Espelho da fé

Sílvia Barbosa Guimarães Borges e Jorge Victor de Araújo Souza

  • Na primeira visitação do Santo Ofício à América portuguesa, em 1591, ficou registrada nos autos a denúncia contra o colono Álvaro Sanches. Feita no dia 21 de agosto, a denúncia dizia respeito a fatos ocorridos vinte anos antes. Uma mulher relatou a cena vista: Sanches “com a cabeça sobre um livro Flox Sanctorum (obra que narra vidas de santos) e chegando ela (denunciante) viu que ele estava com um alfinete picando a coroa de Nossa Senhora que estava pintada no dito livro”. Ainda pior para o colono: as filhas da denunciante afirmaram que ele também rasgava os papéis em que estavam pintadas as imagens sagradas. As gravuras religiosas exerciam um papel destacado no universo religioso da Colônia. Eram, decerto, capazes de levar incautos às garras do Santo Oficio, criar divergências entre cristãos, mas também serviam como caminho para transportar imagens renascentistas para as paredes de um claustro franciscano em Recife ou auxiliar pintores na América portuguesa a não infringir dogmas católicos. Eram o espelho da fé transplantada para o Novo Mundo.

    Um episódio ocorrido em Pernambuco em 1593, pouco depois da visitação do Santo Ofício, apontado pela historiadora Laura de Mello e Souza, ajuda a entender até que ponto uma representação gráfica podia influenciar a vivência religiosa dos colonos. Uma gravura italiana provocara a desavença entre empregados domésticos: Luís Mendes de Thoar pregou na cabeceira de sua cama uma gravura que representava a Santíssima Trindade. Observando-a, ele e seu companheiro Gaspar Rodrigues começaram a discutir sobre a ordem das três pessoas da Trindade que aparecia na estampa. Os dois terminaram nas mãos do Santo Oficio, tendo que explicar suas dúvidas ao visitador.

    Uma gravura significava a efetiva visualização de um tema religioso, então contido em livros. Isto, teoricamente, ajudava a evitar “desvios”, uma preocupação constante na doutrina da Igreja, principalmente a partir do Concílio de Trento (1545-1563). As representações deviam, portanto, apresentar com clareza a mensagem a ser transmitida. Para compreender o poder de expansão de gravuras religiosas neste período, é necessário destacar a importância de um editor: Christophe Plantin (1520-1589), que comandou a maior tipografia da Europa Ocidental na segunda metade do século XVI. Em 10 de junho de 1570, Filipe II (1556-1598), então rei de Espanha, deu ao editor Plantin o título de Arquetipógrafo Real. Daí em diante, Plantin deteve o monopólio sobre a impressão de livros religiosos de um imenso e poderoso reino católico. Ele e seus colaboradores distribuíram carregamentos de material impresso em diversas regiões do globo, destacando-se missais, breviários, livros de horas (livro de orações), antifonários (conjunto de melodias dos cantos religiosos), Bíblias, enfim, um grande volume de livros religiosos decorados com gravuras.

    Este importante editor tinha numerosos gravadores e editores a seu serviço. Entre eles destacaram-se flamengos como Hieronimus Coock (1507-1570), Martin de Vos (1532–1603), Jules Sadelers (1550-1610) e os irmãos Wierix, artistas cujas gravuras podem ser encontradas no acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. De Antuérpia, hoje situada na Bélgica,  ele conduziu um dos mais poderosos meios de divulgação contra-reformista.

  • As gravuras produzidas por Plantin e outros editores circulavam com grande facilidade, chegando à China e à América portuguesa. Serafim Leite (1880-1969), autor de Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil, ao falar sobre os pintores jesuítas, destacou que “pelo que toca à pintura, as primeiras imagens, estampas e painéis que houve no Brasil foram de Lisboa, não só quadros pintados, mas os que em Portugal se chamam ‘registros’ e popularmente ‘santinhos’”. Muitos colonos embevecidos de uma fé que desejavam ostentar, faziam uso desses “santinhos” (gravuras) até mesmo na decoração de suas casas.

    Mas as gravuras tinham outras funções, não servindo somente para circular de mão em mão, para usos pessoais. Também eram modelos para artistas, sendo amplamente usadas por pintores na América portuguesa. Isso pode ser certificado, por exemplo, através de testamentos. Em 18 de dezembro de 1794, o pintor João Nepomuceno Corrêa e Castro, de Mariana (MG), deixou para seus dois aprendizes, Francisco e Bernardino, todas as suas gravuras, seus riscos e desenhos, atestando a importância deste material para o oficio de pintor.

    Já o pintor anônimo do painel do retábulo-mor da igreja de São Lourenço dos Índios, em Niterói (RJ), utilizou uma gravura de um missal da oficina de Christophe Plantin: Officium Beatae Mariae Virginis. Este belo retábulo é considerado uma obra jesuítica, de estilo maneirista, do século XVII. Na pintura que o encima, vê-se Maria ascendendo aos céus em uma nuvem sustentada por anjos. Sua mão direita está sobre o peito, enquanto o braço esquerdo está esticado e seus olhos estão voltados para cima. Sua postura é um sinal de puro êxtase. Seus trajes, cabelo e manto estão agitados pelos ventos em um movimento típico de figuras barrocas. Nossa Senhora está na mesma postura da gravura e também é sustentada por anjos que seguram a nuvem. A semelhança é muito grande, principalmente se forem comparadas as zonas de luz. No traje de Maria, sobretudo, no “y” formado no manto logo abaixo do braço estendido, é possível identificar esta semelhança. Outros pontos claramente idênticos são formados pelos detalhes das mãos, dos cabelos da Virgem e dos anjos. Um exemplar do Officium Beatae, edição do século XVIII, cuja gravura serviu de modelo para a pintura pode ser encontrado na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

  • O Officium Beatae foi muito usado, mas um conjunto de estampas que influenciou o trabalho de muitos artistas foi o do francês Michael Demarne. Sobre ele há pouquíssimas informações. Sabe-se apenas que foi arquiteto e gravador e que viveu no século XVIII. Uma série de gravuras com sua assinatura é conhecida como “Bíblia de Demarne” (Histoire Sacrée de la providence et de la conduite de Dieu sur les hommes). Publicada em Paris entre 1728 e 1730, foi dedicada à rainha da França, Maria Leszczynska (1703-1768). Seus três volumes, com quinhentas estampas, podem ser encontrados na Biblioteca Nacional. Na folha de rosto da Bíblia de Demarne há uma inscrição em que o gravador declara que poderá oferecer as gravuras separadamente e no tamanho de papel que se quiser. Fato interessante é que 52 destas gravuras são cópias das pinturas que o renascentista Rafael Sanzio (1483-1520) e seus colaboradores fizeram em 1518 para a segunda loggia do Vaticano, uma longa galeria (65 metros) dividida por treze arcadas. Em cada uma das abóbadas há quatro cenas que narram passagens do Antigo ao Novo Testamento. As decorações “em grotescos” completam o espaço. A série de pinturas conhecida como “Bíblia de Rafael” é composta de afrescos (pintura feita em massa ainda úmida). Rafael tinha um traço bem delimitado e um desenho preciso. Por essas qualidades, era apreciado por gravadores que multiplicaram e divulgaram suas pinturas em forma de estampas, como Michael Demarne.

    As gravuras de Demarne, de desenhos rafaelistas, serviram de inspiração para uma das mais importantes obras sacras do Brasil, pois foi por meio dessas imagens que Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), grande expoente da arte colonial, fez, entre 1803 e 1804, as pinturas da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (MG). Este artista ornou as paredes com pinturas que ilustram seis cenas do Antigo Testamento, todas retiradas da História de Abraão. Ataíde não alterou as composições das gravuras de Demarne. No entanto, fez pequenas modificações, como, por exemplo, na cena que retrata os três anjos com Abraão. Em comparação com as gravuras, Ataíde também simplificou os planos de fundo das pinturas, mantendo apenas os elementos centrais de cada cena.

    Ataíde pintou estas obras de maneira muito semelhante aos painéis de azulejos portugueses, tão comuns em igrejas da Ordem Franciscana. Isto pode ser facilmente observado através de três aspectos: o formato da moldura que envolve as cenas, a localização especifica na parte inferior da parede e a cor azul predominante em várias tonalidades. É preciso destacar as dificuldades que envolviam o transporte seguro de peças delicadas como os azulejos para uma igreja em Minas Gerais, exigindo, assim, o embelezamento das paredes por meio de uma adaptação. Por este motivo, as pinturas de Ataíde são uma inovação e uma intrigante apropriação das características de azulejos. Por meio de gravuras de Demarne, Ataíde conseguiu um modelo para suas obras e reproduziu algumas pinturas de Rafael.

    Esses trabalhos de Demarne também serviram de modelo para os azulejadores portugueses que produziram no século XVIII os azulejos do claustro do convento franciscano de Recife, entre eles a “Expulsão do Paraíso”. A cena da expulsão procura ilustrar a passagem: “E Iahweh o expulsou do jardim do Éden para cultivar o solo de onde fora tirado. Ele baniu o homem e colocou, diante do jardim do Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida” (Gen. 3:23,24). Na cena, vê-se um homem andando com as mãos na face, num gesto que é um misto de desespero e vergonha. Ao seu lado caminha uma mulher que tenta tapar seu corpo com as mãos. Atrás do infortunado casal segue um anjo segurando uma espada com a mão direita. O ser celestial está com a mão esquerda pousada no ombro do homem, em um gesto ambíguo, quase a consolá-lo.

  • Comparando a cena da expulsão de Adão e Eva no painel de azulejos com a gravura de Demarne e com a pintura de Rafael, é possível atentar-se para inegáveis semelhanças: os degraus da escada, a vestimenta e a leve curvatura dos ombros do anjo e as posições de Adão e Eva. Interessante notar que Adão, na pintura de Rafael, não tem uma folha de parreira tapando o sexo, diferentemente do que se vê na gravura e no painel azulejar. Este pequeno elemento permite perceber que também era possível ao gravador implementar modificações a partir de seu modelo. O detalhe da folha de parreira aponta para o tipo de tratamento que passou a ser dado à nudez nas obras religiosas posteriores ao Concílio de Trento, quando o corpo nu voltou a ser visto com desconfiança. A luminosidade é marcadamente semelhante nestas três obras. Nos suportes – afresco, papel e azulejo – é possível perceber que os raios de luz vêm de trás do anjo. Em Rafael, a luminosidade é expressa pelo jogo de cores que o gravador Demarne traduz em riscos finos, reproduzidos pelo azulejador. No fundo, que também é sutilmente modificado nos azulejos, é possível perceber com clareza o “alargamento” feito pelo artista. Ao copiar os três personagens, ele retirou o tronco de árvore de trás da mulher e o colocou mais à frente, ampliando a cena para limitá-la com a moldura em estilo rococó do painel azulejar.

    Caminhando pelo claustro, um local de meditação, os frades do convento de Recife podiam refletir sobre as passagens do Antigo Testamento, freqüentemente comentadas por Santo Antônio em seus Sermões Dominicais. No claustro, os frades franciscanos admiravam imagens em suas paredes. Algumas delas, graças às gravuras, têm origem no Renascimento italiano.

    Nesse processo de circulação de idéias e práticas religiosas, as gravuras cumpriram um  papel fundamental como modelos legitimados para os artistas que atuaram no espaço luso-brasileiro. Apontar a assimilação desses modelos é reconhecer um aspecto da mundialização em constante processo na monarquia católica. Assim, não causaria grande surpresa perceber, entre pinturas de nossas igrejas, cópias de artistas consagrados, como Peter Paul Rubens (1577-1640), Annibale Carracci (1560-1609) ou mesmo, Rafael Sanzio, provas gravadas (talhadas ou pintadas) da crença católica espalhada pelo mundo, apoiada em grande escala pelo alcance e pela força das imagens religiosas.


    Sílvia Barbosa Guimarães Borges é mestranda em História e Crítica da Arte na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Jorge Victor de Araújo Souza é mestrando em História Social na mesma universidade.