Imagine abrir a janela e dar de cara com uma enorme baleia nas águas de uma baía calma. Se você vivesse na Salvador dos anos 1950, ou até 1960, esta cena deslumbrante seria possível em plena Baía de Todos os Santos. Mas a ela se seguiria um banho de sangue. Em pouco tempo, as águas estariam tingidas de vermelho.
Hoje, a presença de baleias, que acabou se tornando escassa, é uma realidade novamente, atraindo curiosos para a observação. Durante muito tempo, no entanto, a caça às baleias foi fundamental para a economia do Brasil e de Portugal. Ganhou importância devido aos derivados do animal que se tornaram gêneros de primeira necessidade, como o azeite, que abastecia as lamparinas e iluminava as casas. A boa maré do negócio começou a mudar no século XIX, mas ele só acabaria de vez há vinte anos.
Tudo começou, em 1602, quando a Coroa Ibérica (união de Espanha e Portugal) permitiu que dois estrangeiros pescassem baleias nos mares brasileiros. O reino espanhol aproveitava a experiência de Pêro de Urecha e seu sócio Julião Miguel, que iniciaram seu trabalho na Bahia. Eles vinham de uma localidade – a província de Biscaia, ao Norte da Espanha – com longa tradição de captura do cetáceo.
Nos séculos seguintes, a administração colonial estimulou a caça às baleias, considerado “peixe real”, por meio de cartas de concessão. Os contratadores obtinham o privilégio de pescar o animal e industrializar seus derivados sem pagamento anual de impostos. O pagamento era posterior ao arrendamento. Encerrado o contrato, a Fazenda Real incorporava ao seu patrimônio todos os utensílios que faziam parte das armações: embarcações, fábricas, alojamentos, armazéns, fornalhas, tanques, caldeiras, escravos, terras, apetrechos de caça e de produção do azeite.Especial Baleias
Mas a atividade que durou três séculos não seria próspera para sempre. O golpe de misericórdia contra as armações viria com a descoberta de petróleo na Pensilvânia, Estados Unidos, em 1859. A chegada do novo manancial energético resultou na produção de querosene, que substituía o “azeite” de baleia em diversas funções, como o abastecimento de lamparinas. Além disso, os óleos lubrificantes extraídos dos resíduos do petróleo e o emprego de cera e parafina para a fabricação de velas completariam a desvalorização do produto animal.
Mas a crise dessa economia pesqueira iniciou-se muito antes, quando a Corte portuguesa chegou ao Brasil, em 1808, tomando medidas liberalizantes, como a autorização para que outros países entrassem no mercado brasileiro. Com acesso a uma tecnologia sofisticada, como as caldeiras de pressão, as embarcações norte-americanas e inglesas nas águas sul-americanas produziam o azeite de baleia a custos modestos em alto-mar. Em pouco tempo, superaram a antiquada indústria do país com suas armações fincadas em terra firme.
A drástica redução do braço escravo para executar os trabalhos nas armações, com o fim do tráfico negreiro em 1850, também foi determinante para a crise. Para pôr em movimento a indústria baleeira era preciso ter uma quantidade razoável de cativos. As maiores indústrias de óleo empregavam, na fase áurea da atividade, mais de uma centena deles. Na Bahia, muitos proprietários de armações se ressentiram dessa carência e se viram obrigados a disputar escravos à venda, levando desvantagem. Seus principais concorrentes eram os grandes senhores da parte continental do Recôncavo, mais endinheirados e ávidos por comprar trabalhadores para suas lavouras de cana.
Nas armações, também eram contratados homens e mulheres livres para o desempenho de tarefas que exigiam pessoal qualificado. Eles ficavam encarregados de fazer o derretimento do espesso toucinho da baleia. Uma função perigosa que os expunha a desastres constantes no interior das fábricas. Muitos ficaram cegos por conta dos pingos ferventes de óleo que salpicavam nos seus olhos. Outros foram vítimas de frigideiras que despencavam dos andaimes, acima das fornalhas, derramando gordura quente e acarretando queimaduras graves.
A venda do azeite em cidades grandes era intensamente disputada entre os pequenos comerciantes estabelecidos, quitandeiras e ganhadeiras (escravas que davam parte do lucro de suas vendas ao senhor). A carne, na maior parte considerada de baixa qualidade, era destinada a alimentar os escravos. Depois de salgada e moqueada (seca), também era vendida pelas ganhadeiras nas ruas das cidades.
Enquanto isso, as frequentes caçadas faziam com que as safras de baleias ficassem cada vez mais reduzidas, o que diminuía o lucro dos pescadores. As armações, em ruínas, muitas vezes, tinham que ser desativadas. Em 1817, o Rio de Janeiro já importava “azeite de peixe” (como também era chamado o óleo de baleia) para suprir as necessidades da população da capital.
Com o petróleo, a pujança industrial da captura de baleias ficou definitivamente comprometida. Nas últimas décadas do século XIX, a pesca seria assumida pelos alforriados e por pequenos negociantes, que caçavam baleias em pequena escala. Atendiam ao mercado consumidor local, abastecendo casas comerciais de azeite. Como não tinham indústrias apropriadas para fazer o beneficiamento dos produtos, precisavam pagar um percentual aos fazendeiros para usar suas armações. Estas eram, em sua maioria, instaladas em propriedades litorâneas, verdadeiras fazendas nas quais eram desenvolvidas várias atividades, como a agricultura e a produção de lenha.
Levada adiante dessa forma improvisada, a prática perdeu completamente sua relevância econômica. Acabou sendo definitivamente banida de todo o litoral brasileiro em 1987, quando a pesca de baleias tornou-se crime ambiental. Desde então, esses animais são cada vez mais avistados em nossos mares, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. Hoje em dia, quase ninguém os vê como alvos.
Wellington Castellucci Junior é professor da Universidade do Estado da Bahia e autor do livro Pescadores e Roceiros. Escravos e Forros na ilha de Itaparica. Bahia, 1860-1888. (Annablume, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia:
ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Edusp/Melhoramentos, 1969.
MELVILLE, Herman. Moby Dick. Série Coleção de Obras Escolhidas, Editora Globo, 1986.
RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
Saiba Mais - Filme:
“Moby Dick” (Estados Unidos, 1956).
Especial Baleias - Salvas pelo petróleo
Wellington Castellucci Junior