Estética zoológica

Roberto Conduru

  • Não é só dentro de casa que humanos e animais podem conviver e estabelecer um envolvimento íntimo. Essa interação pode ser criativa, de acordo com o que está configurado em algumas obras de vários artistas plásticos. Seja no espaço urbano, numa instalação, em um desenho, uma pintura ou escultura, a relação entre homens e bichos pode ser traduzida de forma singular, gerando obras que falam de seu tempo e lugar no mundo.

    A tela “Pesca da baleia na Baía de Guanabara”, pintada por Leandro Joaquim (1738?-1798?) no final do século XVIII, por exemplo, traz à tona muito mais do que aspectos ligados à economia pesqueira no Brasil durante o período colonial. Nela é possível constatar que as baleias frequentavam a Baía de Guanabara como se fossem animais domésticos. A obra sugere que a visão desses grandiosos mamíferos evoluindo no mar em meio a embarcações e edifícios era comum para os habitantes da cidade, e criou um vínculo entre homem e animal que o processo histórico acabou destruindo.

    Na mesma época, a convivência de quem morava no meio urbano com diversos espécimes da fauna brasileira era incentivada pelo Mestre Valentim (1745?-1813) por meio das esculturas que ele criou para jardins, logradouros públicos e edifícios do Rio de Janeiro. Entre elas estão os jacarés e as garças na Fonte dos Amores, o cupido alado com um cágado na Bica do Menino – ambas situadas no Passeio Público –, o lagarto no chafariz do caminho de Mata-Cavalos – atual Rua Frei Caneca, no Catumbi – e as saracuras no chafariz do Convento do Carmo – com a demolição do prédio, a obra foi levada para a Praça General Osório, em Ipanema.

    A estima dos humanos pelos animais, traduzida nas obras de Leandro Joaquim e do Mestre Valentim também é facilmente identificada em algumas obras de Oswaldo Goeldi (1895-1961). Elas se referem à paisagem de Belém do Pará, onde o artista passou boa parte da vida vendo garças e urubus pousados em arbustos ou no chão, agrupando-se em bandos autônomos. A distância e a estranheza mútua mantidas por essas aves na paisagem ecoam na arte de Goeldi, revelando uma simetria e uma relação entre elas, principalmente quando se relembra um ditado quilombola da região do Alto Tapajós: “Onde urubu está, garça não chega”. Ligado às relações étnico-raciais na Amazônia, este dito expressa uma projeção de afetos e tensões sociais nos animais que convivem perto dos humanos.

    De Goeldi, também há os desenhos e as gravuras que mostram gatos em atracadouros de barcos e mercados de peixe. Esses trabalhos apresentam um tema quase universal: animais que se adaptam a espaços e pessoas, movidos por interesses que ultrapassam a mera sobrevivência e se associam a lugares e indivíduos em busca de alimento, abrigo e afeto. Nesse caso, podem ser considerados bichos de estimação, mas não estão vinculados a lares ou famílias.

    Em sentido oposto, algumas obras de Tarsila do Amaral (1886-1973), como “Carnaval em Madureira” e “Morro da Favela”, apontam para uma interação próxima entre pessoas e animais no meio urbano que surgiu no convívio de núcleos familiares no espaço residencial. Nessas telas, cães e populares passeiam e se divertem na cidade, estendendo à paisagem um afeto singelo, um aconchego próprio das residências humildes.

    Já o artista Milton Dacosta (1915-1988) explora essa relação de uma maneira bastante peculiar. Muitos de seus quadros mostram mulheres interagindo com pássaros – ambos um tanto gorduchos – num clima de erotismo que difere do companheirismo cotidiano entre pessoas, cães e gatos no espaço doméstico. A sensualidade que se percebe nesses desenhos, pinturas e gravuras também deriva da persistência de mitos antigos sobre o convívio íntimo entre seres e animais, como o de Leda e o cisne.

    Mas ninguém foi tão contundente ao manifestar esse tipo de afeto em sua arte quanto Angelo de Aquino (1945-2007), que dedicou duas décadas de livros e obras ao cão Rex. O animal é retratado por ele em diversas situações e estados de ânimo, permitindo ao artista falar de si, da arte e da vida. Como afirmou certa vez o crítico de arte Wilson Coutinho, esse “personagem amável, ao longo da série, foi um meio paradoxal de mensagens, veículo de angústias, alegrias e amores do artista até que uma lógica da pintura, mesmo executada com ironia, se introduz na obra, talvez com a finalidade de dar um ponto final a esse personagem agradável, antimodelo de uma cultura passivamente triste”.

    As experiências artísticas mais recentes feitas com animais refletem outro tipo de tendência. Animados pela teoria contemporânea da arte, que parece acreditar que tudo é matéria artística, alguns artistas se apropriam de animais vivos em suas obras, muitas vezes expondo-os ao público. Adepto da bio art, o artista carioca Eduardo Kac, em seu projeto GPF Bunny, fez experiências de manipulação genética que, em 2000, deram luz à Alba, uma coelha cujo pelo ostenta uma cor verde fluorescente. O pernambucano Tunga incorpora frequentemente animais aos seus trabalhos, valendo-se de serpentes, rãs, girinos, moscas e larvas em algumas de suas “instaurações”, uma categoria artística por ele concebida, que soma performance e instalação. Dessa forma, pessoas e animais interagem entre si e com objetos, configurando ambientes e situações. Aves vivas enfeitadas com penas e plumas de carnaval costumam aparecer em algumas mostras de Laura Lima. Em 2001, Eduardo Menezes Pacheco, o Ducha, levou a burrinha Terezinha, a pé, da Zona Norte carioca à galeria Agora/Capacete, no Centro da cidade, e refez, quatro anos depois, o caminho de escoamento do ouro das Minas Gerais para o litoral com um grupo que incluía o asno Mardim. O paulista Nuno Ramos chegou a incluir jumentos e urubus nas instalações “Vai Vai” e “Bandeira Branca”, lidando com o misto de estranheza e familiaridade que alguns animais têm na cultura brasileira.

    A presença pitoresca, exótica e até repugnante de bichos nos espaços artísticos não significa que esses artistas querem domesticar os animais nesses ambientes. Muito pelo contrário, essas experiências pretendem provocar um estranhamento que leve à reflexão, tanto sobre as práticas artísticas de hoje em dia quanto sobre as relações atuais entre humanos e animais.

    Enquanto alguns incorporam animais como elementos das obras de arte, outros tratam as obras quase como animais. Depois de ter feito esculturas com peças de madeira pintadas uniformemente de branco e com mármore carrara – uma pedra alva sem veios e manchas –, Sergio Camargo procurou um material com aparência também homogênea, mas com a luminosidade oposta, e encontrou o negro belga, uma pedra preta também desprovida de veios e manchas, e produziu peças alongadas. Batizadas afetivamente de “baleias”, essas esculturas indicam um outro tipo de relação com a arte, na qual as obras são entendidas como algo mais do que coisas brutas, inanimadas e passivas. Tornam-se, portanto, entidades próximas aos seres humanos, como se tivessem sido projetadas para manter um convívio similar ao que as pessoas têm com os animais domésticos.

    O melhor exemplo desse tipo de relacionamento com a arte é a série de obras denominadas “Bichos”, de Lygia Clark (1920-1988). Feitos de placas de alumínio com formato geométrico, articulados por dobradiças, esses “bichos” não têm uma forma fixa, podendo ser continuamente manipulados. Embora pareça contraditória a referência a um ser vivo em uma obra de aparência um tanto racional, mecânica e industrializada, o nome que a artista encontrou para batizar seu trabalho lhe cai perfeitamente.

    Experiência artística com peças como essas só acontece quando elas são manipuladas pelas pessoas, em um jogo subjetivo muito semelhante à interação entre os indivíduos e seus animais. A equação é simples: as obras de arte estão para as demais coisas, no campo cultural, assim como os bichos de estimação estão em relação aos outros animais.

    ROBERTO CONDURU É HISTORIADOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.

    Saiba Mais - Bibliografia

    BRITO, Ronaldo. Sergio Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2000.
    CARVALHO, Anna Maria Fausto Monteiro de. Mestre Valentim. São Paulo: Cosac Naify, 1999.
    VENÂNCIO FILHO, Paulo. Milton Dacosta. São Paulo: Cosac Naify, 1999.

    Saiba Mais - Internet

    www.angelodeaquino.com.br
    www.centrovirtualgoeldi.com
    www.lygiaclark.com.br