Este animal de pelo

Marcelo Balaban

  • Bastos Tigre (1882-1957) publicou muitos livros em sua longa carreira literária. Um deles é Meu Bebê, de 1936, uma espécie de álbum onde se mesclam poemas e desenhos em páginas que devem ser completadas pelos pais com informações sobre o filho. Na obra de Tigre, escritor afamado da chamada belle époque carioca, encontram-se outras coisas tão estranhas como essa: reclames, hinos, jingles, peças teatrais do gênero ligeiro, além de inúmeras crônicas humorísticas, em prosa e verso. Por causa dessa variedade de funções, ecletismo foi a palavra escolhida por muitos autores que analisaram sua vida e sua obra. E, por essa mesma razão, é fácil entender por que motivo, para quem sacraliza a atividade literária, sua vida e sua obra não são valorizadas. Mas um outro olhar pode revelar faces curiosas deste personagem, com o qual é possível aprender muito sobre a literatura e a vida literária carioca do início do século passado.

    Tigre nasceu no dia 12 de março de 1882, no Recife, poucos anos antes da Lei Áurea (1888) e da República (1889). O menino viveu um período de transformações intensas e se tornou, após mudar-se para o Rio de Janeiro, um atuante e peculiar personagem do mundo das letras da capital do novo regime. Chegou a ser considerado uma espécie de síntese do que alguns consideravam um “escritor moderno”, devido à sua capacidade e seu empenho em atuar como literato em diferentes arenas: jornalismo, teatro, poesia e publicidade. Apesar de muitos contemporâneos terem torcido o nariz, esta foi o principal marca da experiência de Tigre como escritor. Assim, procurava redefinir a literatura, fazendo dela também seu meio de vida, uma profissão.

    Para Raimundo de Menezes (1903-1984), seu biógrafo mais importante, a trajetória do escritor se iniciara ainda na infância, época em que a veia literária e humorística já pulsava com força. Estudante de um seminário em Olinda, lançou ainda bem jovem o periódico O vigia, escrito de próprio punho e sempre confiscado pelo monsenhor Fabrício.O talento para as letras, segundo o argumento de Menezes, definira o futuro do jovem de nome engraçado.

    No final do século XIX, ele foi para o Rio de Janeiro estudar Engenharia. A vida daquele Tigre, que em vez de garras e presas afiadas ostentava um longo e volumoso bigode espetado nas pontas, correria bem longe da regularidade do dia a dia de um engenheiro. Logo passou a integrar a mais afamada roda literária da cidade, que se reunia na Confeitaria Colombo, ainda hoje no mesmo endereço, na Rua Gonçalves Dias, Centro do Rio de Janeiro. A trajetória deste literato, entretanto, permite desvendar sentidos de um momento agitado da vida da cidade. A belle époque de Bastos Tigre, ao contrário da versão harmônica narrada por Raimundo de Menezes, foi conturbada e multifacetada.

    Bastos Tigre fez parte do importante grupo de literatos do Rio de Janeiro no inínio do século XX. No alto, a cidade na sua época.Com apenas 20 anos, preparava Saguão da Posteridade (1902), seu primeiro livro, quando foi apresentado a Emílio de Menezes (1866-1918), um dos mais admirados poetas do período. Dias depois, este levou-o à Colombo, e com o entusiasmo característico de seu espírito folgazão, apresentou-o “aos da roda”: “Conheçam aqui este animal de pelo”. Ali estava, entre outros, Olavo Bilac (1865-1918), a estrela alfa daquela constelação de escritores. Emocionado ao apertar as mãos de quem considerava o maior poeta do país, Tigre esperou a palavra exata, caprichosamente burilada no melhor estilo parnasiano. No mesmo instante entrava o poeta Guimarães Passos (1867-1909), para quem Bilac lançou a inesperada pergunta: “Seu Guima, que bicho deu?” Dupla decepção: Bilac perdera no jogo e Tigre viu a imagem idealizada dos escritores da roda da Colombo virar pó. O susto durou pouco. Logo o calouro percebeu que Bilac revelava a face mundana aos poucos que seriam aceitos no grupo. Por essa razão, o momento ficou gravado na memória como sua iniciação literária.

    Esta história, publicada na edição de 13 de janeiro de 1952 do jornal A Noite, foi contada pelo próprio Tigre, como anedota. Com isso, buscava recriar o espírito da época e destacar o lugar que ocupara. Como tantas outras narrativas memorialísticas de sua autoria, esta produziu uma versão sobre aquele tempo, segundo a qual a verve e o talento dos escritores resumiam a cidade e lhe conferiam feição alegre. A boemia literária, marca daquela geração, fazia das letras e dos seus legítimos representantes uma atividade pública. Os homens de letras, além de lidos, poderiam ser admirados cotidianamente em animadas reuniões na Colombo.

    O poeta Martins Fontes (1884-1937), em Nós, as abelhas (reminiscências da época de Bilac), é outro que ajuda a construir a imagem unívoca e festiva daquele grupo de literatos ao chamar a atenção para a importância da roda da Colombo: “Talento, talento, muito talento. Cada um de nós reproduzia a cidade, reflamejava”.

    No entanto, aquele foi um momento de intensas e nem sempre alegres transformações sociais, políticas e literárias. Entre 1902 e 1906, a cidade passou por uma reforma urbana que criou a Avenida Central – hoje Rio Branco –, derrubou cortiços e pensões do Centro do Rio. Enquanto a urbe era redesenhada, os homens de letras buscavam seu lugar ao sol. Se a aceitação na roda da Colombo era uma espécie de passaporte para o cobiçado mundo das letras, era também um meio marcado por diferentes pontos de vista que às vezes geravam conflitos.

    A partir de 1902, Bastos Tigre intensificou sua produção literária. Passou a colaborar em muitos periódicos, como o Correio da Manhã, e em folhas ilustradas. Além de poesia, passou a escrever peças teatrais do gênero ligeiro, como vaudevilles e revistas de ano, gêneros do teatro que atraíam grande número de espectadores para as salas e, de modo geral, desenvolviam um humor leve, de escrita ágil e fácil compreensão. O sucesso que esses espetáculos alcançavam não era bem-visto por alguns pares de Tigre. Para escritores consagrados como Coelho Netto (1864-1934), esse gênero teatral era uma concessão inadmissível ao gosto do público, o que rebaixava a dimensão artística.

    Lima Barreto (1881-1922),por razões outras, também não concordava com a prática literária do amigo. Em 1905, escreveu em seu diário que o “amigo Tigre” era um “tipo de literato do Brasil”: inteligente, pouco estudioso, e que tratava a literatura como um conquistador usava as roupas, para “adquirir mulheres de toda casta e condição”. Barreto criticava esse sentido decorativo que o colega conferia às letras por não ser combativo, ou seja, por procurar conquistar e não transformar leitoras de lugares e condições diversos.

    De fato, Tigre procurava agradar ao público carioca. Com isso, tinha a intenção de ampliar o mercado dos escritores, fazendo da pena, o nobre instrumento de trabalho dos literatos, a ferramenta de um ofício capaz de lhes garantir a sobrevivência.

    Além da atividade propriamente literária, ele atuou ainda em causas da classe. Foi fundador da Sociedade Brasileira de Homens de Letras e da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, respectivamente em 1915 e 1917, entidades de defesa dos interesses dos escritores, como os direitos autorais. Fez muita publicidade, chegando a ter escritório para este fim, outra frente de atuação pela profissionalização da literatura. Alguns de seus reclames marcaram época, como as “Bromilíadas”, versos publicados nas páginas finais da revista Don Quixote em 1918, com a métrica e a rima de Os Lusíadas, sobre o xarope Bromil:

    Os homens de pulmões martirizados

    Que, de uma simples tosse renitente,

    Por contínuos acessos torturados

    Passaram inda além da febre ardente;

    Em perigo de vida atormentados,

    Mas de quanto é capaz um pobre doente,

    Entre vários remédios encontraram

    O jingle “Chopp da Brahma” também tem sua assinatura e foi sucesso no carnaval de 1934:

    Chopp em garrafa

    Tem justa fama

    É o mesmo chopp

    Chopp da Brahma

    Apesar dos mais de 50 anos de atividade no meio das letras e do reconhecimento do público e de alguns de seus companheiros de pena, Tigre não entrou para a seleta galeria dos autores imortais. Seus livros foram poucas vezes reeditados e, a despeito de algumas candidaturas, não foi sagrado membro da Academia Brasileira de Letras. Da mesma forma, não aparece nas histórias literárias, talvez pela avassaladora influência do movimento modernista. Ou, quem sabe, como consequência das escolhas literárias de Tigre. Seja como for, após as homenagens que recebeu por ocasião de sua morte, em agosto de 1957, foi aos poucos esquecido, embora permaneça referência importante para quem se interessa pela literatura e pela vida literária no Rio de Janeiro dos primeiros anos do século passado.

     

    Marcelo Balabané professor da Universidade de Brasília e autor de Poeta do Lápis: Sátira e Política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial (Unicamp, 2009).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil - 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.

    MENEZES, Raimundo de. Bastos Tigre e La Belle Époque. São Paulo: Edart, 1966.

    SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões e cultura na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989.

    SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

    TIGRE, Manoel Bastos. Reminiscências – a alegre roda da Colombo e algumas figuras do tempo de antigamente. Brasília: Thesaurus, 1992.