REVISTA DE HISTÓRIA Qual o papel de uma instituição como o IHGB hoje?
ARNO WEHLING Desde sua fundação, em 1838, o Instituto teve múltiplos objetivos. Dentre eles, o que mais se evidenciou por muito tempo foi a produção de conhecimento, veiculada na revista e em outras publicações. Mas, além desta, outras dimensões nas quais atua o Instituto devem ser lembradas, inclusive o seu papel como academia. O IHGB é também uma instituição de memória, o que remete à questão da identidade. A própria fundação do instituto está intimamente ligada à afirmação do Estado e à construção da nacionalidade. Trabalha permanentemente seu rico acervo documental e se preocupa com a preservação do patrimônio cultural. Não atuamos diretamente nas políticas públicas, mas podemos influenciá-las contribuindo para a sua definição. Ainda no ano passado, fizemos com o Iphan um grande seminário sobre a preservaçãodo patrimônio cultural brasileiro. Isso é importante sobretudo hoje em dia, quando o patrimônio puramente material foi acrescido do imaterial.
RH O que o senhor entende por academia?
AW Não falo de uma academia no sentido universitário, e sim na acepção renascentista da expressão. É um local em que se reúnem pessoas que refletem e discutem sobre determinados temas e questões, acentuando o traço da convivência e da pluralidade de pontos de vista característicos de uma atitude humanista.
RH Qual é a política do Instituto em relação ao colecionismo e ao colecionador?
AW Os colecionadores procuram frequentemente o Instituto. Isto é positivo. E nós procuramos estimulá-los. Às vezes oferecemos algum tipo de orientação técnica mesmo, que facilite a ele o seu trabalho. E procuramos também divulgar a coleção ou fazer nós mesmos exposições. Sem falar que o Instituto tem recebido e sempre recebeu, ao longo de sua história, doações, desde coleções documentais até louças, porcelanas. Nós temos arquivo, biblioteca e museu.
RH Esta é uma espécie de tradição do Instituto?
AW Desde o Império. Nosso museu foi criado em 1851. E seu primeiro diretor era diplomata e viajava muito: o Varnhagen. Assim, parte significativa do nosso acervo arquivístico, biblioteconômico e museológico se constituiu por meio de doações. Este patrimônio o Instituto tem procurado organizar, preservar e disponibilizar para o público, o que explica o seu papel como importante local de consulta para pesquisadores da História do Brasil.
RH De onde vem o seu gosto pela História?
AW A verdade é que não sei. Sempre gostei de História, de conhecer o passado, mesmo quando ainda não tinha uma boa noção cronológica. E nunca tive dúvidas a respeito de minha opção profissional. Sabe aquela fase em que nos perguntamos o que vamos fazer da vida? Sempre quis estudar História e lecionar. Foi uma decisão absolutamente intuitiva e empática.
RH A docência também o influenciou?
AW Claro. É algo que me dá prazer até hoje. Mesmo quando exerci funções na administração universitária, sempre reservei tempo para lecionar pelo menos uma turma na graduação e outra na pós-graduação. Esse contato com os alunos sempre me fez muito bem. É extremamente estimulante, porque as dúvidas e os questionamentos que nascem na sala de aula ajudam na elaboração do pensamento e são importantes para a reflexão histórica, para o desenvolvimento das pesquisas. Essa relação entre o ensino e a pesquisa constitui a essência da profissão.
RH Quais foram seus primeiros passos na vida acadêmica?
AW Na graduação, feita na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, destaco a importância das orientações e influências díspares de Guy de Holanda, Hélio Viana (com os quais iniciei as atividades de pesquisa), Eulália Lobo, Maria Yeda Linhares e Lydinéa Gasman. No doutorado, na USP, embora tenha iniciado com Sérgio Buarque de Holanda como meu orientador, ele logo se aposentou. Então, fui orientado por Eduardo Oliveira França, que tinha sido aluno de Fernand Braudel e alimentava uma ligação muito forte com a historiografia francesa, especialmente com a tradição dos Annales, e com quem mantive vínculos muito estreitos durante toda a sua vida.
RH Qual o impacto dessa formação na sua trajetória?
AW Eu diria que a influência que o professor França teve sobre mim não se deu apenas por ele ser um discípulo dos Annales. O professor era bastante criativo, e o contato com ele era estimulante. Era muito exigente, um excelente formulador de problemas e um paciente e perseverante orientador, a quem devo muito. Participei de uma homenagem a ele na USP em 2003, dois meses antes do seu falecimento, quando já tinha 88 anos. O França contribuiu para uma importante renovação metodológica dos estudos históricos no Brasil e para a ampliação do quadro de historiadores. Ele foi, basicamente, um orientador de pesquisadores e participou do momento em que havia um espírito universitário francês no Brasil. Agora, embora os Annales fossem a grande referência, havia outras opções historiográficas que também me interessavam. E os próprios Annales já estavam, nos anos 70, em uma transição para uma geração mais voltada para a economia e a demografia, para o que viria a ser depois a história das mentalidades e a história cultural.
RH Metodologia e teoria devem estar sempre lado a lado?
AW São duas áreas que não devem estar separadas, mas a teoria não pode ser mera introdução ao método. Ambas só realizam seu fim científico no confronto com o mundo empírico – os documentos. Em minhas aulas, eu insistia muito sobre o caráter – não independente, mas autônomo – da epistemologia, da teoria da História, como uma espécie de consciência crítica da produção do historiador. Gosto de assuntos teóricos, mas, ao mesmo tempo, sei perfeitamente que, como historiador, tenho um compromisso com o documento, com a conjuntura do passado. Mas creio que há muita coisa por fazer no âmbito da teoria e da metodologia. Por que isso? Porque o campo privilegiado para o estudo da construção de uma ciência é a sua história. E a história da história é a historiografia. Isso ocorre também nas demais ciências, sociais ou não, o que justifica a afirmação de Canguillem, para quem a história de uma ciência é o laboratório de sua epistemologia.
RH É possível ser um historiador e trabalhar um tema sem estar preocupado com uma reflexão teórica?
AW Eu acredito que não. Para se formular um problema, é preciso conhecer o estado das discussões de determinada questão e saber equacionar isto, elaborar a pergunta adequada a partir de alguns pressupostos teóricos e metodológicos. Não podemos esquecer a metodologia. Além disso, existe um outro tipo de conhecimento, meramente informativo. Estou me referindo a uma espécie de acúmulo de dados, quer dizer, aquilo que já se chamou de história antiquária. Pelo contrário, qualquer abordagem que procure efetivamente dar uma contribuição para o conhecimento histórico conforme nós o entendemos hoje tem que partir de uma formulação teórica que esteja em permanente diálogo com as fontes. Mas há uma importante ressalva a fazer: essa relação teoria-prática não precisa obrigatoriamente corresponder a um aparato formal. Há muitos trabalhos em que isso é magistralmente realizado sem sua explicitação. É como a situação de monsieur Jourdain, que falava em prosa sem saber.
RH O senhor acha que a historiografia brasileira contemporânea tem feito esse esforço?
AW A historiografia brasileira é muito rica e diversificada, até pelo grande número de programas de pós-graduação que temos nos institutos de pesquisa e nas universidades. Existe uma sofisticação metodológica e teórica que não havia alguns anos atrás, certamente devido ao desenvolvimento, à profissionalização da História nos programas de pós-graduação. Outro elemento é a própria valorização dos temas relativos à teoria, à metodologia e à historiografia, que, há 40 anos, muitas vezes eram confundidos com filosofia da História.
RH O diálogo mais intenso com a historiografia portuguesa também influi neste cenário?
AW Toda e qualquer abertura que implique pôr em contato experiências culturais e científicas diferentes me parece positiva, porque enriquece e consolida nosso conhecimento. Isso ocorre em relação a várias historiografias de outros países. Assim, o nosso conhecimento sobre o passado brasileiro se consolida e se enriquece com essas diferentes perspectivas. É o que ocorre quando Stuart Schwartz faz uma reflexão sobre os engenhos coloniais ou sobre o Tribunal da Relação da Bahia fundamentado numa determinada tradição historiográfica norte-americana, ou quando António Manuel Hespanha trabalha numa perspectiva das relações luso-brasileiras. Isso só contribui para aperfeiçoar o conhecimento histórico, ultrapassando fronteiras e idiossincrasias nacionais.
RH As instituições portuguesas que foram transplantadas para o Brasil ainda têm resquícios do período colonial?
AW Esse é um problema que deve ser abordado de duas maneiras. Sob o ângulo da sobrevivência de instituições ou situações defasadas da contemporaneidade, ainda há entre nós persistências, embora se diluindo, aparentemente, de forma muito rápida. Por outro lado, o passado colonial faz parte de nossa História, e não seríamos o que somos sem ele. Estamos falando de um processo histórico.
RH Mas essas instituições sofreram alterações quando instaladas aqui ou os portugueses simplesmente impunham o seu mundo?
AW Isto já foi muito discutido em nossa historiografia. A partir das capitanias e da instalação do governo geral em Salvador, em 1549, passa a haver uma preocupação de trazer as instituições para o Brasil. Mas, ao mesmo tempo, há uma adaptação dessas instituições às condições locais. Costuma-se traçar um paralelo entre a colonização portuguesa e a espanhola e dizer que simplesmente a segunda foi mais institucionalizada desde o início, enquanto a primeira teve mais um caráter comercial e predatório. Isso só é válido para um período muito inicial da nossa História. Mas, certamente, as instituições se adaptam às circunstâncias coloniais, como aconteceu não somente no Brasil, mas também na África e no Oriente.
RH E casos como o da Câmara Municipal?
AW A Câmara Municipal é bom exemplo de transplante de instituições. Ela corresponde ao Concelho português, mas também absorve as diversidades locais. É onde se recolhe a experiência social e jurídica daquela comunidade. Então, as coisas não se davam por uma mera determinação do poder central, como nós fazemos hoje. Do Oiapoque ao Chuí, frequentemente se discute isso, critica-se muitas vezes a falta de adequação regional. Embora Portugal tenha uma característica centralizadora forte desde o final da Idade Média, há uma preocupação com essas expressões do poder local. Isso se traduz tanto social quanto juridicamente.
RH Perdemos a tradição municipalista ao longo dos séculos XIX e XX?
AW Bem, certamente. Um dos traços mais fortes do processo de estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro, e depois na Independência, foi o esforço centralizador. Há uma posição contrária ao regionalismo, que eventualmente pode resvalar sobre o município. Por exemplo, Capistrano de Abreu se referia à saída de D. João em 1821 da seguinte maneira: “Bem, agora, já há um esboço de unidade do país”. Ele não entra no detalhe para saber se essa unidade é estatal ou nacional, mas identifica a existência de uma unidade. Então se percebe que, de certa maneira, esse poder local acaba atrofiado pelo esforço de unificação e de centralização, muito evidente no Império. E esse processo de hipertrofia do poder central, a despeito do federalismo republicano, só fez se acentuar no caso dos municípios.
RH O que acha das correntes que culpam a colonização portuguesa por nossas mazelas sociais?
AW A colocação do problema me parece equivocada. Um processo colonial é, por definição, centrado no colonizador, ou não seria colonial. A partir dessa ótica, tanto faz a colonização ser portuguesa, inglesa, holandesa ou francesa. O que caracteriza essencialmente a realidade, no caso a brasileira, é o substantivo colonização. Basta lembrar que a Indonésia, uma região de colonização holandesa, não se transformou em nenhum país de Primeiro Mundo por causa disso. Quanto à colonização inglesa nos Estados Unidos, quando o governo inglês aplicou de fato a política mercantilista, os americanos simplesmente se rebelaram. O problema está na colonização, e não em quem coloniza.Além do mais, este raciocínio por culpa pode nos isentar, inclusive, de muitas responsabilidades.
RH E as críticas à Justiça? Estaríamos vivendo ainda no Antigo Regime?
AW A história do Direito e das instituições em geral tem tido um papel significativo nas minhas pesquisas dos últimos anos. O que percebi é que essa questão está mais relacionada ao conjunto da sociedade do que propriamente à administração da Justiça ou ao nosso Direito. Ou seja: esses problemas que afetam a Justiça e o Direito são concretos, mas não podem ser isolados do contexto social em que ocorrem; a Justiça de um país é um retrato de sua sociedade. Essa percepção da existência de limitações na Justiça se torna mais aguda no momento em que o Brasil redefine suas aspirações no sentido do aumento da produtividade econômica, da elevação do nível de vida da população e da democratização das oportunidades. Tudo isso leva a diferentes questionamentos, inclusive do acesso à Justiça e de sua eficácia.
RH Essas deficiências têm raízes históricas?
AW As deficiências têm raízes históricas, tanto remotas quanto mais recentes, porque estamos falando da evolução multissecular de uma sociedade e de suas instituições. No caso colonial, isso se evidencia na aplicação da Justiça no Brasil, ela própria fortemente patrimonialista e, por exemplo, incapaz de confrontar, nos sertões, o mandonismo rural.
RH Essas raízes são percebidas no estudo doDireito?
AW O que se percebe no Direito é que, depois da Constituição da Revolução Francesa e dos Códigos Civil, Penal e dos processos, houve uma tentativa, que alguns historiadores do Direito chamam de “absolutismo jurídico”, que consiste em ordenar toda a vida social a partir do Direito. A lei é o parâmetro fundamental dessa concepção. Isso também está, de outra maneira, em Robespierre, em plena revolução, quando ele diz que não deveria haver jurisprudência, mas a pura e simples aplicação da lei. Mas esse mundo do absolutismo jurídico ou legal está sofrendo sérios questionamentos no espírito da pós-modernidade na virada do século XX para o XXI, o que nos faz retornar com novas perguntas ao mundo do Antigo Regime.
RH Poderia dar um exemplo disso?
AW A própria relativização do poder do Estado e da soberania. Afinal, o estabelecimento de normas internacionais às quais o Estado deve aderir representa uma diminuição da potência estatal e, portanto, da soberania. O Tribunal Penal Internacional, em Haia, é um exemplo. Você vai dizer: bom, qual a relação com o Antigo Regime? O que estamos vendo hoje é a tendência a querer mais sociedade e menos Estado. Era o que acontecia no Antigo Regime. Naquele momento, em especial durante os séculos XVI e XVII, havia uma monarquia absoluta, não por ser totalitária, e sim por não haver nenhum poder acima dela. Essa monarquia, embora absoluta, é limitada, porque convive com corpos e grupos sociais, com privilégios e normas protetoras. O rei precisa respeitar as diferentes fontes do Direito; a lei real é apenas uma entre muitas normas jurídicas existentes.
RH Como o senhor vê o interesse renovado da sociedade hoje em relação à História?
AW Isso certamente é muito positivo. Uma abertura para o passado também auxilia na percepção da alteridade no presente. Acho que essa sensibilidade para a diferença é o melhor ganho que se tem nisso.
RH Os historiadores estão preparados para esse diálogo com a sociedade?
AW Eu creio que sim. Acho que os historiadores fazem parte de uma comunidade na qual as referências são bastante cifradas, muitas vezes herméticas mesmo. Isso faz parte do próprio desenvolvimento científico. Há conceitos, hipóteses, explicações, enfim, há uma série de elementos que caracterizam um campo do conhecimento. O historiador hoje em dia tem sido sensível, sobretudo as gerações mais novas, a esse duplo compromisso ou potencialidade de atuação. O que não elimina também a cooperação. Assim como, muitas vezes, para resolver um problema científico você lança mão da interdisciplinaridade e usa elementos da Sociologia, da Antropologia, da Economia, etc, também no plano da divulgação cultural, em alguns momentos, o historiador deve se associar ao jornalista, ao homem da comunicação. Ele talvez saiba chegar lá com mais facilidade. Sou bastante otimista.
Entrevista - Arno Wehling
Rodrigo Elias