ele se casou em 1820 e morreu em 1826. O casal teve seis filhos, um por ano. Ele era riquíssimo, senhor de engenho em Itu, tinha negócios em São Paulo e no Rio de Janeiro. E o que é mais interessante é que a Gertrudes ficou como gestora dos bens. É uma história que precisa ser contada.

    RH E o inventário dela?

    ES Eu também encontrei, mas ainda preciso estudá-lo. São seis volumes. A Gertrudes morreu bem depois do brigadeiro. Ele mal casou e já fez o contrato. Estava feliz da vida achando que ia dar tudo certo, com um filho por ano, como era o costume entre essas famílias ricas. Esse é o material das minhas próximas pesquisas. Se der tempo, quero estudar os filhos para saber o que aconteceu com eles. Parece que uma menina morreu cedo, poucos dias antes do falecimento do pai. É uma família que realmente instiga você a fazer um trabalho detetivesco. Fazia tempo que eu não achava uma coisa assim que me motivasse tanto. Eu estudei outras famílias, mas agora eu vou estudar uma família de elite. Preciso contar essa história.

    RH Esse é o papel do historiador?

    ES Sim. É preciso sublinhar o descompasso entre a memória que a gente cria e o que a documentação vai mostrando. Esse é o nosso papel. O historiador precisa descobrir temas novos. Por isso fiquei tão feliz quando encontrei essa documentação. Eu já não aguentava mais fazer aquelas mesmas pesquisas. Eu precisava desse novo entusiasmo. Eu queria contar outras histórias.

    RH A mídia fala hoje de uma mudança nos padrões familiares do Brasil. Isso acontece de fato?

    ES Claro. A situação da mulher mudou bastante, e as famílias contemporâneas têm as suas particularidades. No entanto, vez ou outra, a mídia comete alguns escorregos por puro desconhecimento, como no caso das mulheres chefes de família no período colonial.  E faltam obras gerais destinadas às escolas. Nós precisamos de livros para o grande público que contem outras histórias que não aquelas que nós já conhecemos.

    RH O que representa a chegada de uma mulher à Presidência?  

    ES Eu fiquei muito feliz de ver uma mulher presidente do Brasil. As mulheres sempre ocuparam postos secundários. Isso é verdade mesmo nos altos escalões. Sempre foram os homens que tiveram as posições de frente. E eu acho que, com a presença da Dilma, esse cenário de dominação masculina está começando a mudar um pouco. Na verdade, não é o gênero que importa, mas a qualificação da pessoa.

    RH Como tem visto a atuação do Estado em relação a políticas voltadas para a mulher?

    ES Eu acho que ainda é muito tímido, embora tenha havido melhoras nestes últimos anos. Estive recentemente em um prêmio sobre gênero que é vinculado não só ao CNPq, mas também à Secretaria de Políticas para as Mulheres [ Prêmio “Boas Práticas na Aplicação, Divulgação ou Implementação da Lei Maria da Penha”]. Já estamos na sétima edição desse prêmio. Isso significa que, de sete anos para cá, as políticas sobre as mulheres passaram realmente a ocupar um lugar na política brasileira. Ainda é um cenário bastante restrito, há muito o que conquistar, mas as mulheres estão ocupando espaços e aos poucos conseguindo esses lugares mais específicos, como é o caso da Presidência da República e dos ministérios. E a verdade é que as mulheres tinham mesmo dificuldade de se inserir na política.

    RH Por quê?

    ES Para a gente preencher as cotas referentes às mulheres era muito difícil. Nem todas as mulheres estavam preparadas para ocupar cargos mais importantes. Veja o caso do universo acadêmico. Aqui na Faculdade de Filosofia, o predomínio é das mulheres, seja entre os alunos, seja entre os professores. Mas você chega no Conselho Universitário e só vê quadros masculinos, os antigos diretores. Então, só agora teremos uma mulher que vai ter o seu quadro pintado como diretora... É sinal de que as coisas estão mudando mesmo.


    Eni Samara – Obras da autora / Verbetes

    A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
    As mulheres, o poder e a família. São Paulo: Anpuh/Marco Zero/Fapesp, 1989.
    Família e grupos de convívio. São Paulo: Marco Zero/Anpuh, 1989.
    Família e vida doméstica no Brasil: do engenho aos cafezais. São Paulo: Humanitas, 1999.
    Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII. Bauru: Edusc, 2003.
    O papel do agregado na região de Itu (1780-1830). São Paulo: Museu Paulista, 1977.


    Verbetes

    Charles R. Boxer (1904-2000)
    Historiador britânico que se notabilizou como grande especialista na história da expansão e do domínio colonial português. Entre outras obras, publicou O Império Marítimo Português (1969).

    Gilberto Freyre (1900-1987)
    Antropólogo nascido em Pernambuco, é considerado um dos grandes autores da historiografia brasileira. Escreveu, entre outros títulos, o clássico Casa-Grande & Senzala (1933).