“Esporte dos reis” ou “prática de gente alienada”? Nem uma coisa nem outra. Em sua longa história, o surfe foi incorporado de diferentes maneiras por diferentes culturas. No Brasil, chegou há pouco mais de meio século. Tempo suficiente para percorrer diferentes gerações e simbolismos...
Iniciada pelos polinésios, a prática de deslizar de pé sobre as ondas já esteve ligada a ritos religiosos e cerimoniais. O Ocidente moderno tomou conhecimento do costume por intermédio do explorador britânico James Cook (1728-1779), que se deparou com a incrível cena de homens flutuando sobre as águas. Mas sua difusão como esporte só se concretizaria a partir do início do século XX, quando apareceram os primeiros clubes de surfe na Califórnia, costa oeste dos Estados Unidos.
A cultura norte-americana do lazer e, sobretudo, sua embrionária indústria de turismo desempenharam papel importante na definição do surfe em termos esportivos, pois foram responsáveis pela “redescoberta” do Havaí como lugar de um novo hedonismo. A saia de capim das mulheres, sua dança licenciosa (o hula) associada aos ritmos festivos e à alegria simbolizada no colar de flores, foram elementos que permitiram ao arquipélago elevar-se ao status de arquétipo do paraíso perdido. E o surfe era parte integrante dessa nova cultura de prazeres individuais.
Ao longo do século, a indústria do entretenimento usou e abusou desse imaginário associado ao esporte. A valorização da transgressão, que passou a envolver parte da juventude americana no período pós-Segunda Guerra Mundial – demonstrada pelo sucesso dos livros de Jack Kerouac e de filmes como “Juventude Transviada” (1955) –, não tardou a apresentar o surfe como um canal de realização para um conjunto de aspirações ligadas às idéias de contestação e marginalidade.
Filmes, músicas, roupas e outros artefatos tentavam explorar algum nexo entre o surfe e essa cultura juvenil. Seriados televisivos que mais tarde se tornariam filmes de ficção, como “Gidget” (1959), e documentários como “Endless Summer” (1966), revistas especializadas, como a pioneira Surfer (1960) e até grupos musicais, como os Beach Boys (1961), contribuíam para a construção de uma identidade que dali em diante poderia ser compartilhada por um universo ampliado de pessoas. É desse modo e nessa época que o surfe chega ao litoral brasileiro.
Nos idos de 1950, já era possível ver alguns jovens cariocas se divertindo ao deslizar nas ondas a bordo de tábuas de madeira construídas por eles próprios. O material improvisado ficou conhecido como “portas de igreja” devido ao seu formato. Aos poucos, o costume despertou curiosidade. Um grupo se empenhou em aprimorar as pranchas e chegou a um modelo mais elaborado, que ficou conhecido como “madeirite”. Mas a difusão veio mesmo graças a um carpinteiro de Ipanema, que começou a fabricar e comercializar essas pranchas entre 1962 e 1963. Assim, mais e mais pessoas puderam experimentar o esporte, até então restrito a um pequeno círculo de adeptos.
Alguns surfistas adquiriam certa visibilidade junto à opinião pública. Foi o caso de Bruno Hermany e Arduíno Colassanti. Hermany havia se sagrado bicampeão mundial de pesca submarina e Colassanti atuava em produções do cinema, sendo alçado ao posto de galã. Junto com a fama desses personagens, difundiam-se os hábitos de toda uma geração, entre os quais o surfe. Era um período em que Ipanema ganhava destaque na cena nacional. Músicos, cineastas, jornalistas e intelectuais moravam no bairro e incorporavam um estilo de vida todo próprio. Nascia a bossa nova, um balanço que tinha a ver com a imagem dos surfistas: “Jovem, diurna, de frente para o mar, e esse espírito solar era o de Ipanema e do Arpoador”, descreve Ruy Castro no livro Ela é carioca. Estavam todos na mesma praia.
Em janeiro de 1964, a revista O Cruzeiro anunciou a “sensação” daquele verão: “Há algo de novo sob o sol do Arpoador – que, este ano, toma feições de praias havaianas, com rapazes deslizando na crista das ondas equilibrados sobre pranchas. E o esporte tem nome inglês: ‘surfing’”. A começar pelos termos utilizados, os primórdios do passatempo ficavam mesmo para trás. “Portas de igreja” e “madeirites” agora eram “pranchas”, e o ato de descer de pé sobre as ondas, “surf”. Os adeptos, a princípio, eram chamados de “pranchistas”, depois de “surfers”, o que revela a franca incorporação das influências vindas dos Estados Unidos e o estabelecimento definitivo de uma conexão com a cultura esportiva do Havaí.
Em 1965 foi criada a Federação Carioca de Surfe, que organizou as primeiras competições: começava a institucionalização do esporte. Como conseqüência, seus praticantes adotavam hábitos que tinham no surfe a principal referência. Era a “Geração Surf”, um grupo de jovens que se apresentavam publicamente como surfistas e cuja prática deixava de ser apenas uma alternativa de divertimento praiano entre outras para se configurar como a derradeira opção em suas vidas. Uma geração cujas identidades se cristalizavam em função desse esporte. Moças e rapazes que “exibiam um conjunto de cores, que agora faziam parte do surf”, informava o Jornal do Brasil em 1966. E a constante presença na imprensa levou a onda do surfe para além do Rio de Janeiro. Em 1967 ocorre o primeiro campeonato de surfe de São Paulo, na praia de Santos.
Na passagem dos anos 1960 para os 70, uma nova revolução cultural mundial ficaria impregnada no universo simbólico do surfe: o movimento hippie. No Brasil, mais particularmente no Rio de Janeiro, o resultado dessa aproximação foi a saída de cena da “geração surf”, muito mais comedida, para dar lugar aos extravagantes “surfistas ripongas” e, pouco depois, à “geração cocota”. Esta tinha um comportamento-padrão em quase tudo ligado ao esporte. Os mais bonitos e comportados eram identificados como “gatos” e “gatas”. Os desamparadamente feios eram reconhecidos como “bregas”. Só os mais arrojados e audaciosos nas manobras sobre as ondas mereciam o título de “feras”. As roupas também os tornavam facilmente identificáveis: calças de cós rebaixado e boca estreita eram a preferência geral. As meninas, sem maquiagem, tinham predileção por rapazes de cabelos louros e compridos, o que estimulava a venda e aplicação da água oxigenada ou parafina para clarear as madeixas. Outra característica era o uso de camisas americanas Hang-ten, com dois pés estampados como marca registrada. “No mundo dos cocotas, tudo o que é americano é melhor”, decretava a revista Veja em 1975.
Daí em diante, os ideais do surfe se popularizaram de forma irreversível ao longo de toda a costa brasileira – com especial intensidade no litoral paulista, em Florianópolis e em algumas praias nordestinas, sobretudo nas da Bahia. Contribuíram para isso o aumento do número de competições e a consolidação de uma mentalidade empresarial entre os surfistas – movidos pelo ímpeto de comercializar a prática, muitos se esforçaram para garantir uma organização capaz de promovê-la de maneira mais eficiente. Mas nada que os afastasse da idéia de culto à natureza. Ao mesmo tempo, a preocupação com a saúde ia se tornando um estilo de vida consagrado e já fazia parte do dia-a-dia surfista, ainda que vista de modo estereotipado: “Dormem cedo, elegem a simplicidade em vez dos conflitos, procuram ar puro em lugar de fumaça de cigarros, bebem suco de cenoura e adoram um recheio de ricota entre duas fatias de pão preto”, descreveu também a Veja, em 1982.
Estereótipos provavelmente jamais abandonarão a figura do surfista. Hoje ele é retratado por parte da mídia como um vagabundo de praia, alienado e dado a esoterismos. Sinal de que os valores hippies continuam influenciando o imaginário em torno do esporte. Mas sua história comprova que os rótulos nunca dão conta de toda a experiência. Ao sabor das mudanças de ritual, estilo de vida, visão de mundo, identidade e comportamento, o surfe cumpre seu destino: desliza bem em qualquer onda.
Cleber Augusto Gonçalves Dias é pesquisador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer (UFRJ) e autor do livro Urbanidades da natureza: o surfe, o montanhismo e as novas configurações do esporte no Rio de Janeiro (Apicuri, Rio de Janeiro: 2008).
Saiba Mais - Bibliografia:
DIAS, Cleber. Urbanidades da natureza: o surfe, o montanhismo e as novas configurações do esporte no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
GUTENBERG, Alex. A história do surf no Brasil: 50 anos de aventura. São Paulo: Azul, 1989.
KAMPION, Drew; BROWN, Bruce. Stoked: a history of surf culture. Utah: Gibbs Smith, 2003.
Saiba Mais - Filme:
“Riding Giants”, de Stacy Peralta (EUA, 2004).Pepê, geração saúde
O Píer de Ipanema marcou época. Ali surgiram grandes personagens. Um deles tinha apenas 14 anos, corpo franzino, cabelos loiros e longos. O nome? Pedro Paulo Guise Carneiro Lopes, o Pepê.
Com uma aptidão incomum para o esporte em geral (foi bicampeão carioca mirim de hipismo aos 13 anos), ele descia destemido do apartamento na Rua Montenegro (hoje Vinicius de Moraes) e pegava as maiores ondas da praia. Já aos 17 anos se tornaria o primeiro brasileiro a chegar à final do Pipe Master – a maior prova do esporte, realizada na praia de Pipeline, no Havaí. Tricampeão brasileiro, era respeitado por lendas como Gerry Lopez.
Natureba, Pepê virou símbolo maior da geração saúde do Rio de Janeiro. Boa-praça e preocupado com a ecologia, tinha também tino para os negócios e foi o primeiro a montar uma barraca de comida natural na praia do Pepino, em São Conrado. O campeão de vendas da barraca era um sanduíche que juntava pasta de frango, beterraba, cenoura, pepino, broto de alfafa, alface e pão integral. Virou mania entre os cariocas, espalhando-se pela cidade. Pepê ainda abriu o restaurante Sushi Leblon muito antes de a culinária nipônica virar moda no Rio.
Em 1979, abandonou o surfe e decidiu se aventurar em um esporte ainda mais perigoso: o vôo livre. Três anos depois, sagrou-se campeão mundial de asa-delta em Tóquio. Em 1991, partiu para o Japão a fim de tentar o bicampeonato. O desafio: voar 100 quilômetros entre Wakayama e Kushimoto, um percurso que desrespeitava todas as normas de segurança do esporte. No último dia de competição, apenas três atletas continuaram. Nenhum deles conseguiu completar a prova, mas Pepê não teve sorte e se chocou contra as rochas. Morreu no dia 4 de abril de 1991, aos 33 anos. No ano seguinte, um trecho da praia da Barra da Tijuca e uma avenida no mesmo bairro carioca foram batizados com o seu nome.
De Machu Picchu para o Havaí
E se o surfe, cujo berço parece ter sido a Polinésia, tivesse nascido no continente latino-americano? E os primeiros surfistas da História fossem pescadores de antigas civilizações incas do Peru?
Tudo começa com a totora, um tipo de junco que cresce nas margens peruanas do Oceano Pacífico e do Lago Titicaca. A planta, bem trabalhada, proporciona uma boa flutuação, e os incas já a utilizavam séculos antes de Cristo na construção de embarcações que serviam para a prática da pesca. Sua forma lembra uma grande prancha de surfe com a ponta levantada, e o nome pelo qual são conhecidas, “cavalos de totora”, sugere a idéia de um instrumento que cavalga todo tipo de onda.
Possivelmente, os homens entravam pelo mar remando com um rudimentar pedaço de bambu, e após soltar a rede, voltavam para terra “surfando” na onda. Antigas cerâmicas da cultura Viru, civilização inca localizada na região da atual cidade de Trujillo, apresentam desenhos de cavalinhos de totora e de pessoas deitadas em posição de remada.
Os primeiros surfistas da História? É uma hipótese interessante. Também existem teorias segundo as quais os incas teriam atravessado o Pacífico em embarcações leves com velas e chegado até a Polinésia, aproveitando os ventos alísios e as correntes marinhas. Eles teriam levado então para o Havaí e para as outras ilhotas também a prática do surfe?
Especial Surfe - Na crista da onda
Cleber Augusto Gonçalves Dias