Em maio de 1968, enquanto em Paris os estudantes protestavam nas barricadas, em Viamão, subúrbio de Porto Alegre, um grupo de seminaristas coléricos decidiu contestar a autoridade dos bispos pondo abaixo a cozinha. Cantando em latim “Queremos Deus”, marcharam em direção ao seu objetivo, e só pararam ao topar com as freiras que por anos haviam cuidado carinhosamente do local. Pouco tempo depois, cem seminaristas abandonaram o curso. No ano seguinte, os estudantes que receberam a consagração sacerdotal foram vaiados por seus colegas.
Esse estranhíssimo paradoxo de homens depreciando a função que se preparavam para exercer reflete a crise de identidade que assolou o clero brasileiro nos anos 1960 e 1970. Muitos padres agora procuravam expressar sua humanidade, em contraposição à imagem do seminarista distante, superior e assexuado do sistema estabelecido ainda no Concílio de Trento (1545-1563). O objetivo era descer ao nível do povo: em vez de milagres, sua missão era promover a justiça social. Essa organização, sem precedentes nos cem anos de história dos seminários brasileiros, desafiaria tanto os bispos como o governo militar do Brasil. Significou para a Igreja o que o radicalismo estudantil significou para a cultura jovem: uma abertura para o mundo e um protesto político.
Era um tempo de transformações profundas. Por toda parte as pessoas abandonavam valores tradicionais em favor da modernidade, do secularismo, da fé no progresso científico e tecnológico e nas realizações individuais. O Concílio Vaticano II (1962-1965) – maior reforma nos dois mil anos de história do catolicismo – lançou as sementes para a reestruturação da Igreja em vários países. O decreto conciliar Optatum Totius (OT) permitiu a cada país adotar seu próprio método de ensino nos seminários, além de autorizar os seminaristas a viver em pequenas comunidades, estudar as ciências sociais e ter mais contato com o laicato.Internamente, o Brasil também passava por grandes mudanças. O Vaticano II coincidiu com a agitação política decorrente da deposição do presidente João Goulart em 1964 e do uso de repressão e tortu¬ra pelo regime militar. Não é à toa que o movimento estudantil teve grande impacto sobre os seminaristas. Com manifestações quase diárias entre 1964 e 1968, os estudantes apoiavam a luta de classes e trabalhavam como voluntá¬rios em campanhas de saúde e alfabetização no campo. Seus ideais estavam em consonância com os dos sacerdotes.
Terceiro maior seminário do mundo e um dos melhores do país, Nossa Senhora da Conceição, em Viamão, tornou-se sede informal do movimento na década de 1960. Era uma instituição cultural vibrante, cosmopolita e politizada. Seus seminaristas queriam modernizar a Igreja por meio de um clero coordenado e unido, e, para isso, comunicavam-se com estudantes de outros estados. O Seminário, periódico oficial das entidades que formavam o clero do país, era publicado em Viamão, e foi uma importante ferramenta para disseminar essa nova compreensão do papel do catolicismo no Brasil. Com distribuição nacional, a revista alcançou a tiragem de cinco mil exemplares em 1968.O Rio Grande do Sul era o estado mais dinâmico da Igreja brasileira. Foi lá que nasceu a maior e mais influente organização de seminaristas do período: a União dos Seminaristas Maiores do Sul (Usmas), representando ordens religiosas e dioceses de todo o estado. A ela seguiram-se muitas outras entre 1961 e 1967, com seminaristas de várias partes do Brasil, como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo.
Sua missão era moldar um novo tipo de apóstolo brasileiro. O clero do país até então era uniforme e não primava pela criatividade. Além disso, era imensamente burocrático. Muitos padres trabalhavam em funções administrativas ou na educação da elite e dos seminaristas. Menos da metade deles fazia trabalho apostólico nas paróquias ou nas associações. Os novos seminaristas também se opunham com veemência à ênfase autoritária dada pelo sistema do Concílio de Trento à disciplina e à obediência cegas. “Não obedeço”, dizia o título de um comentário em O Seminário. Os estudantes queriam a democratização do seminário.
As Ciências Humanas – em especial Sociologia, Economia e História – eram agora as disciplinas preferidas dos padres. Elas contribuíam para se entender e lidar melhor com a situação do Brasil. “O santo moderno é um santo social”, proclamou O Seminário. Os seminaristas consideravam que o padre se tornara “um ser a-histórico”. Achavam que o mundo exterior era excitante e repleto de potencial para o seu trabalho. Não queriam mais ficar encerrados dentro do seminário.
Seminaristas escreviam “Viva o engajamento” e “Abaixo a alienação” nas paredes de Viamão. Muitos padres acabaram se envolvendo com a militância política. Um dos casos mais célebre é o de Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto. Estudante da ordem dominicana em São Paulo, ele se envolveu com a guerrilha e ficou preso durante quatro anos. Quando foi libertado, em 1973, recusou as Ordens Sacras afirmando que o sacramento seria o primeiro passo na ascensão ao poder na Igreja, e estava convencido de que qualquer forma de poder corrompe. Para ele, a prioridade da Igreja não deveria ser o sacramento, e sim a evangelização. Ele poderia muito bem continuar a evangelizar sem ser ordenado padre. Em relação à disciplina, preconizava “uma atitude interior”, e não “um freio que impede”.
Para aproximar-se do povo, padres e seminaristas substituíram a batina por roupas laicas. Poucos gestos simbolizaram tanto a transformação do sacerdócio. Hoje em dia, ver um homem vestindo hábito clerical em plena rua é tão estranho quanto era, nos anos 1960, ver um padre que não o usasse.
Até mesmo reivindicações trabalhistas invadiram a seara religiosa. Estudantes de Teologia pediam a profissionalização do sacerdócio e defendiam seu direito de ter emprego remunerado e de diplomar-se em áreas não eclesiásticas, como Jornalismo e Psicologia.Tanta rebeldia, obviamente, não ficou sem resposta. Nos anos seguintes ao golpe militar, houve uma forte reação das autoridades eclesiásticas brasileiras, orientadas por Roma, diante das experimentações “excessivas” que o Concilio Vaticano II tinha deixado florescer. O governo militar, por sua vez, não titubeou em enquadrar padres, seminaristas e até bispos na Lei de Segu¬rança Nacional. Em todo o país, sacerdotes foram presos, torturados e ameaçados de morte. Alguns clérigos estrangeiros foram deportados e sete padres foram mortos.
Viamão e a União dos Seminaristas Maiores do Sul (Usmas), núcleo do movimento, foram especialmente visados como centro de agitação estudantil. Seminaristas de Viamão escondiam universitários procurados pela polícia, e entre 1967 e 1968 várias batidas policiais foram realizadas no seminário. O clima tenso e o medo da inovação dentro da Igreja levaram ao fechamento da Usmas, por decisão dos bispos.
O dobre de finados do movimento foi o desaparecimento de O Seminário, que havia sido tão importante na divulgação de suas reivindicações. O fechamento coincidiu com o Ato Institucional nº 5 do regime militar, 1968. A partir dali, o governo radicalizaria a repressão e a tortura, e as relações entre Igreja e Estado sofreriam crescente deterioração.
A frustração das expectativas de mudança provocadas pelo Concílio Vaticano II fez com que padres de todo o país questionassem sua vocação. Muitos abandonaram o sacerdócio. As principais razões para as desistências eram a manutenção do celibato obrigatório, a rigidez da estrutura hierárquica e a ausência de uma postura mais firme dos bispos contra o regime militar. A crise levou a Igreja brasileira a perder alguns de seus melhores homens.
Kenneth Serbin é professor de História da Universidade de San Diego, nos Estados Unidos, e autor do livro Padres, celibato e conflito social – uma história da Igreja Católica (Companhia das Letras, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia:
FREI BETTO (Carlos Alberto Libânio Christo). Cartas da prisão (1969-1973). Rio de Janeiro: Agir, 2008.
MAINWARING, Scott. Igreja católica e política no Brasil, 1916-1985. São Paulo: Brasiliense, 2004.
WANDERLEY, Luiz Eduardo. Educar para transformar: educação popular, Igreja católica e política no Movimento de Educação de Base. Petrópolis: Vozes, 1984.
Especial Padres em Crise - Novos mandamentos
Kenneth P. Serbin