Escritos das fronteiras

Agnes Alencar

  • O mapa do Rio da Prata, publicado por Jaques Belin no século XVIII, situa geografi camente o assunto principal da documentação. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Aparentemente tudo estava calmo. Um dia ordinário como outro qualquer. Talvez fosse a calmaria antes da tempestade. A notícia de que os portugueses estavam caminhando por aquelas regiões do Tape e do Guairá não interrompera o curso habitual das atividades cotidianas dentro dos aldeamentos jesuíticos. No dia 2 de dezembro de 1636, quando os padres avistaram portugueses armados juntamente com índios tupis, sequer podiam acreditar. Pasmados, não imaginavam que os colonos fossem tão numerosos e que estariam tão perto daquela que era a última redução jesuítica com face para o mar ainda não invadida pelos bandeirantes. 
     
    Alguns olhos contaram em torno de 140 portugueses, seguidos de 1.500 índios tupis, portando armas de defesa e de ataque. Mais tarde, o padre Diego Boroa, primeiro provincial do Paraguai, carregou nas tintas ao descrever a crueldade com que os portugueses invadiram e destruíram não somente aquela redução, mas também outras quatro, em diferentes localidades dentro do território espanhol. O relato de Boroa encontra-se hoje junto a outros manuscritos na Coleção de Angelis da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 
     
    A história dessa coleção de manuscritos começa pela biografia do italiano Pedro de Angelis, nascido em Nápoles em 1784. Ele viu sua cidade natal ser tomada por tropas napoleônicas e o imperador francês engolindo o antigo Reino de Nápoles com seus exércitos. Chegou a unir-se brevemente ao exército napolitano, mas depois se voltou para a educação e passou a lecionar. Em 1827 chegou à Argentina, Buenos Aires, devido a um convite que lhe fora feito por um político, diplomata, ex-ministro de Relações Exteriores. Deste lado do Atlântico, Pedro de Angelis consolidou sua carreira como jornalista político e historiador. Em um momento no qual os ofícios do historiador, do colecionador e do antiquário ainda se confundiam, ele compilou, recompilou e publicou diversos manuscritos relevantes para a história da região do Prata. 
     
    Frontispício de duas das obras editadas por Jaime Cortesão. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)A região Sul do Brasil em muitos momentos viu sua história completamente entrelaçada à história do Prata. Não à toa, em 1853 o visconde do Rio Branco começou a negociar a compra da biblioteca de Pedro de Angelis para o Império brasileiro. Àquela altura do século XIX buscava-se a construção de uma identidade nacional homogênea, que precisava passar pela composição de um passado comum. O Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, era uma das instituições responsáveis por coletar documentos, conservá-los e educar sobre a identidade nacional. A movimentação do visconde do Rio Branco, portanto, não estava descolada de uma clara política de Estado.  
     
    A aquisição foi preciosa: a coleção de manuscritos de Pedro de Angelis reserva uma riqueza documental de missivas de diversas autorias, de um vasto período que abarca os séculos XVI, XVII e XVIII, em sua maioria atreladas geograficamente à região do Prata. 
     
    O relato do jesuíta Diego Boroa se integra a uma discussão muito extensa no século XVI e, sobretudo, no XVII referente à escravização indígena por bandeirantes, majoritariamente paulistas, que atacavam sem receio reduções em busca de mão de obra para as lavouras. Esse tipo de temática está em inúmeros manuscritos da coleção, escritos por jesuítas do Guairá, do Tape, do Uruguai. São documentos que fazem parte de um capítulo de nossa história que quase ficou do outro lado da fronteira, quando o Tratado de Madri redefiniu os limites de posses de Portugal e Espanha. Também esse tratado e suas negociações estão abarcados nas epístolas que Pedro de Angelis compilou. 
     
    Na década de 1950, um século depois da aquisição dos manuscritos, o historiador Jaime Cortesão transcreveu, organizou e publicou, juntamente com a Biblioteca Nacional, uma coleção de seis volumes. A ordenação se deu em duas chaves, uma cronológica e outra geográfica. Hoje, toda a coleção pode ser visitada no site da BN digital [http://bndigital.bn.br/projetos/angelis/exposicao2.html] e, graças a um esforço conjunto com a Biblioteca Nacional da Argentina, o acesso não se limita aos documentos que ficaram no Brasil: há também como visitar a parte dessa documentação que ficou do outro lado. As fronteiras fluidas da internet são um convite para novos pesquisadores que queiram debruçar-se sobre aqueles tempos da América – lusa e espanhola. 
     
    Agnes Alencar é pesquisadora da Revista de História da Biblioteca Nacional.