Do alto do morro de Nossa Senhora da Glória, no Rio de Janeiro colonial, europeus acompanhavam ansiosos cada embarcação que se aproximava do porto. É que os navios traziam mais que tropas e mantimentos: vinham apinhados de cartas com notícias do velho continente. Era por esse meio que, no período das grandes navegações, os expedicionários matavam a saudade de casa e autoridades faziam a gestão dos territórios conquistados.
Foi dessa forma, com papel e pena, que D. Luís de Almeida descreveu ao tio Tomás de Almeida sua travessia pelo oceano Atlântico, quase 250 anos atrás. Nomeado governador da Bahia por ordens do rei D. José I, o português deixou casa e família para enfrentar uma viagem de 56 dias. Sob fortes relâmpagos e trovoadas de som extraordinário, ele escreveu, em um relato que começou em Pernambuco e terminou na Bahia, em 1768: “Fiquei de tal forma enjoado, que nem um só dia tenho deixado de ter a cabeça tonta, os passeios que dou são trocando sempre as pernas como bêbado”.A correspondência com o tio não era caso isolado. D. Luís de Almeida, também segundo marquês do Lavradio e, mais tarde, vice-rei do Brasil, chegou a escrever mais de 2 mil cartas durante sua permanência na América, entre assuntos pessoais e de governança. Mundo afora, a prática se tornava cada vez mais comum.Antonio Castillo Gómez, renomado pesquisador espanhol da cultura escrita, afirma que entre os séculos XVI e XVIII estruturou-se uma civilização epistolar em decorrência do aumento da alfabetização, da organização dos correios, da implantação social da escritura nos círculos públicos e privados, da produção e circulação de manuais epistolares e, sobretudo, dos grandes deslocamentos populacionais em função das dominações ultramarinas.Na expansão do Atlântico, a escrita também teve um papel decisivo, permitindo que as estruturas de poder se tornassem mais eficazes e centralizadas. Os reis e os ministros exigiam dos governadores ultramarinos uma efetiva produção epistolar com relatos dos pormenores da administração, fazendo com que vivessem entre a tênue fronteira do que seria registrado e ignorado.Durante seu período como vice-rei do Brasil, entre novembro de 1769 e 1779, Lavradio desenvolveu importantes iniciativas. Investiu na infraestrutura do Rio de Janeiro e em culturas agrícolas para captação de novos recursos, foi o mais importante incentivador da fundação de uma academia de ciências, tomou medidas para amenizar conflitos na região do rio da Prata, entre outras ações que fizeram com que ele fosse considerado um dos mais importantes vice-reis do século XVIII. Mas, sem dúvida, a perpetuação de seu nome e de seus feitos só foi possível porque muitas de suas cartas foram preservadas.Estudar a correspondência desse período nos faz refletir sobre a produção, a distribuição e a conservação desses documentos – uma pertinente preocupação da atual história social da cultura escrita. Ao se pesquisarem os escritos de Lavradio, surpreende a grande quantidade de documentação e a dispersão do acervo.Em instituições de custódia brasileiras e portuguesas, encontram-se diversas cartas avulsas e em códices (livros de assentamento), entre cópias, originais, minutas e rascunhos. No Brasil, elas são encontradas no Arquivo Nacional (RJ), na Biblioteca Nacional (RJ) e na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (SP). Em Portugal, o acervo está espalhado entre a Biblioteca Nacional, a Academia de Ciência de Lisboa, o Arquivo Nacional Torre do Tombo e o Arquivo Histórico Ultramarino.Percorrer a trajetória dessa documentação é um caminho tortuoso, especialmente quando se pergunta como cada carta chegou às instituições que as guardam. As custodiadas pelo Arquivo Histórico Ultramarino são originais das enviadas aos ministros do rei, e estão ali por terem sido preservadas pelo governo português. Já as outras, alcançaram o século XXI porque o próprio D. Luís procurou guardar os papéis que produziu durante sua passagem pelo Brasil. Depois de sua morte, em 1790, a documentação ficou aos cuidados da família, que a ofereceu a vários destinos.
O marquês do Lavradio foi um vice-rei preocupado com as cartas que produzia. Além de levá-las consigo para Lisboa – o que grande parte dos administradores fazia – ele também teve o cuidado de registrá-las em copiadores. Mas nem todas: enquanto optou por fazer cópias das cartas enviadas ao tio, ao irmão, à sogra e a outros parentes, nenhuma das enviadas à mulher e aos filhos foi transcrita nos copiadores, o que nos permite considerar uma certa consciência de conservação gerida por Lavradio, ao optar por registar umas e não outras.A preocupação não era vã. As correspondências que viajavam por 40 a 60 dias entre os continentes traziam, para além de conteúdos pessoais, importantes instruções de governo. Por isso mesmo, não era difícil serem violadas. Para driblar o acaso, existiam algumas práticas de “segurança epistolar”. E uma delas era direcionada aos comandantes marítimos: caso as embarcações fossem atacadas por inimigos, eles tinham ordens expressas de Lavradio para lançar as cartas ao oceano. Como a ordem direcionada ao tenente João Favilla Bitencourt, que seguia a bordo da embarcação Leão Dourado, como responsável por entregar ao ministro real marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, cartas de Lavradio: “Se na viagem encontrar alguma Embarcação Castelhana que se lhe faça suspeitosa, não podendo” escapar e proteger as cartas, deveria então salvá-las dos castelhanos, lançando-as “ao mar, atadas em uma bala (de canhão) de maior calibre”.Com manuais de escrita epistolar em mãos, os remetentes em geral seguiam as normas sugeridas por esses guias quando começavam uma nova carta. Mas quando pegavam a pena e a tinta, não deixavam de imprimir suas particularidades no papel.Era assim também com D. Luís de Almeida, que passava grande parte do dia em seu gabinete escrevendo ou ditando palavras para que seus secretários trascrevessem. Quando não podia escrever de próprio punho, especialmente para os amigos, ele justificava-se. Como na correspondência que enviou ao conde de Tarouca, Fernando Teles da Silva Caminha e Meneses, seu genro, em junho de 1770: “não me sendo nesta ocasião possível o escrever-lhe de mão própria, e não sofrendo o meu amor o deixar de segurar a você a minha saudade tomei a resolução de me servir de mão alheia achando melhor fazelo asim que deixar de escrever-lhe”.Nas cartas de amizade, a vida particular e pública misturavam-se. E o vice-rei, que além de marquês também era pai, esposo e avô, manifestava seu afeto e sua fraqueza diante da distância da família. Quando demorava a receber notícias dos parentes, escrevia longos desabafos ao tio Tomás de Almeida. Porém, quando avistava no horizonte as embarcações que traziam correspondências do outro lado do oceano, Lavradio vibrava. Em fevereiro de 1770, compartilhou sua alegria com o amigo conde do Prado, Lourenço José de Brotas de Lancastre e Noronha: “Meu primo, meu amigo, e meu senhor, por esta esquadra de seis navios que chegam do porto de Lisboa, tenho a fortuna de receber uma carta tua, que muito estimo, e infinitamente te agradeço, pela certeza que me dás da tua boa saúde”.Nas correspondências ultramarinas, Lavradio representava-se de acordo com o destinatário e com o espaço de sociabilidade que partilhavam. Ora cabia ao marquês falar, ora ao vice-rei. Em uma carta ao governador militar da ilha de Santa Catarina, em novembro de 1775, D. Luís transita entre seus papéis públicos. Após uma longa introdução, relatando aspectos da vida particular, ele escreve: “Parece-me que por hora basta de Marquês do Lavradio, e é tempo de falar com Vossa. Excelência o Vice Rey de Estado”.Com nuances e riquezas de detalhes colocadas no papel, o estudo das cartas de amizade e de ofício de D. Luís de Almeida permite refletir em torno das dinâmicas do governar a distância e dos embaraços do governo vice-reinal. Como lugares pessoais de memória, a documentação forma um valioso acervo que também joga luz sobre os costumes sociais daqueles tempos. E revela que a importância da escrita era não só para governar territórios, mas também para amenizar a saudade. Naquele tempo, se navegar era preciso, escrever era igualmente necessário.Adriana Angelita da Conceição é autora de A prática epistolar moderna e as cartas do vice-rei d. Luís de Almeida, o marquês do Lavradio. Sentir, Escrever e Governar, 1768-1779 (Alameda-FAPESP, 2013).Saiba maisBELLOTTO, Heloísa Liberalli. Nem o tempo, nem a distância: correspondência entre o Margado de Mateus e sua mulher, D. Leonor de Portugal (1757-98). Lisboa: Aletheia, 2007.BOSCHI, Caio. O Brasil-Colônia nos Arquivos Históricos de Portugal. São Paulo: Alameda, 2011.BOUZA, Fernando. Del escribano a la biblioteca: la civilización escrita europea en la alta edad Moderna (siglos XV-XVII). Madrid: Editorial Sintesis, 1997.GOMEZ, Antonio Castillo. Historia de la Cultura Escrita: ideas para el debate. Revista Brasileira de História da Educação, nº 5, jan./jun. 2003.
Escrever é preciso
Adriana Angelita da Conceição