Especial Heróis na Mídia - São Tancredo

Douglas Attila Marcelino

  • Depois de 21 anos de regime militar, o Brasil finalmente teria um presidente civil. O político mineiro Tancredo Neves vencera Paulo Maluf no Colégio Eleitoral e assumiria o poder no dia 15 de março de 1985. No entanto, um dia antes da posse, com fortes dores abdominais, ele teve que ser internado no Hospital de Base, em Brasília. Enquanto o país aguardava sua melhora, o vice José Sarney ocupou o cargo interinamente. Ninguém imaginava que o presidente eleito jamais tomaria posse. Após sete cirurgias, Tancredo morreu em 21 de abril, deixando a nação em choque.
       
    Em pouco tempo, uma comoção tomou conta do país. Mesmo indireta, a eleição havia sido marcada por forte mobilização popular, além de uma notória rejeição a Maluf, candidato diretamente ligado aos militares. À noite, depois do “Fantástico”, a Rede Globo exibiu uma edição especial do “Jornal Nacional” sobre a doença e a morte do presidente eleito, com quatro horas de duração: “O martírio do Dr. Tancredo”. O tema central era a forte experiência vivida pela sociedade brasileira, que começou com sua internação 38 dias antes.
    O programa já vinha sendo planejado havia algum tempo e mobilizou quase toda a equipe de jornalismo da Rede Globo. Seu principal responsável foi Luís Edgar de Andrade, chefe de redação da emissora, escolhido para atuar exclusivamente na sua preparação. A escalação de Andrade ainda no dia 12 de abril indica como foi intenso o trabalho de elaboração do programa e como a morte do presidente eleito já era esperada.

    O telejornal começava com a imagem de uma cruz projetada sobre o fundo formado por um céu azul na parte superior da tela e uma faixa verde e amarela na parte inferior. Cânticos religiosos compunham a trilha sonora, que perdurava alguns segundos depois da aparição do apresentador Sérgio Chapelin.

    A exploração religiosa foi recorrente ao longo do programa. O suposto caráter heroico do presidente também foi destacado: “Era um homem público predestinado, um homem que tinha uma missão e que iria cumpri-la a qualquer custo”, destacava Chapelin. Descrito como alguém que tinha profunda “consciência do momento histórico em que estava vivendo”, Tancredo aparecia como aquele que podia ler na história o que os outros não viam, uma espécie de intérprete profético do destino coletivo, que carregava em si o passado e o futuro de seu povo. Traços positivos da sua personalidade, assim como seus encontros com chefes de Estado estrangeiros após a vitória nas eleições, também eram enaltecidos.

    Em fins de janeiro e início de fevereiro de 1985, Tancredo visitou vários países, como Itália, França, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Peru e Argentina. A iniciativa tinha o objetivo de anunciar a Nova República e legitimar o futuro governo perante a opinião pública internacional. A narração da viagem acentuava que “todos os chefes de Estado e de governo que estiveram com ele sabiam que estavam diante de um homem especial”. Alguém que seria “capaz de dialogar com os principais líderes do mundo de igual para igual”.

    O encontro com o papa no Vaticano foi particularmente destacado. Aquela seria “uma deferência que nenhum outro presidente brasileiro teve nos últimos vinte anos. Uma deferência reservada ao estadista, ao homem de Estado Tancredo Neves”, enfatizava Sério Chapelin.
    Na primeira parte de “O martírio do Dr. Tancredo”, uma retrospectiva mostrava os fatos considerados mais importantes no período da internação até sua morte. Entre eles figuravam a leitura oficial do primeiro boletim médico; o bilhete que Tancredo escreveu a José Sarney parabenizando-o por sua correção na condução do governo; a divulgação da primeira foto do presidente internado e a dramática transferência para o Instituto do Coração, em São Paulo.

    Na segunda, havia um grande número de pronunciamentos de autoridades, depoimentos e homenagens, que seguiam também o enfoque religioso do programa: D. Paulo Evaristo Arns, D. Eugenio Sales, D. Luciano Mendes de Almeida e o rabino Henri Sobel apareceram com destaque. Também foram muitos os escritores e artistas entrevistados, como Dias Gomes, Lygia Fagundes Telles e Grande Otelo. Já no caso dos políticos, havia desde o ex-oposicionista do regime militar e então governador de São Paulo, Franco Montoro, até Armando Falcão, ex-ministro de Ernesto Geisel.

    O programa tendia a tomar todos os gestos e reações do presidente como excepcionais. É o que pode ser visto na divulgação de suas reações à doença. O especial reproduziu, por exemplo, uma frase de Tancredo no dia da sua internação, em que ele teria pedido a Deus forças para não decepcionar o povo brasileiro. Os médicos também diziam que ele era “um homem de ferro” e havia enfrentado as cirurgias bravamente. Tudo realçava a resistência fora do comum de um homem que já estava com 75 anos.

    A descrição detalhada do tratamento conferia mais dramaticidade ao relato. O telespectador tinha acesso às reações do presidente e a desenhos ilustrativos que expunham imagens do intestino e dos pulmões, entre outros órgãos. Uma variedade de termos médicos, como diverticulite, apendicite e leiomiomia já tinha passado a fazer parte da rotina dos brasileiros.

    O papel de mártir atribuído a Tancredo Neves, expresso no próprio título do programa, era o que mais marcava sua imagem. Após Sérgio Chapelin dizer “mais de um mês depois da primeira operação no Hospital de Base de Brasília, o martirizado corpo do presidente Tancredo Neves não resistiu”, apareceu a cruz que ficava em cima do túmulo onde ele seria sepultado, na Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei.

    Tancredo era claramente representado pelo mito cristão da redenção pela morte do messias. Além da cruz no início do telejornal, a imagem de Jesus crucificado no Calvário marcava a troca de quadros a certa altura, com o título “O Brasil reza e sofre com Tancredo” na parte superior.
    Os registros televisivos mostravam as pessoas fazendo orações pela saúde do presidente. Referindo-se à fé fortalecida na Semana Santa, o jornalista ressaltava: “Sábado de Aleluia, as esperanças reacendem (...). O caminho, Instituto do Coração/Hospital das Clínicas, é acompanhado pelo Brasil inteiro. (...) Domingo de Páscoa. Domingo de Ressurreição. Todos rezam pela saúde do Dr. Tancredo”. A narração do apresentador completava o forte apelo religioso: “todos os brasileiros”, “todo o país”, “todo mundo” rezava e sofria por Tancredo.

    Alguns gestos de membros da família Neves, que havia décadas preservava uma forte devoção católica, também eram responsáveis pela criação da atmosfera religiosa em torno da morte de Tancredo. Em entrevista, um de seus irmãos, Jorge Neves, afirmou: “Eu tenho fé em Deus e espero que a ressurreição de Tancredo se faça por um milagre”. A fala, que ganhou destaque nos meios de comunicação, foi incorporada ao especial da Rede Globo.

    O clipe musical da cantora Fafá de Belém entoando o Hino Nacional acompanhada somente por um piano era mais um elemento comovente de “O martírio do Dr. Tancredo”. As imagens da cantora emocionada, interpretando o hino, eram intercaladas com as de Tancredo discursando e outras de forte carga emotiva, como as de pessoas com crucifixos nas mãos. Construções imponentes de Brasília, como a Catedral e o Congresso Nacional, também apareciam no vídeo, assim como o rosto preocupado de sua esposa, Risoleta Neves (1917-2003). Quase fechando o quadro, Tancredo Neves aparecia sorrindo e acenando para a população, como se estivesse se despedindo.

    O mito que ia sendo construído sobre o presidente também se nutria do caráter inusitado daqueles acontecimentos de março e abril de 1985. Além da internação na véspera da posse e de uma relativa melhora no Domingo de Páscoa, Tancredo morreu no dia de Tiradentes. Considerado um mártir da história nacional, Tiradentes foi seu conterrâneo e também teve sua morte interpretada como sacrifício pela nação. Tido como bravo defensor dos ideais republicanos, o inconfidente foi exaltado por Tancredo Neves, inclusive nas menções à implantação de uma Nova República.

    Aquele era um momento bastante difícil na história do país. O temor de um possível retorno às práticas autoritárias do regime militar era muito intenso. Diante disso, o caminho escolhido por muitos meios de comunicação foi o da consagração de Tancredo Neves, representado frequentemente como o único responsável pela transição para a democracia.

    No caso da Rede Globo, lembrada pelas relações estreitas que manteve com os governos militares, aquele era também um momento propício a uma revisão da sua própria história. Difundindo uma imagem extremamente favorável à Nova República, ela encobria as omissões do passado e procurava consolidar seu suposto perfil de fiadora da democracia. A interrogação que fica é a seguinte: será que tamanha exaltação de Tancredo, apresentado como uma figura heroica e santificada, era um preço que precisava ser pago pelo restabelecimento da democracia?


    Douglas Attila Marcelino é doutorando da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor da dissertação “Salvando a Pátria da Pornografia e da Subversão: a Censura de Livros e Diversões Públicas nos Anos 1970” (UFRJ, 2006).

    Saiba Mais - Bibliografia

    Jornal Nacional: a notícia faz história. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

    BRITTO, Antonio.  Assim morreu Tancredo. Porto Alegre: L&PM, 1985.  

    COUTO, Ronaldo Costa. Tancredo vivo: casos e acaso. Rio de Janeiro: Record, 1995.

    SILVA, Vera Alice Cardoso, DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Tancredo Neves: a trajetória de um liberal. Petrópolis: Vozes, 1985.