Esquerda, reformas e poder

Rodrigo Freire

  • O século XXI chegou com uma novidade política para a América do Sul: boa parte de seus países elegeu democraticamente governos de esquerda. Mas chegar ao poder resultou em transformações internas para alguns desses partidos. Historicamente próximos do marxismo, o Partido dos Trabalhadores (PT), no Brasil, e o Partido Socialista (PS), no Chile, trocaram confronto por conciliação com os grupos políticos de centro. Foi uma inflexão na história da esquerda latino-americana, que cruzou o século XX sob a hegemonia das correntes nacionalista, comunista ou revolucionárias pró-Cuba. 
     
    Depois que uma onda democrática varreu as ditaduras do continente nos anos 1980, governanças neoliberais aprofundaram as históricas disparidades sociais da região na década seguinte. A consequência foi uma guinada à esquerda em diversos países: Venezuela, Argentina, Equador, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Brasil e Chile elegeram, no novo século, governos com agendas de reforma social, focados na redução da pobreza.
     
    O cientista político mexicano Jorge Castañeda, militante de esquerda até o final dos anos 1980 e chanceler do seu país no governo conservador de Vicente Fox (2000-2006), propôs uma tipologia desses governos: para ele, há uma esquerda “positiva” e outra “negativa”. A “negativa” seria de “velho tipo”, que reedita valores e práticas do século XX, como o populismo, o estatismo e uma política externa de confronto com os Estados Unidos. Entre os representantes desse polo estariam nomes como Hugo Chávez, na Venezuela, Néstor Kirchner, na Argentina, e López Obrador, então candidato à Presidência do México. No polo “positivo”, Castañeda aponta governos que, sem romperem com a economia de livre mercado, enfatizam políticas sociais redistributivas, respeitam as instituições democráticas e aspiram a uma inserção aberta no cenário internacional. Seria o caso dos governos Ricardo Lagos, do PS do Chile, e Lula, do PT brasileiro. 
     
    Manifestação promovida pela Concertação de Partidos pela Democracia em apoio ao NO, que decidiu pelo fim da ditadura pinochetista no plebiscito de 1988, no Chile. (Imagem: BIBLIOTECA DO CONGRESSO NACIONAL DO CHILE)Em sua história recente, estes dois partidos ocuparam posições diferentes no espectro ideológico. Ambos surgiram como alternativas aos matizes social-democrata e comunista. Se o comunismo despertava críticas por seu viés autoritário e centralizador, a outra opção tampouco lhes parecia adequada, por abdicar dos princípios igualitários socialistas. Democracia e socialismo, portanto, marcaram os discursos fundadores dos dois partidos. Mas nunca houve unanimidade: confluência de várias tradições da esquerda, PT e PS assumiram um formato plural, no qual correntes internas competem pelo controle da máquina partidária.
     
    O PS surgiu em 1933 como um partido urbano, expressivo na classe média, mas com importante base popular – incluindo trabalhadores das minas de cobre e das cidades, ansiosos por uma alternativa à hegemonia sindical dos comunistas. Já o PT foi fundado em 1980, nos fins da ditadura militar, apresentando-se como uma oposição forjada no interior da classe trabalhadora. Entre os grupos que o fundaram, destacavam-se os militantes do chamado “novo sindicalismo”, menos subordinado ao governo, que florescera com o “milagre econômico” do início dos anos 1970. Os outros segmentos petistas eram mais doutrinários, como intelectuais, a igreja progressista e ex-militantes da luta armada. 
     
    Sendo assim plurais, PS e PT sempre tiveram uma relação oscilante com a democracia. Nunca deixaram de disputar eleições, mas em muitos momentos consideraram as instituições democrático-liberais como “burguesas”, preferindo as “democracias populares” – definição ambígua o suficiente para ser tratada, pelos críticos, como uma simpatia pelas experiências autoritárias do socialismo real. No Chile, após seu candidato Salvador Allende perder três eleições presidenciais, o PS deu mais atenção ao clamor revolucionário de Cuba. Em 1967, assumiu-se “marxista-leninista”, desacreditando transformações socialistas pela via democrática, premissa central do seu programa original. Apenas a via armada poderia conduzir à revolução. Com a eleição de Allende, em 1970, o partido viveu a ambiguidade de assumir tal plataforma enquanto o presidente propunha uma “via chilena ao socialismo”, dentro da ordem constitucional. Até ser derrubado pelo golpe de 1973, Allende conviveu com críticas de partidários simpáticos ao modelo cubano por imprimir ao seu governo um caráter de respeito às instituições.
     
    No Brasil, o PT apresentou Lula às eleições de 1989 como um candidato que realizaria “tarefas democráticas e populares” e iniciaria a transição ao socialismo no país. Após perder três disputas presidenciais, o partido deu novo significado ao seu “governo democrático popular”, que agora não representava mais a transição ao socialismo, mas uma “ruptura necessária” com o neoliberalismo, nos termos do seu programa para as eleições de 2002. A proposta era um modelo de desenvolvimento “economicamente viável, ecologicamente sustentável e socialmente justo”, mas respeitando os marcos do capitalismo. Como candidato indicado à vice-presidência na chapa de Lula foi apresentado o empresário José Alencar, filiado ao Partido Liberal (PL), de centro-direita, num sinal de que o PT flexibilizava sua política de alianças, até então restrita aos partidos de esquerda. Em 1989 e 1994, o candidato a vice de Lula foi o gaúcho José Paulo Bisol, do PSB. Em 1998, Lula teve como companheiro de chapa Leonel Brizola, do PDT, uma das principais lideranças da esquerda desde a década de 1960.
     
    O golpe de 1973 instalou no Chile uma violenta ditadura, que assassinou, reprimiu e baniu milhares de opositores. Convivendo com outras esquerdas no exílio – como a social-democracia e o eurocomunismo – os socialistas chilenos reincorporaram a democracia ao seu pensamento e renovaram sua prática, unindo-se à Democracia-Cristã, partido centrista e seu adversário antes de 1973. Foi esta coligação, batizada de Concertación, que venceu o plebiscito de 1988, dando fim à ditadura Pinochet. No ano seguinte, a aliança assumiu o governo com um perfil de centro-esquerda, permanecendo no poder por 20 anos e elegendo os socialistas Ricardo Lagos e Michelle Bachelet.
     
    Militantes da CUT protestam em frente ao Ministério da Fazenda contra o ajuste fiscal proposto pelo governo federal. As medidas vão contra as pautas das manifestações de 2013 que, apesar de difusas, exigiam maior atuação do Estado nas áreas sociais. (Imagem: AGÊNCIA BRASIL / FOTO MARCELO CAMARGO)Para o PT e o PS, a definitiva conversão à democracia foi produto da experiência nacional, incluindo a vivência ditatorial, e uma estratégia de inserção no cenário político-eleitoral, por dentro das regras do jogo. Mas foi também uma resposta à falência do socialismo real no final dos anos 1980 e à subsequente crise das esquerdas. No século XXI, estes dois partidos não tratam mais a democracia com ambiguidade. 
     
    No plano econômico, os governos do PT e do PS operaram nos marcos estritos da economia de mercado, sem grandes rupturas com seus predecessores, ainda que tenham aumentado o grau de intervencionismo estatal. Foram reorientadas as políticas públicas sociais, potencializando os investimentos em programas redistributivos, que reduziram drasticamente a pobreza. Mas a ausência de ruptura cobrou seu preço. A concentração de renda no Chile e no Brasil continua entre as mais altas do mundo. Seus serviços públicos de educação e de saúde ainda são precários, particularmente quando comparados com os seus similares pagos, utilizados pelas classes média e alta. Mas a qualificação da saúde e da educação públicas carece de um refinanciamento do Estado, o que só é possível com uma reforma tributária que implicaria romper com o status quo social e econômico.
     
    Nos governos de Michelle Bachelet (2006-2010) e do seu sucessor Sebástian Piñera (2010-2014), os estudantes ocuparam as ruas em defesa da educação pública. Bachelet venceu as eleições presidenciais de 2013 com um giro programático, assumindo a pauta estudantil e se aliando a partidos da oposição de esquerda à Concertación. Quatro líderes estudantis foram eleitos deputados. Reassumindo a Presidência, Bachelet impulsionou reformas do sistema eleitoral binomial, do sistema tributário e do sistema educacional, legados da ditadura que a Concertación não logrou superar. Mesmo assim as manifestações de rua continuaram, e parte dos movimentos sociais seguiu insatisfeita com o nível supostamente “moderado” das reformas.
     
    No Brasil, as manifestações que se multiplicam desde junho de 2013, mesmo com pautas difusas, demandaram a melhoria dos serviços públicos, ou seja, uma maior atuação social do Estado e não a diminuição do seu tamanho, ao contrário do que acontece no início deste segundo mandato de Dilma Rousseff, quando o ajuste fiscal praticado impõe expressivas reduções orçamentárias para os gastos sociais, enfrentando oposição da tradicional base social do PT.
     
    Conquistada a democracia política, a América Latina deste início de século XXI demanda uma maior democratização da sua ordem social, tarefa difícil de ser cumprida com políticas de livre-mercado. Uma nova renovação da esquerda democrática se mostra uma tarefa pendente. Com a onda esquerdista da América do Sul chegando à segunda década, o modelo de Castañeda parece caminhar para a obsolescência.
     
    Rodrigo Freire de Carvalho e Silva é professor de Ciência Política na Universidade Federal da Paraíba e autor de A transformação da esquerda latino-americana. Um estudo comparado do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil e do Partido Socialista (PSCh) no Chile (UFPB, 2013).
     
    Saiba mais
     
    NATANSON, José. La nueva izquierda. Buenos Aires: Debate, 2008.
    CASTAÑEDA, Jorge. “Latin America's Left Turn”. Foreign Affairs, vol. 85, n. 3, May/June 2006.
    GARRETÓN, Manuel Antonio. Neoliberalismo corregido y progresismo limitado: los gobiernos de la Concertación en Chile 1990-2010. Santiago: Arcis / Clacso, 2012. Disponível em: http://biblioteca.uahurtado.cl/ujah/msj/docs/2013/n621_59.pdf.
    SADER, Emir. Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.
     
    Filmes
     
    A Boa Vida (Andrés Wood, 2008)
    NO (Pablo Larraín, 2012)
    Peões (Eduardo Coutinho, 2004)
    Entreatos (João Moreira Salles, 2004)