Fofoca? Que nada! Saber em primeira mão o que corre à boca miúda também pode ser preocupação de Estado. Pelo menos é o que se vê na publicação Polícia secreta dos últimos tempos do reinado do senhor D. João VI e sua continuação até dezembro de 1826, depositada no acervo de Obras Gerais da Biblioteca Nacional. Para garantir a ordem em Lisboa, policiais e espiões corriam diariamente as ruas da capital e seus arredores colhendo boatos e pequenos detalhes da vida de moradores e até mesmo de algumas personalidades. E, no fim, registravam tudo num verdadeiro relatório de serviço de informações.
Os textos não eram assinados. Mas, provavelmente, João Candido Baptista de Gouveia – responsável pela Polícia Preventiva (como era chamada a polícia secreta) – era o autor dos registros. E apesar do título, neste volume encadernado restaram apenas os informes de julho a setembro de 1824, já que a impressão foi interrompida. Ainda assim, há quase 500 folhas para apenas três meses de investigações, o que só confirma a insatisfação do Estado e dos próprios lisboetas com a situação de sua cidade. Como alertava a polícia, “em nenhuma época, apregoa a voz pública, se tem traficado tão escandalosamente com os lugares e empregos públicos como atualmente”.
Na fala do chefe da polícia secreta, a espionagem era instrumento importante para detectar possíveis ameaças à soberania do reino, identificando traidores e conspiradores. A implantação da polícia secreta e o início dos relatos ocorrem poucos meses depois da “Abrilada”, tentativa de golpe orquestrada pelo infante D. Miguel e sua mãe, a rainha Carlota Joaquina (1775-1830) em 30 de abril de 1824, para derrubar D. João VI e restaurar o absolutismo em Portugal. Em grande parte dos informes há indicação de pessoas “observadas” que participaram da conspiração contra o rei.
A obra traz também alguns indícios sobre o trabalho da força policial. Em nota ao intendente da Polícia, Simão da Silva Ferraz de Lima e Castro (1795-1857), barão de Rendufe, o chefe João Candido de Gouveia se justifica dizendo que informa apenas os “objetos” apurados e confirmados por diversas fontes: “Se eu fosse comunicar tudo quanto chega ao meu conhecimento, sem mais escrúpulo, ou exame, estou certo que V. Exa. encontraria nas comunicações da Polícia Secreta mais um compêndio de mentira que uma relação de verdades”. Em seguida, solicita o envio de “bilhetes de seguridade” (em branco e devidamente rubricados pelo intendente) para que os informantes fossem recebidos, a qualquer tempo, em hospedarias e estalagens.
O autor dos relatos ainda enumera uma curiosa lista das incumbências de cada investigador. O “Agente 7”, por exemplo, devia observar a loja de Jacinto Ribeiro de Campos, na Rua Augusta, “especificando os nomes dos indivíduos que ali se juntam, sua identidade, circunstâncias, etc.” Ao “espião” 24 cabia descobrir quem era um tal cocheiro Amaral, que andava por Belém falando “desbocadamente contra El Rei.” Já o “Agente 3” tinha uma tarefa mais espinhosa: apurar algum feito sobre a conduta política do frade dominicano Antonio d’Anunciação, “indicando o seu modo de pensar, as pessoas que frequenta, etc”. Só que não interessava simplesmente descobrir se ele vivia amancebado, tinha quatro filhos ou dormia fora do convento. Para o chefe da Polícia, “a vida privada de cada um não deve fazer objeto das observações da polícia; é uma coisa muito alheia de assuntos políticos: só quando há escândalo, só quando a moral pública se ressente é que toca à polícia entrar no conhecimento de assuntos de semelhante natureza, portanto deixe o frade neste particular, enquanto não causar escândalo”.
Em meio a tantas atitudes e personagens suspeitos, também é possível acompanhar fatos corriqueiros do cotidiano de Lisboa. Folheando essas notas diárias, ficamos sabendo da falta d’água enfrentada pelos moradores da cidade durante a onda de calor de fins de julho de 1824 e dos problemas com a iluminação pública. Em 2 de setembro, por exemplo, todos os candeeiros de diversas ruas – cuidadosamente anotadas – estavam apagados antes da meia-noite.
Nem mesmo Sua Alteza, o infante D. Miguel, escapou desses olhares atentos. Na seção Boatos de 11 de setembro de 1824, há notícias de que ele havia sido multado pela polícia de Paris “por andar correndo a cavalo pelas ruas e que não querendo pagar a multa, o ministro português a satisfizera.” Não é de hoje que os poderosos correm de suas responsabilidades.
Espionar é preciso
Regina Helena Santiago