A política e o vasto império lusitano deveriam ser guiados pelo “sacrossanto princípio da unidade”. Assim pensava D. Rodrigo Domingos Antônio de Sousa Coutinho, o conde de Linhares, que expôs em Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua Majestade na América, em 1797, o projeto político que cultivava. Além de reconhecer o Brasil como a mais importante colônia europeia, ele chamava a atenção para a capitania de Minas, que deveria ser “mais principalmente, (...) o objeto de discussão”. Por certo, quando regressou a Lisboa, em meados de 1796, para assumir a Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, ele já tinha em mente essas ideias.
Não por acaso, nesse momento, Bernardo José de Lorena, amigo de infância de Sousa Coutinho e seu colega no Colégio Real dos Nobres, empossou-se no governo das Minas Gerais. A análise da situação da capitania foi tarefa mitigada também pelo diálogo com pessoas nela nascidas, porque D. Rodrigo logo se cercou de interlocutores mineiros. É o caso do frade franciscano José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811), que se tornou seu hóspede e com o qual passou a desenvolver ações para divulgação de textos científicos e de utilidade prático-econômica. Essas iniciativas tiveram seu auge, três anos depois, com a criação da célebre Casa Literária do Arco do Cego. Aliás, nessa instituição, cerca de 40% dos colaboradores eram nascidos no Brasil, a maioria em Minas Gerais.
Outro exemplo foi o professor substituto de Matemática da Academia Real de Marinha, Manuel Jacinto Nogueira da Gama (1765-1847), pouco depois removido para o estratégico cargo de escrivão da Junta de Administração da Fazenda Real em Vila Rica. Também foi seu interlocutor Manuel Ferreira da Câmara Bethencourt e Sá (1764-1835), conviva sempre solicitado por D. Rodrigo e por ele feito intendente geral das Minas e dos Diamantes no Brasil. A condescendência com que lidou com vários dos réus da Conjuração de 1788-1789, embora politicamente ardilosa, é outra prova de sua simpatia pelos mineiros.Uma característica, além de seus atributos políticos, chamava a atenção em sua personalidade: Rodrigo de Sousa Coutinho era claramente hipocondríaco. Sua correspondência e a de membros da família são recorrentes em assinalar suas constantes queixas quanto ao mau estado de saúde, circunstância agravada pelo temperamento tenso e pela dedicação compulsiva ao trabalho. Fosse como fosse, ainda que seu corpo apresentasse flagrante fragilidade nos dias anteriores ao falecimento, os cuidados exigidos não anunciavam o infausto desfecho, em janeiro de 1812. Aos 56 anos de idade, o conde de Linhares morreu “nas casas de sua morada, na rua do Sabão (...), não recebeu os sacramentos, por a moléstia não dar lugar, não fez testamento e foi sepultado no dia 27 do dito mês na igreja dos religiosos de Santo Antônio, desta cidade” do Rio de Janeiro.
Surpreendida pela morte de sua figura tutelar, a viúva, D. Gabriela Maria Inazia Asinari dei Marchesi de San Marzano, viu-se às voltas com dificuldades financeiras. Nesse contexto, o influente irmão de D. Rodrigo, D. José Antônio de Meneses e Sousa Coutinho, principal diácono – clérigo que tem a segunda ordem sagrada, imediatamente inferior à de sacerdote – da Igreja Patriarcal de Lisboa e membro do Conselho regente do Reino, reportou-se ao príncipe regente narrando as dívidas que D. Rodrigo vinha contraindo desde sua saída de Turim, e que agora deviam perfazer 70.000 cruzados. Encarecia, assim, a magnanimidade régia para a quitação do passivo financeiro do falecido conde: irrefutável ironia, das quais a História é prenhe. O talentoso ministro, que tanto refletira, escrevera e pusera em prática lições de economia e finanças públicas, mostrara-se mau gestor de seus recursos particulares.
Condoído e pessoalmente abalado pela perda do amigo e fiel servidor, em dezembro de 1812, D. João, após recebê-la em audiência especial por duas vezes e ter-lhe atribuído pensão anual de 6.000 cruzados, concedeu a D. Gabriela os “foros que pagam os colonos da sesmaria da aldeia de Santo Antônio dos índios guarulhos, sita nos Campos dos Goytacazes, nesta Capitania do Rio de Janeiro”. A mercê, porém, desde logo mostrou-se insuficiente.
Este cenário nada alvissareiro encerrava outras facetas que devem ser relevadas. Se a situação financeira de D. Rodrigo, a partir de certa altura, foi-lhe adversa, sua condição patrimonial, opostamente, não era desprezível. Seu pai, D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, obtivera merecida fama como governador de Angola e diplomata. Mas, na origem, os bens que lhe advieram eram praticamente nenhum, apesar de descender dos condes de Redondo, uma das mais antigas e prestigiadas casas senhoriais de Portugal. Mas, pelo lado de sua mãe, D. Ana Luísa Joaquina Teixeira de Andrade da Silva, o panorama era absolutamente outro. Por meio dela, D. Rodrigo se tornou titular de um morgadi – instituto jurídico pelo qual os bens se tornam inalienáveis e indivisíveis pela morte de seu titular, sendo transmitidos ao primogênito – em Minas Gerais, ainda que este fosse bem mais aquinhoado.
Concretamente, o conde de Linhares era herdeiro único, por direito de sucessão, de um vínculo que seu bisavô materno instituíra. Esse ancestral era ninguém menos que o coronel Matias Barbosa da Silva (?-1742), um dos primeiros desbravadores e povoadores da região das minas, tido por expressiva parte da historiografia como o “vassalo mais abastado” da capitania na primeira metade do século. Ele possuía sesmarias nas proximidades da atual cidade de Mariana e ao longo do Rio Doce, nos sertões do Rio São Francisco, na Picada de Goiás, às margens do Rio Paraibuna e na divisa com a capitania do Rio de Janeiro, onde se instalou o muito rentável registro de passagens – postos de arrecadação de impostos incidentes sobre as mercadorias, cavalos e escravos que entravam em uma região.
D. Rodrigo não desdenhou o legado. Não faltam evidências de que, estando no Brasil a partir de 1808, procurou ter clara dimensão das potencialidades econômico-financeiras daquela herança. Em 1809, o mineralogista inglês John Mawe (1764-1829) obteve autorização do príncipe regente para realizar viagem a Minas Gerais a fim de fazer a prospecção e o reconhecimento das condições extrativas da região, especialmente de ouro e diamantes. Agradecido pela intervenção de D. Rodrigo naquela deliberação, Mawe prontificou-se a visitar duas de suas propriedades rurais: as fazendas do Crasto e da Barra, nas cercanias do arraial de São José da Barra Longa. Sobre a primeira, avaliou-a próspera e com certa autossuficiência, para além de sua larga dimensão e de um plantel de 156 escravos. Na da Barra, onde esteve por “vários dias”, observou a agricultura que nela se praticava, visitou lavras auríferas, impressionando-se com o mau uso das “máquinas hidráulicas” e, prosaicamente, opinando que o queijo ali preparado era “tão rançoso e de gosto tão desagradável”, dedicou-se a ensinar “ao pessoal da fazenda (...) a dirigir uma queijaria à moda inglesa”.
Dois anos depois, o barão Guilherme de Eschwege, a quem o príncipe D. João determinara fazer “viagem mineralógica pela Capitania de Minas Gerais”, conheceu as terras do conde de Linhares. Em carta datada de Vila Rica, a 10 de novembro de 1811, relatou a D. Rodrigo suas observações, ponderando sobre a necessidade de mudanças nos trabalhos de mineração e sugerindo o redirecionamento da Fazenda da Barra para as atividades da agricultura.
O que se sabe é que a gestão interna de cada propriedade era confiada a administradores próprios. Mas, nessas matérias, D. Rodrigo teve a aconselhá-lo e a representá-lo um de seus amigos mais próximos, Manuel Jacinto Nogueira da Gama, que veio a ser o influente marquês de Baependi. Esteve ao lado de Linhares nas suas horas derradeiras. Foi ele também quem assistiu o filho primogênito de D. Rodrigo, D. Vitório Maria Francisco, o segundo conde, na venda de parte de suas terras. Muito possivelmente, teria sido este fiel companheiro de Sousa Coutinho o responsável pela resolução do governo imperial brasileiro que, em outubro de 1833, tornou as fazendas do Crasto e de Barra Longa livres de vínculos e restrições, favorecendo a negociação delas. Gradativamente, o avultado legado foi se desfazendo. Ou melhor, pouco a pouco foram se dissipando os vínculos da casa dos condes de Linhares com Minas Gerais e com os mineiros.
Caio C. Boschi é professor da PUC-Minas e autor de O Brasil-Colônia nos arquivos históricos de Portugal (Alameda, 2011).
Saiba Mais - Bibliografia
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO (Portugal). Fundo: Casa dos Condes de Linhares (Ref. - PT/TT/CLNH/X)
FUNCHAL, Márquez do. O conde de Linhares: Dom Rodrigo Domingos Antonio de Sousa Coutinho. Lisboa: Typographia Bayard, 1908.
TRINDADE, Raymundo, côn. Velhos troncos mineiros. São Paulo: Empr. Graf. da Revista dos Tribunais, 1955, v. 2.
SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d´un homme d´État; D. Rodrigo de Souza Coutinho, comte de Linhares, 1755-1812. Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2006. v. 2.
Essencialmente mineiro
Caio C. Boschi