Especial República Portuguesa - Proclamação pública

José Murilo de Carvalho

  • Forças revolucionárias tomam a Avenida Liberdade, em Lisboa, em outubro de 1910. O movimento republicano português ia além dos partidospolíticos.

    A monarquia brasileira, filial da portuguesa, se constitucionalizou antes da matriz. A Constituição brasileira de 1824, outorgada por D. Pedro I, tornou-se modelo da Constituição portuguesa de 1826, outorgada pelo mesmo D. Pedro. Quase um século depois, a República brasileira também precedeu a portuguesa, agora em 21 anos. Mas, apesar do encorajamento dado aos republicanos portugueses pela derrubada dos Bragança no Brasil, a evolução do republicanismo em Portugal e, sobretudo, o modo como foi lá proclamado o novo regime em pouco se assemelharam ao que se passou no Brasil.
     
    O manifesto do Partido Republicano brasileiro foi publicado em 1870. O crescimento do partido foi lento. De fato, um partido nacional com presidência nacional só se concretizou em maio de 1889. Antes havia o partido do Rio de Janeiro, fundado em 1870, e o paulista, fundado em Itu, de 1873.  Em outras províncias, formaram-se clubes republicanos, alguns dos quais contavam com jornais para divulgação de suas ideias. Os dois partidos divergiam muito na composição e nas ideias. O do Rio compunha-se, sobretudo, de profissionais liberais, era desunido, preocupava-se mais com discussões doutrinárias e jamais elegeu um deputado geral. O de São Paulo incluía muitos proprietários de terras e de escravos, era disciplinado e pragmático. Em vez de manifesto, preparou logo uma Constituição e se envolveu no processo eleitoral, aliando-se ora com os liberais, ora com os conservadores. Ainda durante o Império, conseguiu eleger deputados Campos Sales e Prudente de Morais, futuros presidentes.

    O movimento republicano ia além dos dois partidos. Prosperou em clubes republicanos e, principalmente, nas duas faculdades de Direito, nas duas de Medicina e na Escola Militar. Um fator importante na adesão de estudantes dessas escolas foi a difusão do pensamento positivista, inclusive na Escola Militar. Segundo a teoria dos três estados, desenvolvida por Augusto Comte (1798-1857), a monarquia correspondia ao estado metafísico e tinha que ser superada pelo estado positivo. A passagem de um para outro devia ser feita sob os auspícios de uma ditadura republicana. Parte dos intelectuais e homens de letras, como Sílvio Romero e Raul Pompéia, também aderiu. Mas inexistiam bases republicanas populares. Uma proclamação da República em meio a uma revolta popular ao estilo da Primeira República francesa, como queria Silva Jardim, era impossível por falta de revoltosos. A maioria dos republicanos pensava em aguardar a morte do imperador para mudar o regime, se possível pela convocação de uma constituinte, como propunha o Manifesto de 1870.

    O movimento foi ainda favorecido pelo desgaste da monarquia e pelas medidas abolicionistas tomadas pelo governo. A Lei do Ventre Livre, de 1870, fez crescer o apoio à República ou, pelo menos, o desinteresse pelo destino da monarquia. A Abolição, em 1888, transformou de vez grande parte dos proprietários em simpatizantes da República. Eram os republicanos de 14 de maio, referência ao dia seguinte à Lei Áurea. Por outro lado, o sistema revelou grande incapacidade de defesa. Os ataques à monarquia e a ridicularização do imperador se faziam livremente na imprensa. Silva Jardim propunha de público, e impunemente, fuzilar o conde d’Eu, marido da princesa Isabel. As  tentativas de reação de alguns ministros eram desautorizadas por D. Pedro II.

    A decisão de agir foi tomada por militares à revelia dos civis. Aliaram-se na empreitada oficiais-generais, como Deodoro e Pelotas, remanescentes da Guerra do Paraguai (1864-1870) e desgostosos com o tratamento dado ao Exército pelos sucessivos governos monárquicos, e jovens oficiais e alunos da Escola Militar, convertidos ao republicanismo e ansiosos por desafiar a tradicional hegemonia dos bacharéis na política nacional. Vários conflitos desses militares com o governo prepararam o ambiente para o 15 de novembro. Os republicanos civis foram informados dos planos apenas quatro dias antes. Por precaução, o jacobino Silva Jardim não foi avisado. A proclamação em si foi um golpe militar, entendido inicialmente por Deodoro como deposição do gabinete, e só no fim do dia, sob pressão dos camaradas e dos civis já envolvidos, transformado em derrubada da monarquia. D. Pedro se opôs a qualquer tipo de reação e disse que era sua aposentadoria. No dia 15, houve um único ferido, o ministro da Marinha, barão de Ladário.  

    Em contraste, o movimento republicano português começou mais cedo, foi mais profundo e mais complexo. Suas dificuldades, no entanto, foram maiores devido à longa tradição dinástica do país. Desde 1848, data da revolução que proclamou a Segunda República francesa, houve em Portugal manifestações republicanas. Em 1876, formou-se em Lisboa um Centro Republicano Democrático. A data foi considerada por alguns a de fundação do partido. Em 1882, o partido conseguiu organizar-se em base nacional. A diferença mais importante em relação ao caso brasileiro residia na maior complexidade social e ideológica do movimento português. Havia republicanos liberais, positivistas e, o mais importante, socialistas à moda de 1848. E todos brigavam entre si. Tal diversificação afetava a unidade do grupo. Em 1891, republicanos do Porto organizaram por conta própria uma revolta, rapidamente reprimida. Apesar da desunião, o movimento era difundido pelo país, transpondo os limites de Lisboa e do Porto, onde era mais forte. Em 1910, havia algumas centenas de comissões municipais, paroquiais e distritais, e 172 centros, quatro deles no Brasil. Para um país pequeno, não era pouco.  Nessas comissões e centros encontravam-se pessoas de várias camadas sociais, inclusive operários. Surgiu mesmo um setor jacobino radical chamado de Carbonária.
    Ao chegar a Lisboa destronado, D. Pedro II ainda presenciou os funerais de D. Luiz, seu sobrinho. Ocupava o trono D. Carlos I, seu sobrinho-neto. A Proclamação da República no Brasil, onde vivia grande colônia portuguesa, serviu de incentivo aos republicanos portugueses e de alerta para os monarquistas. Logo a seguir, em 1890, Portugal foi humilhado pelo ultimato inglês contra suas pretensões na África. A aceitação do ultimato por D. Carlos e pelo governo fez o prestígio da monarquia despencar. Ele não deixou de cair nos anos seguintes, à medida que os partidos se esterilizavam no governo.  Em 1908, a agitação política atingiu um ponto crítico. Em Lisboa, sucediam-se atentados anarquistas que eram reprimidos com violência pela polícia. Em um desses atentados, foi assassinado o rei D. Carlos por republicanos radicais reunidos na Carbonária.  Morreu ainda o príncipe real D. Luís Filipe e saiu ferido o infante D. Manuel, que se tornou o novo rei. Os regicidas foram mortos na hora, mas 80 mil pessoas acorreram a prestar-lhes homenagens póstumas em seus túmulos.
    A Proclamação da República veio dois anos depois, em 5 de outubro de 1910, de modo muito mais participativo e mais violento do que no caso brasileiro. A revolta foi planejada por grupos republicanos, liderados pela Carbonária, com o apoio de oficiais do Exército e da Marinha, de soldados e de marinheiros de dois navios de guerra. No dia 4 pela manhã, grupos de carbonários iniciaram a luta tomando quartéis e depósitos de armas. Fortificaram-se na Rotunda (Praça Marquês de Pombal), localizada  no alto da Avenida da Liberdade, de onde bombardearam o Rossio. Os navios bombardearam o Palácio das Necessidades e o Terreiro do Paço. A resistência da Guarda Municipal mostrou-se ineficaz, e o ânimo combatente do Exército não foi dos maiores. Mas a luta continuou por todo o dia 4 e só se decidiu na manhã do dia 5, quando as tropas do governo se renderam. Às 11 horas, a República foi proclamada das janelas da Câmara Municipal. Formou-se um governo provisório sob a presidência de um antigo militante e intelectual republicano, Teófilo Braga. O rei D. Manuel fugiu do país e se refugiou em Gibraltar, de onde passou à Inglaterra. Da luta resultaram 76 mortos e mais de 200 feridos. No dia seguinte, a República foi proclamada no Porto e em Coimbra. O resto do país aceitou o novo regime sem resistência.

    Em contraste com a proclamação da República brasileira, a que o povo assistiu bestializado, a portuguesa foi, literalmente, promovida por povo e tropa, lembrando as revoltas brasileiras da Regência (1831-1840). Calcula-se que o grupo jacobino Carbonária, chefiado por Machado Santos, responsável pela luta de rua, tinha cerca de 40 mil adeptos. Durante o conflito, foram distribuídas armas a populares, que se misturaram aos soldados e lutaram a seu lado. Muitos desses populares eram, sem dúvida, membros dos 38 centros republicanos da cidade. Pessoas do povo, inclusive mulheres, auxiliavam alimentando os combatentes, distribuindo café e aguardente e servindo de mensageiros. Se não alcançou a violência da Revolução Francesa, a proclamação da República portuguesa teve forte cheiro de povo. Ironicamente, o presidente eleito da República brasileira, marechal Hermes da Fonseca, estava em visita a Portugal no momento. O rei lhe oferecera um banquete no dia 3. Foi o baile da Ilha Fiscal da monarquia portuguesa. Não se sabe se o marechal gostou do banquete, mas consta que, do que se passou nas ruas, não gostou nada.

    José Murilo de Carvalho é professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (Companhia das Letras, 1987).

    Saiba Mais - Bibliografia

    CATROGA,  Fernando. O republicanismo em Portugal. Da fundação ao 5 de outubro de 1910. Lisboa: Notícias Editorial, 2ª. ed., 2000.
    1910: o ano da República. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2010.
    MAGALHÃES, Joaquim Romero. Vem aí a República! 1906-1910. Coimbra: Almedina, 2009.