A beleza do amanhecer em Fordlândia causa impacto. Chegar ao porto, após não menos que dez horas de viagem de barco, e deparar-se com aquelas lindas colinas e a imponente caixa d´água com os primeiros raios de sol é uma experiência difícil de esquecer. Entretanto, não foi a bela paisagem que motivou a Companhia Ford a instalar na Amazônia brasileira, em fins de 1920, um núcleo urbano com casas montadas, escola, hospital, escritórios e ruas impecavelmente limpas. Estava fincada ali, em plena Amazônia brasileira, uma cidade aos moldes norte-americanos.
Tudo engenho e obra do empreendedor Henry Ford, que encontrou nas terras paraenses a possibilidade de investir no negócio da borracha, driblando o monopólio inglês da extração do látex na Ásia e garantindo, dessa maneira, a produção de pneus para seus automóveis. Assim, nascia Fordlândia, às margens do Rio Tapajós.
Ford era, de fato, um homem de realizações concretas. Em 1903, aos 40 anos, criou a poderosa companhia de carros que levava seu nome. Na década de 1920, preocupava-se com o monopólio inglês da borracha que poderia inviabilizar a produção dos pneus para seus produtos. O Brasil vivera, a partir de meados do século XIX, especificamente na Amazônia, um período áureo da produção de borracha. Isso até 1910, quando os ingleses dirigiram sua atenção para os seringais asiáticos, onde foram plantadas sementes brasileiras levadas por eles _ coincidentemente, de uma área no Pará próxima ao local onde se fixaria o empreendimento norte-americano. A essa altura, a produção brasileira já havia entrado em declínio por causa da concorrência estrangeira. Em 1923, o governo dos Estados Unidos enviou ao Brasil a American Rubber Mission, comitiva formada por técnicos americanos e brasileiros que concluiu pela viabilidade de produzir borracha para uso da indústria automobilística norte-americana.
-
Em 1927 foi então criada a Companhia Ford Industrial do Brasil, cujos estatutos foram aprovados pela Junta Comercial do Pará. A empresa obteve a concessão de cerca de um milhão de hectares de “terras presumivelmente devolutas” _ como consta do documento _ nos municípios de Aveiros e Itaituba, junto ao Rio Tapajós.
A chegada da companhia sacudiu a vida dos moradores da região, como dona Bibiana, proprietária do porto de Boa Vista, que recebeu da Companhia Ford a indenização de trinta contos de réis pelas terras que possuía na área da empresa. “A escritura de compra e venda foi lavrada na casa de meu pai. Presentes ao ato estavam o representante da Companhia Ford, o tabelião de Aveiro, com aquele imenso livro, várias testemunhas e um montão de caboclos curiosos das redondezas. Havia uma espécie de tensão nervosa em todos os rostos, e enquanto o tabelião lia os termos da transação, ao seu redor havia um silêncio quase religioso. Creio que um acontecimento daquela envergadura jamais ocorrera no Tapajós”, lembra Eimar Franco, neto de dona Bibiana.
No início de 1928, o jornal A Cidade, de Santarém, trazia vários artigos comentando a expectativa da chegada da companhia. Um deles é de 4 de fevereiro, assinado por um certo Dr. Piaba, e se intitulava “Quando chegar o Ford ...”. Como o autor ressaltava, este era “o refrão da moda”: todas as pessoas comentavam o assunto, e em torno dele se faziam promessas de pagamento de dívidas e de casamentos. A notícia da criação de Fordlândia se espalhava pelo país e com a mesma velocidade apareciam interessados em trabalhar no empreendimento norte-americano. O recrutamento era feito entre os trabalhadores brasileiros, em geral da própria Amazônia ou do Nordeste, mas estrangeiros de diferentes nacionalidades também eram bem-vindos na companhia. Todos os candidatos que se apresentavam em Fordlândia, depois de pré-selecionados na cidade de Belém, precisavam passar por uma severa avaliação médica e policial.
-
A seleção rigorosa de candidatos fez com que houvesse muitos rejeitados, o que pode ser constatado na imprensa de Santarém, para onde rumavam os que não conseguiam se empregar. Um artigo publicado em A Cidade de 1o de junho de 1929 critica a situação: “Ford, com as suas doutrinas e automóveis, lá vai para Aveiro, enviando-nos apenas um exército de impaludados, feridentos e edemáticos que a sua inspeção recusa, a nossa profilaxia trata e a caridade pública socorre...”. Em busca de uma colocação em Fordlândia, muitos largavam ocupações anteriores. Miguel Guimarães Souza abandonou o trabalho na Comissão Rondon _ que fazia a demarcação das fronteiras do Brasil _ , saindo de Guajará-Mirim, Rondônia, perto do Rio Mamoré, para se empregar na Ford.
Todo o material utilizado na construção de Fordlândia foi enviado dos Estados Unidos nos navios Lake Farger e Lake Ormoc, que vieram de Detroit repletos de equipamentos para a nova cidade. Era como se fossem “automóveis saídos das linhas de montagem da Ford Motor Company: casas, hospitais, cafeterias, drugstores, cimento, areão para as canchas de tênis, aparelhos sanitários, bulldozers, serraria, uma cidade completa por armar”, escreveu ironicamente Viana Moog em Bandeirantes e Pioneiros. A implantação do núcleo urbano seguiu o modelo das cidades americanas, incluindo até a instalação de hidrantes nas ruas.
Os seringais, principal foco de interesse do empreendimento, foram plantados em grandes quadras milimetricamente divididas e espalhados ao longo da área mais próxima ao rio. Cerca de três mil pessoas ficaram encarregadas da derrubada da mata e do plantio. Quem trabalhava no campo recebia quinzenalmente e os que se dedicavam à administração, mensalmente. O pagamento de salários e, principalmente, o pagamento em dinheiro eram uma novidade na região: a exploração da borracha realizada décadas antes empregava o sistema conhecido como “barracão”, no qual os seringueiros trocavam a produção de látex pelos produtos que precisavam para se manter. De qualquer forma, este atrativo não foi suficiente para garantir à companhia a expansão desejada, e Mr. Johnston, um dos primeiros administradores de Fordlândia, relatava constantemente à direção da Ford nos EUA a dificuldade de contratação de mão-de-obra.
-
Além do problema da mão-de-obra, Fordlândia logo enfrentaria um outro desafio: o mal-das-folhas, doença causada por um fungo que ataca as folhas das seringueiras e depois o tronco, reduzindo a produção de látex, e que é capaz de matar a própria árvore. Embora este risco já tivesse sido apontado no relatório da American Rubber Mission, a companhia não contava com qualquer técnico em produção de borracha entre seus funcionários. Somente em 1932, com os seringais contaminados pelos fungos, é que se contratou James R. Weir, um botânico que já havia participado da missão americana no Brasil, quando se dedicara ao estudo dessa praga. Ao avaliar os seringais de Fordlândia, Weir sugeriu o abandono da área, que ficaria apenas como um laboratório de experiências. Aconselhou a construção de um novo núcleo, em terras firmes (mais afastadas das margens do rio) e bem drenadas, com mais vento e menos umidade, o que dificultaria a propagação do fungo. A região escolhida foi Belterra, mais perto de Santarém. Para consolidar o negócio, a companhia trocou 281.500 hectares da propriedade, nos fundos de sua concessão, por esta nova região. O termo de permuta foi assinado em 4 de maio de 1934.
O trabalho recomeçava: mais uma vez a companhia construiu um núcleo urbano, com casas para trabalhadores, alojamentos para solteiros, casas para os dirigentes (a “Vila Americana”) e equipamentos, como sistema de captação e distribuição de água, sistema de geração de eletricidade, escritórios, oficinas, postos de coleta de látex, escolas e hospitais. Nos dois núcleos, o que se destaca na paisagem são as grandes caixas d´água: uma em Fordlândia e duas em Belterra, todas com a inscrição Ford.
As caixas d´água impressionam não só pela sua imponência, mas também pelos seus apitos, que indicavam os horários de trabalho e os intervalos. São estes os sinais bem visíveis de um novo tempo que a Companhia Ford Industrial do Brasil imprimia na região. O tempo não era mais marcado pelos fenômenos naturais, pelas épocas de seca ou de chuva, de plantio ou de colheita. O tempo passava a ser cronometrado, rigorosamente contado e apontado. Na lembrança do senhor Hilário Branco Pedroso, entrevistado em Belterra em 1997, o relógio de ponto instalado pela Ford é descrito assim: “Aquele relógio que marca o dia, a hora, o minuto, o segundo, né? Tudinho, né?”.
-
Segundo Gastão Cruls, que esteve nas terras da empresa em 1939 e depois escreveu o artigo “Impressões de uma visita à Companhia Ford Industrial do Brasil”, publicado no mesmo ano na Revista Brasileira de Geografia, a rotina de trabalho se iniciava às 6h30 e se estendia até as 15h30, com intervalo de uma hora para almoço. O horário era controlado pelos relógios, distribuídos por vários pontos do local. Além do registro, o trabalhador também era observado pelo apontador, que ia ao campo fiscalizar as marcações do relógio. Assim, o funcionário era duplamente vigiado, pelo relógio e por outro funcionário.
O controle não estava restrito ao horário de trabalho, uma vez que o empregado morava na própria concessão da empresa, devendo submeter-se às normas por ela impostas, como a proibição do consumo de álcool. A regra, no entanto, não valia para todos. Os dirigentes, por exemplo _ quase todos americanos _, estavam liberados para consumir seu uísque à vontade. Já os trabalhadores que tentavam contrabandear bebidas para a área, ao serem descobertos sofriam imediatamente “a descarga”, como eles se referiam à demissão.
As visitas aos funcionários eram severamente controladas pela companhia, que deveria ser notificada da data da entrada dos visitantes e da ocasião de sua saída. “Visitas” de prostitutas eram estritamente proibidas, o que obrigava os trabalhadores em busca de álcool e de mulheres a sair de Fordlândia, rumo ao local que chamavam de “Ilha dos Inocentes”, onde poderiam encontrar as duas coisas. A designação de “ilha” não deixa de ser significativa, pois não há indício de que se tratasse de “uma porção de terra cercada de água por todos os lados”, e sim de uma área de liberdade, cercada de proibições por todos os lados.
-
Em Fordlândia, as casas eram fiscalizadas regularmente por agentes da inspeção sanitária, que verificavam com atenção as condições de limpeza. Os hábitos de higiene também eram cobrados nas ruas, onde, segundo os relatos dos trabalhadores, não se encontrava um único pedaço de papel jogado fora do lixo, já que, se isso acontecesse, o responsável seria duramente repreendido.
A vigilância, ao que parece, se estendia aos atos mais corriqueiros, como se pode constatar no depoimento de Luiz Corrêa Frazão, que trabalhou em Belterra no “tempo dos americanos”: “...nesse tempo a água, tudo era na rua, nas torneira (sic). Aí os americanos passavam, olhavam duas mulheres na torneira, parava (sic) e [imitando sotaque de americano falando português] – Oh, que mulher faz aqui? Enchendo a água nesse pote? Mulher vai prá casa, espera a outra sair prá, prá vocês vim (sic). Mulher vai fazer comida prá marido quando chegar”.
Todo este rígido controle dos trabalhadores da companhia pode ser atribuído não só à racionalização do trabalho típica do modelo fabril de produção, mas também a um padrão associado ao fordismo, que, segundo o pensador Antonio Gramsci, tinha como objetivo a criação de um novo homem, mais adequado à produção nos moldes capitalistas. Assim, embora o termo fordismo habitualmente seja vinculado à produção fabril, o que não é o caso da extração do látex, pode-se associá-lo ao empreendimento de Ford na Amazônia como uma tentativa de criação de um novo trabalhador.
-
É verdade que as normas adotadas pela companhia não sofreram uma resistência direta, expressa por meio da organização em sindicatos e associações. Das notícias de greves que se tem, algumas se referem à questão da alimentação. A primeira delas foi publicada em 1928 pelo jornal A Cidade, e aconteceu ainda no desembarque dos navios para a construção de Fordlândia. Na ocasião, o líder do movimento de reivindicação declarou ao jornal que os motivos da paralisação eram a má alimentação e os baixos salários: “Era um ‘baguá’ desgraçado, seu patrão, que nem porco ‘havera’ de tragar _ afirmou-nos ele com o falar característico da gente sertaneja.”
O maior movimento de contestação por parte dos funcionários, batizado de Quebra-Panelas, ocorreu em dezembro de 1930. Ao serem informados de que as refeições seriam servidas no sistema self-service e não levadas à mesa, os trabalhadores invadiram o refeitório, quebrando tudo que encontraram. De lá saíram para o porto, o abatedouro, a central de comunicações e outros lugares. Assustados com a violência, os americanos se refugiaram nas embarcações, enquanto uma delas seguiu para buscar reforço policial em Santarém. Quando os destacamentos chegaram, já encontraram a situação normalizada. Alguns líderes foram presos e muitos foram demitidos. Naquele momento, a companhia paralisou suas atividades por alguns dias e cogitou-se, inclusive, o fim do empreendimento, solução que acabou descartada.
Havia também uma resistência silenciosa, que pode ser percebida pela enorme rotatividade dos trabalhadores em Fordlândia. O pagamento de salários diretos e ainda o salário indireto, recebido na forma de assistência médica gratuita, moradia e escola, não parecem ter sido motivos suficientes para conquistar uma população que vivia na região da agricultura e do extrativismo, e que não se sentia atraída pelo modelo de vida proposto pelos americanos.
-
Além dos diferentes motivos para a insatisfação dos empregados, um dos empecilhos para o desenvolvimento da companhia Ford no Brasil foi a natureza. Há que se ressaltar que tanto as pesquisas de Fordlândia quanto as que se realizaram no Instituto Agronômico do Norte levaram à produção de espécimes de seringueiras bastante resistentes. Na década de 1930, as árvores plantadas tinham três partes distintas: a inferior era de uma espécie nativa, a do meio, de um espécime que produzia uma grande quantidade de látex, e a superior, de um outro clone criado pelas pesquisas, que era resistente aos ataques que causavam doença nas folhas. Assim, a resistência da natureza já havia sido, de certa forma, minimizada pelo esforço científico do homem.
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, as novas possibilidades abertas com a produção da borracha sintética, a própria especialização da Ford, que passara a concentrar sua indústria somente nos automóveis, e frente às resistências naturais e humanas, a companhia devolveu sua concessão ao governo brasileiro, que a indenizou pelas benfeitorias realizadas.
Para a maioria dos trabalhadores, ficou a lembrança de um tempo bom, “o tempo dos americanos”, que pode ser sintetizado na fala de Luiz Frazão, por mim entrevistado em Belterra, em agosto de 1997: “...isso era muito bonito, hoje ficou (...) um relaxamento. Isso era uma ordem. Isso era tudo direito, o cara obedecia, tudo era, era uma coisa tão linda que eu pensei de não ficar velho e pensei de não ver Belterra se acabar do jeito. Já escutou o apito dessa caixa d’água?”. Hoje, de Fordlândia, além da memória, apenas as construções continuam de pé.
Elaine Lourenço é professora e coordenadora dos cursos de História e Geografia no Centro Universitário Nove de Julho _ Uninove, em São Paulo e mestre em Geografia Humana pela FFLCH _ USP, onde defendeu em 1999 a dissertação “Americanos e caboclos: encontros e desencontros em Fordlândia e Belterra/PA.
Epopéia Amazônica
Elaine Lourenço