“A mim surpreende-me muito que Borges não tenha escrito O ano da morte de Ricardo Reis”, confessa o escritor português José Saramago (1922-2010) na comemoração dos 100 anos do nascimento do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986). “Se Borges tinha sido capaz de inventar Pierre Menard e Herbert Quain, está claro que para ele teria sido uma brincadeira de crianças dar vida a Ricardo Reis. Talvez não o tenha feito precisamente por ser tão fácil...”. Com estas palavras, Saramago estabelece uma ligação entre os breves relatos de Borges e seu romance, publicado em novembro de 1984. Tal como Menard e Quain, Ricardo Reis é um autor inventado, mas desta vez pelo também português Fernando Pessoa (1888-1935), que criou identidades, chamadas “heterônimos”, atribuindo-lhes vida e obra próprias. Portanto, trata-se de uma criação muito peculiar, semelhante ao procedimento de Borges em Exame da obra de Herbert Quain (1941), que apresenta vida e obra de um autor irlandês recentemente falecido, deixando o leitor na dúvida se este realmente existiu e escreveu a obra comentada no “exame”.
O médico Ricardo Reis, nascido no Porto em 1887, exilado no Brasil desde 1919, e sem data de morte definida, tornou-se um dos heterônimos mais conhecidos de Pessoa – também por causa do romance O ano da morte de Ricardo Reis. Por vontade de Saramago, Reis regressa do Rio a Lisboa, depois de ter recebido a notícia da morte do seu criador, falecido em 30 de novembro de 1935. Qual o sentido de se imaginar um trecho da vida de uma identidade fingida por outro autor, já falecido? É tudo só um jogo na fronteira nebulosa entre ficção e realidade que se pode continuar ad infinitum?
Desde as primeiras páginas, aparece a figura do labirinto, tão caro ao escritor argentino. Aparece ainda The God of the labyrinth (O Deus do labirinto), romance policial comentado por Borges em Exame da obra de Herbert Quain. A aparição deste livro imaginado nas mãos de Ricardo Reis exibe, por um lado, a filiação a Borges; por outro, a sua leitura – inacabada – é feita por um ser imaginado, exposto à realidade de 1935 e 1936.
Em vez de imaginar Ricardo Reis como autor – é nisso que se centra a heteronímia pessoana – Saramago destaca sua virtude de leitor de livros e de jornais, mas também o confronto com a realidade de 1936, nas deambulações pela cidade, e ainda a relação amorosa física com a criada de hotel, chamada Lídia, cujo nome – estranha coincidência – aparece em suas poesias, odes latinizantes que Reis, por vontade do seu criador Pessoa, sabe compor.
O títuloThe God of the labyrinthdesperta expectativas. Reis interroga-se sobre “um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico” e fala do criminoso, da vítima e do detetive como “três cúmplices da morte”. Enquanto Exame da obra de Herbert Quain insiste simplesmente numa segunda leitura do leitor “mais perspicaz que o detetive” para encontrar a solução, Saramago realça “o leitor de romances policiais” como “único e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não é como sobrevivente único e real que todo o leitor lê toda a história”. Ao longo da sua permanência em Lisboa, Reis fará várias tentativas de leitura, deixando-a finalmente incompleta: “Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo”, ele dirá a Pessoa-fantasma que, depois de repetidas visitas noturnas, o procurará para levá-lo ao mundo dos mortos. Reis não só obedece, apesar de Lídia ficar à sua espera, mas também leva o livro The God of the labyrinth consigo, embora no além não haja leitura possível.
Quem sobrevive é o leitor deste romance, que confronta os jogos da ficção com a realidade política de 1936. Do Estado Novo português de Salazar (1889-1970), que nesses anos iniciais está em sintonia com o fascismo de Mussolini e o nazismo de Hitler: quem são os criminosos, as vítimas e os cúmplices?
Ricardo Reis encontra-se diante de uma bifurcação no tempo que lembra claramente O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941) de Borges. Para avançar, o leitor dos jornais, o observador passivo deste “espetáculo do mundo”, fórmula poética do seu afastamento, deve se transformar num ator da realidade. A personagem Ricardo Reis paradoxalmente “encarna” esta possibilidade, evoluindo contra as características do poeta criado por Fernando Pessoa. A sua atitude impassível expressa-se paradigmaticamente na famosa ode “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia...”, escrita em 1916, que mostra dois jogadores de xadrez que não se deixam perturbar pela guerra à sua volta.
No romance, a releitura deste poema é enredada com a leitura da reportagem do Diário de Notícias de 3 de maio de 1936 sobre a invasão de Addis-Abeba, capital da Etiópia, pelas tropas italianas. Curiosamente, Reis passa a ler o que não está escrito nojornal, ignorando “donde veio a intromissão”. Das atrocidades perpetradas pelos fascistas italianos, dos quais o jornal não fala, Reis muda – sem se saber por que – para The God of the labyrinth. Nele, lê sobre um corpo encontrado pelo primeiro jogador de xadrez que ocupava, “de braços abertos, as casas dos peões do rei e da rainha e as duas seguintes, na direção do campo adversário, a mão esquerda numa casa branca, a mão direita numa casa preta”. E, de repente, escolhe entre os poemas apontados no seu caderno a ode “Ouvi contar que outrora…”, porque “sabe enfim o que procura”.
A colagem dos três textos centra-se na questão da indiferença dos jogadores perante a invasão da cidade, com “as mulheres e as tenras filhas violadas”. No romance, nem aparece este verso, nem o anúncio da morte iminente de um dos dois adversários pela mão “dum guerreiro invasor”, que parece corresponder ao corpo encontrado no tabuleiro, em The Godof the labyrinth. É essa a ligação que Ricardo Reis procurou? Será o corpo encontrado o do jogador indeciso entre duas casas, a branca e a preta? Só um leitor-detetive que, por sua vez, empreende a releitura dos textos de Pessoa e Borges pode fazer esta pergunta. Ricardo Reis, jogador mas também figura no “tabuleiro” do romance, vai entrando em cumplicidade com este leitor, também ele jogador: “este o xadrez, e nós os jogadores, eu Ricardo Reis, tu leitor meu, ardem casas, saqueadas são as arcas e paredes, mas quando o rei de marfim está em perigo, que importa a carne e o osso das irmãs e das mães e das crianças, se carne e osso nosso em penedo convertido, mudado em jogador, e de xadrez”.
As palavras “se carne e osso nosso em penedo convertido” lembram os versos “Converte-se-me a carne em terra dura/ Em penedos os ossos se fizeram” de Os Lusíadas. Eles aparecem, no relato da viagem de Vasco da Gama, quando o gigante Adamastor narra a sua metamorfose. A diferença essencial é o possessivo “nosso”, que abrange Reis e o leitor, ambos transformados em estátuas ou jogadores de xadrez. Por permanecerem passivos e indiferentes, eles tornam-se cúmplices da morte. Porque a realidade cruel à sua volta é o lugar do crime ou, mais precisamente, de crimes.
No fim do romance, será precisamente no Alto de Santa Catarina, ao pé da estátua em pedra do Adamastor, que Ricardo Reis observa, na madrugada do dia 8 de setembro de 1936, o desfecho da primeira revolta contra o regime de Salazar. Pelos olhos e ouvidos de alguém que nunca existiu, o leitor é levado a revistar a derrota e a rendição dos marinheiros, sob o fogo do forte de Almada e do Alto do Duque na foz do Tejo. A bordo de um dos três navios dos revoltosos que queriam mudar o rumo da História encontra-se Daniel, o irmão de Lídia, um dos 12 marinheiros mortos. Transtornado, Ricardo Reis regressa a casa, deita-se e esconde “os olhos com o antebraço para poder chorar à vontade. Lágrimas absurdas, que esta revolta não foi sua”.
Na penúltima frase do romance, é a própria estátua do Adamastor que parece “ser capaz de dar o grande grito”, como que se querendo unir aos marinheiros no Tejo, desejosos de desencadear uma revolução que, no entanto, só chegará quase quatro décadas mais tarde, em 1974. Este grito possível de uma estátua apela para uma nova leitura, deste livro e da nossa realidade. O ano da morte de Ricardo Reis, sem dúvida o romance mais borgesiano de Saramago, em vez de se limitar ao prazer da metaficção, desassossega o leitor, único e real sobrevivente. Questionando a estética dos mundos possíveis de fingimento e simulação no confronto com a realidade cruel, este é definitivamente um romance que Borges teria escrito doutra maneira.
Orlando Grossegesseé professor da Universidade do Minho (Portugal).
Saiba Mais - Bibliografia
MARGATO, Izabel. “Lisboa Reinventada n’ O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Via Atlântica, n. 5, p. 140-151, 2002.
MARTINS, Adriana & SABINE, Mark (orgs.).“In Dialogue with Saramago. Essays in Comparative Literature”. Manchester Portuguese & Spanish Studies, 18, 2006.
SCHWARTZ, Adriano. O Abismo invertido. Pessoa, Borges e a inquietude do romance em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago. São Paulo: Globo, 2004.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Rio de Janeiro: UFRJ, 1987 / Lisboa: Dom Quixote, 1989.
Espelhos e bifurcações
Orlando Grossegesse