Entre o exótico e o exato

Marco Morel

  • Índios vivos – e ao vivo –, expostos como num zoológico humano. Eram eles a grande atração da Exposição Anthropologica Brazileira, inaugurada na cidade imperial do Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1882, tornando-se expoente das grandes feiras da modernidade que marcaram os séculos XIX e XX. Organizada pelo Museu Nacional, a exposição causou sensação e foi resultado de algumas convergências expressivas: um “imperador-filósofo” e chefe de Estado, d. Pedro II, patrono das ciências nos trópicos; a antropologia, que se afirmava como disciplina, e a permanência, neste mesmo território nacional, de grupos indígenas que viviam dentro de seus padrões culturais. Com tais ingredientes, a mistura foi, pelo menos, original: poucos esforços de divulgação científica marcaram de maneira tão nítida o cruzamento entre conflito, ciência e espetáculo no apagar do século XIX.

    Segundo seu principal organizador e diretor do Museu, Ladislau Netto (1838-94), a mostra se converteu em uma “aplaudida festa científica”. Onde começa a separar-se o lazer da ciência? Como definir a fronteira entre o exótico e o exato? Na verdade, a Exposição Anthropologica colocava nas vitrines não apenas os índios, seus artefatos, imagens e ossos, mas igualmente a teia da organização, os cientistas, os colecionadores, enfim, a própria sociedade que assistia ao empreendimento científico. Assim, para preencher os pavilhões da Exposição, armou-se longa e poderosa malha burocrática interligando diferentes setores da administração pública à população indígena. Dessa maneira, a organização desse evento acaba por mostrar duas faces: de um lado, um rigoroso e definido projeto de integração nacional através da união e conhecimento de seu povo e, de outro, certa dose de improvisação, de correrias contra o tempo e de súplicas de verbas aos detentores do orçamento.

    Desde novembro de 1881 o Ministério da Agricultura (ao qual estava subordinado o Museu Nacional) espalhara ofícios por todo o Brasil solicitando a coleta de materiais: cerâmicas, artesanatos, armas e utensílios indígenas, enfim, artefatos típicos de cada região. Dessa maneira, formou-se uma poderosa articulação para o envio de objetos vindos de diferentes pontos do país, da floresta amazônica aos pampas gaúchos. Moviam-se tentáculos partindo de ministérios, presidentes de províncias, câmaras municipais, chefes de comissões, diretores de colônias, de aldeamentos e serviços de catequese.

  • A engrenagem já funcionava de forma bem-sucedida quando surgiu a idéia de apresentar – para “incrementar o evento” – “espécimes vivos”, isto é, índios, desde que fossem de “aquisição fácil e rápida”. A decisão não era ingênua. Tratava-se de chamar a atenção do público urbano através da proximidade com tribos tradicionalmente associadas à legenda de ferocidade e invencibilidade. Foram então escolhidos índios coroados e botocudos, conhecidos como índios bravos.

    Nada na exposição parecia casual. A própria escolha da capital do país de dimensões continentais como local para a Exposição também tinha um sentido. O Rio de Janeiro era visto pelos organizadores como “cadinho antropológico em que há três séculos vivem e fusionam-se as mais distintas raças”. Ou seja, reafirmava-se o caráter nacional e mestiço da cidade-Corte, apontada como local privilegiado de gestação da nação moderna, através da eliminação das diferenças não apenas regionais, mas étnicas. Os diretores do Museu Nacional (além de Ladislau Netto, João Batista de Lacerda e José Rodrigues Peixoto), aproveitando o embalo, solicitaram, como reforço, a criação da Seção de Antropologia – pedido negado naquele momento, mas que demonstrava a organização do evento “espetacular” articulada à tentativa de afirmação da antropologia como disciplina no Brasil.

    Ao lado da eficácia administrativa, expunha-se nos trópicos uma ciência respingada de sangue. A Coroa imperial, inclusive sob comando de d. Pedro II, tolerava agressões aos índios em nome do triunfo da civilização nos territórios ainda não dominados. Gerou-se daí essa condição ambígua, em que os índios e seus artefatos eram considerados ao mesmo tempo objetos científicos, adversários de guerra e ainda potencial mão-de-obra ao longo do século XIX no Brasil.

  • Um exemplo dessa explícita contradição: na Sala Vaz de Caminha figuravam “flechas arrancadas do cadáver dissecado de Silvério da Costa Alecrim, morto pelos botocudos na lagoa Grande, perto de Filadélfia”, em 17 de maio de 1882. Ainda estavam em exposição as flechas “tomadas no ribeirão da Prata aos selvagens que atacaram a expedição de trinta homens do major Jorge Lajes da Costa Moreira, diretor da colônia militar de São Lourenço, de Mato Grosso”. E na Sala Peter Lund era possível ver o “crânio de um indígena xavante, morto por ocasião do assalto da Fazenda do Jaguareté, em 1876”. E ainda figurava entre os objetos um “fuzil dos botocudos do rio Doce”, na Sala Gabriel Soares. Mas seria possível considerar um fuzil como peça etnográfica?

    Está claro que tais artefatos e restos humanos eram apresentados como troféus de guerra com a intenção de aguçar a curiosidade do público e mostrar a atualidade de um embate que ainda ocorria no Brasil, embora distante dos principais centros urbanos. Os índios apareciam como contraponto, espelho invertido e sobretudo degrau inferior de uma escada que conduziria aos céus do progresso.

    O espetáculo da nação moderna estava pronto. Assim, inaugurava-se num sábado de julho, contando com público em grande número, a Exposição Anthropologica Brazileira. D. Pedro II, além de patrono maior, foi o visitante número 1 do evento, percorrendo a mostra com grande curiosidade, postura, aliás, repartida com outros tantos espectadores, que exploravam as diversas salas de exibição.

  • Na Sala Vaz de Caminha, que homenageava o autor do primeiro texto escrito sobre o território brasileiro (e também, nessa perspectiva, o primeiro relato etnográfico), havia quarenta itens expostos, dentro da classificação justamente de etnografia: flechas, lanças, zarabatanas, enfim, diversos instrumentos de caça e pesca. Passando para a Sala Alexandre Rodrigues Ferreira, os visitantes entravam no espaço nobre do evento, onde estavam expostos 113 artefatos que compunham boa parte do próprio Gabinete de Curiosidades do Imperador (coleções particulares de reis, nobres e pessoas ricas, que juntavam preciosidades históricas, artísticas e arqueológicas) e englobavam dezenas de tribos das diversas regiões do Brasil, da Amazônia ao Sul. Havia ainda aquarelas feitas pela expedição de Rodrigues Ferreira, que entre 1783 e 1792 percorrera as capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, sendo a primeira iniciativa de envergadura nesse sentido promovida pela Coroa portuguesa na região amazônica.

    É interessante notar que havia uma Sala Jean de Léry, o escritor francês do século XVI que seria considerado no século XX como um dos paradigmas da moderna antropologia. Nessa parte da mostra, o público poderia ver 39 peças representando cerâmicas e ornamentos zoomorfos da região de Santarém. E 207 artefatos de cerâmica compunham a Sala Charles Hartt, pesquisador norte-americano que empreendera importantes expedições científicas pelo interior do Brasil e falecera seis anos antes do evento.

    Em homenagem ao pesquisador dinamarquês Peter Lund, considerado o primeiro arqueólogo do Brasil, montou-se uma sala onde foram exibidos 115 restos humanos: crânios, ossos avulsos e esqueletos completos. Havia ainda na mostra vasto material ligado à atuação do jesuíta espanhol José de Anchieta junto a populações indígenas, como manuscritos, e ainda imagens etnográficas, como pinturas, estampas, aquarelas, gravações, desenhos a crayon, medalhas e fotografias, além de um conjunto heterogêneo que agregava arte plumária, adornos, tecidos, vestes e coleções arqueológicas.

  • O empenho do governo em montar uma grandiosa exposição estava evidente para quem entrasse na Sala Von Martius, onde, em quatro armários, estavam objetos pré-colombianos oriundos do Peru e Bolívia, pertencentes ao acervo pessoal de d. Pedro II, expostos com a intenção de permitir uma comparação com o Brasil. Expunham-se ali também artefatos de palha como balaios, esteiras, tipitis, muitos dos quais já incorporados pelas populações urbanas e rurais não-índias.

    Mas ainda faltava a atração principal da Exposição: os índios em carne e osso, com lugar de destaque entre os atrativos do evento. O grande público estava interessado em ver os índios ao vivo e em cores, ainda mais se tratando dos famosos botocudos, cuja lenda de ferocidade e invencibilidade atravessava mais de três séculos. É o que transparece na visão irônica de uma testemunha, o jornalista italiano Angelo Agostini, que preferiu visitar a Exposição no domingo dia 30, a fim de evitar os discursos de inauguração:

    O Museu é tomado de assalto: (…). Tanto interesse pela ciência espanta-me; mas eu acabo por verificar que toda essa curiosidade dos visitantes é apenas para ver os índios. Com efeito, apenas entrados, percorrem, olham, caçam. Nada de índio, além de alguns de papelão, que não satisfazem totalmente a cobiça pública.

  • Agostini fez uma série de caricaturas em que satirizava d. Pedro II e seu envolvimento com o exotismo etnográfico, sendo ao mesmo tempo preconceituoso e debochado em relação aos índios, reproduzindo e realçando estereótipos de canibalismo e inferioridade.

    A presença dos botocudos – e o grande número de pessoas que queriam vê-los de perto – causou tamanho tumulto, que os índios tiveram que ser retirados da exposição. Os organizadores sugeriram que fossem então exibidos no Quartel do Corpo de Bombeiros, idéia logo descartada. Assim, os indígenas acabaram expostos na própria Quinta de São Cristóvão, o que ocorreu no domingo 6 de agosto das 11 às 15h. Ainda em São Cristóvão, no dia 20, os mesmos índios fariam uma sessão especial de cantos e danças para seleto grupo de estudiosos e cortesãos.

    Ao fim do evento, os botocudos foram levados, em setembro do mesmo ano, de volta ao rio Doce. Mas quem viu os índios e o que viram neles? O público urbano de uma sociedade massificada não raro procura nos índios, ávido de curiosidade, seu próprio espelho invertido, vendo os indígenas revestidos de utopias naturalistas, primitivismos exóticos ou mesmo de uma certa inferioridade animal. Contraste e afirmação, esse parece ter sido o mecanismo do qual fizeram parte, decerto sem saber, os botocudos “emprestados” para a capital do Império tropical.


    Marco Morel é doutor em história pela Universidade de Paris I, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador do CNPq e autor de As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820–1840), (Hucitec, 2005).