Os borrifos da baleia, com seus enormes jatos de água no meio do mar, eram os primeiros sinais para os vigias atentos. Indicavam o momento de os pescadores colocarem os barcos na água para partir em busca das suas enormes presas. Inaugurava-se a temporada de caça ao animal, que durava de junho a setembro. Era preciso aproveitar enquanto o cetáceo, vindo da região polar, nadava nas águas quentes das baías tropicais, onde procriava. Em tempos coloniais, esta era uma prática difundida por todo o litoral da América portuguesa, principalmente da Bahia a Santa Catarina.
Introduzida no país no início do século XVII, a pesca da baleia tinha como produtos sua gordura, barbatanas e carne. Com a captura por arpão, esses derivados do animal não precisavam mais ser recolhidos nas praias, como se fazia até então, quando eram utilizadas apenas as baleias que encalhavam. A atividade logo atraiu um grande número de interessados, especialmente comerciantes portugueses.
As baleeiras, embarcações usadas na pesca, saíam para o mar em grupos de quatro a seis, acompanhadas de lanchas de socorro, movidas a remo. Não é à toa que o início da temporada vinha acompanhado de um sentimento de profunda religiosidade; afinal, tratava-se de uma empreitada de alto risco. Os ritos católicos eram celebrados antes da partida para a caçada, como relatou frei Vicente de Salvador, autor de História do Brasil (1627). Após a missa, o padre abençoava os barcos e os instrumentos. Era também o momento em que os pescadores se despediam de seus parentes, já que ficariam distantes de casa durante alguns meses.A bordo de barcos que mediam de 10 a 12 metros de comprimento, os aventureiros enfrentavam as baleias, que muitas vezes chegam a 18 metros. Cada embarcação, que podia percorrer aproximadamente 20 quilômetros por hora, levava uma tripulação de seis remeiros, um arpoador (responsável por arremessar o arpão) e um timoneiro ou patrão do barco. A lancha de socorro tinha a função de ajudar a levar a presa até o continente.
No momento da captura, o arpoador que conseguisse se aproximar mais do animal ficava encarregado de matá-lo. Com o alvo na mira, lanceava a baleia com um arpão preso ao barco por uma corda. Finda a luta, alguns homens pulavam na água e amarravam-na, já morta, para ser puxada até a terra.
Especial Baleias
A expansão geográfica desta produção ocorreu por volta de 1730, quando foram erguidas as primeiras armações – nome dado às unidades de beneficiamento dos produtos da baleia – no litoral de São Paulo e de Santa Catarina. Em terras paulistas, as principais foram as de Bertioga e São Sebastião, mas lá a atividade não teve uma importância econômica expressiva como a cana-de-açúcar e, posteriormente, o café. Em Santa Catarina estavam as armações mais produtivas do Brasil: Piedade (atual município de Governador Celso Ramos), Santa Anna da Lagoinha (na praia da Armação, em Florianópolis), Itapocoróia (ao norte do Rio Itajaí, na região de Penha, litoral norte de Santa Catarina), Garopaba e Imbituba (ambas no litoral sul).
O rendimento das armações foi crescente, declinando após 1800. Por volta de 1750, apenas em uma armação chegava-se a capturar cerca de 500 baleias numa boa temporada de pesca. Porém, menos de um século depois, somando-se todas as armações, este número não passava de poucas dezenas. De acordo com o militar e político Jacinto Jorge dos Anjos Corrêa (1754-1830), o preço da medida de azeite variou bastante, entre 320 réis, nos áureos tempos da atividade, e 140 réis. Valorizada, uma baleia chegava a render cerca de um conto de réis.
O óleo, extraído das espessas camadas de gordura que envolviam o animal, por suas inúmeras funções, era o produto mais cobiçado. Chamado de “azeite” ou “graxa”, servia para a iluminação dos engenhos, casas e fortalezas, para a calafetagem de barcos (vedação com estopa), para a fabricação de sabões e velas, e ainda podia ser usado na lubrificação de engrenagens. Quando misturado ao barro, formava uma argamassa especial para construções sólidas, tão resistentes que ainda hoje é possível encontrar paredes intactas em que o material foi usado séculos atrás.
Da baleia, quase tudo se aproveitava. A carne servia de alimento: a língua, por exemplo, era vendida à nobreza e ao clero como iguaria. As barbatanas – placas de fibras que ficam no céu da boca das baleias – eram utilizadas na confecção de acessórios e roupas femininas e masculinas, como espartilhos, saias e chapéus. Os ossos, por sua vez, destinavam-se à construção civil e à produção de móveis.
O complexo trabalho na armação era dividido em várias etapas. Os escravos eram responsáveis por remover o animal e retalhá-lo, para, em seguida, separar suas partes. A gordura era derretida no engenho de frigir, onde se obtinha o óleo. Em seguida, este passava por um processo de purificação, que consistia na filtragem de resíduos. Quando estava puro e pronto para a venda, era armazenado na casa de tanques. A distribuição para o consumo era feita em pipas (recipientes de madeira que normalmente tinham um volume de 424 litros), enviadas para o Rio de Janeiro e daí para Portugal. Dependendo das dimensões da baleia, produziam-se de 10 a 30 pipas de óleo.
A armação também contava com uma casa-grande, senzalas e outras construções semelhantes às dos engenhos da indústria açucareira, como a capela e o armazém. Em torno das armações articularam-se áreas de agricultura de subsistência, as roças de mandioca, arroz, feijão, entre outros produtos, áreas de extração de madeira para lenha, que alimentava o engenho de frigir, bem como áreas próprias de comércio.
Além de contar com os escravos, havia também mão de obra assalariada, como os ferreiros, carpinteiros, pedreiros, tanoeiros (que consertam ou fazem tonéis, barris e pipas) e calafates (operários que faziam a vedação dos barcos). Também faziam parte desse grupo os administradores, feitores, cirurgiões e capelães. O trabalho mais rentável, e também o mais arriscado, era o dos baleeiros: arpoadores, timoneiros e remeiros.
De acordo com o viajante inglês John Mawe (1764-1829), na armação da Piedade, por volta de 1805, trabalhavam 150 negros. Por essa época, contavam-se 525 escravos em todas as armações de Santa Catarina – 80 pode ser um número médio de escravos por armação. A atividade também tinha aspectos trágicos para os trabalhadores: o francês Louis-François Tollenare, que esteve na Bahia entre 1816 e 1818, observou: “Há oito dias que três chalupas foram a pique, afogando-se os trinta homens que as tripulavam”. Myriam Ellis relata em seu livro A baleia no Brasil Colonial os constantes castigos e trabalhos forçados a que eram submetidos os baleeiros, sobretudo os negros. Conta que eram comuns fugas e incidentes violentos. Em meados do século XVIII, uma rebelião de escravos, armados com facas, ocorrida na Armação de Bertioga, deixou um feitor ferido e outro morto.
A baleia cachalote era uma das mais procuradas. Os motivos eram o espermacete, uma matéria branca, oleosa e viscosa extraída de seu cérebro, e o âmbar-gris, substância sólida proveniente do intestino do animal. Ambos tinham diversas utilidades, sendo usados no preparo de detergente, consolidador, emoliente, unguentos, pomadas, bálsamos, cosméticos e sabões mais finos.
Outro alvo muito visado era a baleia franca, assim denominada por seu comportamento manso, que facilitava a ação dos pescadores. Envolta por uma camada de gordura de 40 centímetros, esta espécie mede cerca de 18 metros e pode pesar até 60 toneladas. A tática desenvolvida por pescadores para a captura era simples: para atrair a baleia-mãe, prendiam seu filhote junto ao barco. Na tentativa de proteger o baleote, a franca se aproximava muito da embarcação e acabava sendo atingida. Após atraírem e matarem a mãe, o filhote também era morto.
A caça se desenvolveu, em tempos passados, sem uma preocupação com as consequências ambientais, e não isso tardou a comprometer a procriação das baleias. Preocupado com as técnicas empregadas na pesca, o estadista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que depois ficou conhecido como o “Patriarca da Independência”, previu a situação de escassez que podia diminuir as vantagens do empreendimento. A “perniciosa prática (...) trará consigo a ruína total desta tão importante pescaria. É fora de toda dúvida que matando-se os baleotes de mama, vem a diminuir-se a geração futura”, escreveu Bonifácio, em 1790, nas Memórias sobre a pesca das baleias, e extração de seu azeite, com algumas reflexões a respeito das nossas pescarias.
O diagnóstico foi certeiro: a atividade baleeira em São Paulo e Santa Catarina entraria em decadência na década de 1830. A redução do número de animais em águas brasileiras ajudou a liquidar esta indústria. Os pescadores com certeza não tinham ideia de que o seu método poderia contribuir para levar ao fim de um negócio tão lucrativo e que, apesar de perigoso, por tanto tempo lhes dera sustento.
João Rafael Moraes de Oliveira é professor de História nas redes pública e privada de ensino de São Paulo e autor da dissertação “Natureza apropriada: a exploração dos recursos naturais na capitania de Santa Catarina (1738-1808)” (Unesp, 2007).
José Bonifácio previu, no século XVIII, que a captura indiscriminada do animal levaria o negócio à ruína
Saiba Mais - Bibliografia:
ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Edusp/Melhoramentos, 1969.
MELVILLE, Herman. Moby Dick. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
PHILBRICK, Nathaniel. A vingança da baleia: a verdadeira história do baleeiro Essex. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Especial Baleias - Gigantes à proa
João Rafael Moraes de Oliveira