A humanidade prendeu a respiração naquela semana de outubro de 1962. Entre os dias 22 e 28, o planeta acompanhou, incrédulo, a mais grave de todas as crises do período da Guerra Fria, a tensão entre os blocos capitalista e comunista, liderados, respectivamente, por Estados Unidos e União Soviética, entre 1947 e 1991. Documentos secretos recentemente disponibilizados no Brasil e em outros países confirmam a extrema gravidade daquele episódio. O mundo esteve à beira da Terceira Guerra, do holocausto nuclear e, eventualmente, do extermínio da humanidade. Quase meio século depois, a crise dos mísseis soviéticos em Cuba ainda é motivo de debates acalorados.
A descoberta de bases soviéticas em território cubano, onde eram montados 42 mísseis de alcance intermediário com ogivas nucleares dez vezes mais poderosas que as lançadas contra Hiroshima, e com capacidade para atingir quase todo o território dos Estados Unidos – bem como outros países do continente americano –, deu início à crise sem precedentes no pós-Segunda Guerra. Em 22 de outubro de 1962, o então presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy (1917-1963), anunciou em rede nacional de rádio e televisão a imposição do que chamou de “quarentena”, que, na verdade, era um bloqueio naval, estendido a todos os navios suspeitos de transportar armas ofensivas em direção à ilha de Cuba, que adotara o socialismo em 1961 e se aproximara da URSS.
Kennedy também exigiu a imediata retirada dos mísseis e bombardeiros soviéticos do país caribenho, determinou rigorosa prontidão das Forças Armadas americanas em todo o planeta e manifestou interesse numa saída negociada que pusesse fim ao conflito. Ao mesmo tempo, o governo revolucionário comandado por Fidel Castro desde 1959 anunciou mobilização nacional em Cuba e a disposição de resistir em caso de invasão da ilha. O governo soviético, então dirigido pelo premier Nikita Kruschev (1894-1971), anunciou medidas semelhantes, ainda que menos ostensivas. Outros países também reagiram à situação tão preocupante criada na bacia do Caribe.
O antecedente que levou à crise dos mísseis foi, certamente, o temor das lideranças revolucionárias cubanas diante da evidente e comprovada hostilidade norte-americana. A Revolução Cubana pôs fim à ingerência dos EUA na ilha, provocando a retaliação dos vizinhos. Em abril de 1961, a Agência Central de Inteligência (CIA) patrocinou uma fracassada tentativa contrarrevolucionária na Baía dos Porcos – de modo resumido, uma força expedicionária integrada por cubanos contrarrevolucionários comprovadamente vinculados à inteligência norte-americana tentou desembarcar na ilha, constituir um governo de fato, solicitar o reconhecimento de Washington e marchar para Havana; contudo, a iniciativa acabou fracassando pela eficiente reação militar do regime revolucionário. Mesmo assim, poucas semanas depois desse fiasco, o governo Kennedy pôs em marcha a Operação Mangusto, com o objetivo de derrubar Fidel. Nessa linha, Washington lançou mão de medidas econômicas, políticas, diplomáticas e, no limite, militares. Paralelamente, as autoridades máximas soviéticas foram informadas de que a instalação de mísseis em Cuba poderia compensar a presença de mísseis norte-americanos na Turquia, na Itália e na Inglaterra – todos eles muito próximos do território da União Soviética. Aparentemente, os soviéticos também consideravam que a instalação de mísseis na ilha caribenha forçaria o reconhecimento norte-americano do processo revolucionário cubano. Era essa a lógica da operação batizada de Anadyr, aprovada por soviéticos e cubanos em março de 1962.
Em sigilo absoluto, a partir de abril, 42 mísseis, 40.000 soldados e modernos armamentos soviéticos foram transferidos para Cuba. Na opinião dos soviéticos, a operação só deveria se tornar pública depois de tudo pronto, o que estava previsto para o mês de novembro daquele ano. O governo cubano defendia que a Anadyr deveria ser amparada em acordo público entre os dois países soberanos. O controle dos mísseis continuaria sob comando dos oficiais soviéticos. Tudo corria aparentemente bem até que aviões espiões norte-americanos confirmaram, em 15 de outubro, a presença das modernas e letais armas soviéticas na ilha.
O pronunciamento de Kennedy, em 22 de outubro, provocou dramáticas reações no mundo todo. Mesmo que a quarentena – ou bloqueio naval – fosse aprovada em resolução da Organização dos Estados Americanos, a medida não tinha fundamentação no direito internacional. Na época, eram muitos os navios e submarinos soviéticos que navegavam em direção aos portos cubanos. Felizmente, o governo soviético determinou o retorno da maioria desses navios, evitando um choque direto com as forças navais norte-americanas na região, o que poderia dar início a hostilidades e, eventualmente, ao holocausto nuclear.
Ainda que a quarentena imposta aos cubanos a partir de 24 de outubro desse a impressão de que tudo funcionava relativamente bem, o desmantelamento dos mísseis e a retirada de determinadas aeronaves soviéticas de Cuba provocaram grande tensão em Washington. Na época, a administração Kennedy avaliou diferentes alternativas, especialmente os ataques cirúrgicos contra as plataformas de lançamento dos mísseis, a cooptação da elite revolucionária cubana, a decretação de um bloqueio total ou a invasão da ilha. Havia prós e contras em todas as sugestões, por conta de [ou por conta da possibilidade de retaliações?]retaliações soviéticas na Turquia, na Alemanha, no Irã e no Vietnã, onde os Estados Unidos mantinham bases militares.
As jornadas de 25 e 26 de outubro foram particularmente intensas. De um lado, oficiais norte-americanos de alta patente pressionavam fortemente o presidente Kennedy, reivindicando o início das ações armadas contra o território cubano. De outro, em 26 de outubro, Castro enviou a Kruschev carta reivindicando um ataque preventivo da União Soviética contra os Estados Unidos, na hipótese de um ataque norte-americano contra Cuba. De qualquer modo, nesse mesmo dia o dirigente soviético decidiu propor uma solução negociada diretamente ao governo norte-americano.
A solução da crise foi alcançada mediante acordos diretos entre a Casa Branca e o Kremlin. O entendimento Kennedy-Kruschev, de 27 e 28 de outubro de 1962, permitiu o desanuviamento das tensões. Esse acordo implicou a retirada dos mísseis, da maioria das tropas e dos bombardeiros soviéticos de Cuba, a promessa norte-americana de não invadir a ilha caribenha e o compromisso ultrassecreto dos americanos de não renovar e, posteriormente, desmantelar seus mísseis instalados na Turquia, na Itália e na Inglaterra.
Foi nesse contexto que teve início a retirada das armas e tropas soviéticas. O procedimento foi acompanhado em alto-mar devido à inflexível posição cubana, que não permitiu a verificação em terra, com argumentos de defesa da soberania do país. Em 7 de janeiro de 1963, foi emitida Carta Conjunta Soviético-Americana, endereçada ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas, com o anúncio do fim oficial do episódio.
O desfecho da crise dos mísseis soviéticos em Cuba provocou numerosos e significativos desdobramentos no continente americano e no mundo. A sobrevivência da humanidade foi garantida. O regime revolucionário cubano foi em frente, apesar do abalo sofrido no relacionamento com a União Soviética. Na maioria dos países latino-americanos, iniciou-se uma onda de regimes autoritários inspirados na chamada doutrina da segurança nacional criada pelos Estados Unidos, que implicava a utilização de forças armadas dos países alinhados aos norte-americanos para combater a ideologia comunista. E as relações cubano-americanas continuaram tensas. Meses depois, Kruschev foi demitido, Kennedy foi assassinado, e Fidel estabilizou o regime revolucionário.
Meio século após a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, a conclusão é que o suicídio global pode ter sido apenas adiado, pois o holocausto ainda é ameaça em pleno século XXI. São dez os países que têm armas nucleares, e aos que verdadeiramente prezam o equilíbrio resta apoiar a desnuclearização do continente e do mundo.
Carlos Federico Dominguez Ávilaé doutor em História das Relações Internacionais, professor do Centro Universitário de Brasília e do Centro Universitário Unieuro e autor da tese “Opondo-se ao intervencionismo: O Brasil frente ao conflito regional na América Central (1979-1996)” (UnB, 2003).
Iniciativas brasileiras no contexto da crise
Na época da crise dos mísseis, o presidente João Goulart teve algumas importantes iniciativas político-diplomáticas:
– Inicialmente, acompanhou a posição norte-americana, dentro da Organização dos Estados Americanos, a favor do estabelecimento de uma quarentena contra Cuba, por causa da presença na ilha de armas consideradas ofensivas. Porém, a partir de 25 de outubro, o governo brasileiro abandonou o alinhamento aos Estados Unidos, reivindicou equidistância e passou a promover uma saída negociada para a crise.
– Também emitiu mensagem de moderação para as lideranças cubanas, e os diplomatas brasileiros em Havana foram instruídos pelo Itamaraty a procurar interlocutores cubanos de alto nível tentando evitar ações precipitadas. E nos últimos dias da crise, o governo brasileiro enviou a Cuba uma missão de alto nível, chefiada pelo general Albino Silva, que teve um encontro com Fidel Castro.
– Impulsionou a iniciativa de criação da primeira zona livre de armas nucleares no mundo, acordo que finalmente foi aprovado no marco do denominado Tratado de Tlatelolco (de 1967), e que vigora até hoje.
– Propôs uma eventual “neutralização” ou “finlandização” de Cuba, procurando evitar que o confronto Leste-Oeste provocasse novos conflitos na América Latina. Essa e outras propostas semelhantes vieram a confirmar a validade dos argumentos da denominada Política Externa Independente, posta em prática durante os governos de Jânio Quadros e João Goulart.
Saiba Mais - Bibliografia
ALLISON, Graham, e ZELIKOW, Philip. Essence of Decision: Explaining the Cuban Missile Crisis. 2ªed. Nova York: Longman, 1999.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
FRANCO, Álvaro da Cunha (compilador). Documentos da Política Externa Independente. Brasília: Funag, 2008.
GADDIS, John Lewis. História da Guerra Fria. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006.
Saiba Mais - Filmes
“Treze dias que abalaram o mundo”, de Roger Donaldson, com Kevin Costner e Bruce Greenwood, 2000.
“O Bom Pastor”, de Robert De Niro, com Matt Damon e Angelina Jolie, 2006.
Documentários:
“On the Brink of Destruction: The Cuban Missile Crisis”.
“Cuban Missile Crisis: On Verge of WW3”.
Ensaio geral do fim
Carlos Federico Dominguez Ávila