Em um dos pequenos navios que faziam parte da extensa armada portuguesa de Pedro Álvares Cabral vinha o único astrônomo da expedição: Mestre João. Profundo conhecedor de astros e de toda a ciência náutica, ele foi o primeiro a estudar e a descrever o céu brasileiro, identificando a constelação do Cruzeiro do Sul.
A observação dos astros naquela época era fundamental, pois ajudava na localização das embarcações. Foi esta prática que permitiu que a navegação deixasse de ser costeira para partir rumo ao mar aberto do Atlântico na passagem do século XV para o XVI. As estrelas serviam de guia aos navegantes. Davam as coordenadas da direção que deveria ser seguida, assim como o GPS (Global Position System) nos dias de hoje. A grande diferença entre os dois sistemas é, como se pode imaginar, a precisão: enquanto o primeiro utilizava ferramentas rudimentares, o segundo conta com informações via satélite.
A experiência e as descobertas de Mestre João estão descritas na carta enviada por ele ao rei de Portugal e elaborada entre os dias 28 de abril e 1º de maio de 1500, alguns dias depois do descobrimento do Brasil. Este registro, ao mesmo tempo científico e informativo, foi escrito durante a semana em que a frota ficou ancorada em Porto Seguro, na atual baía de Cabrália. É um documento precioso que não se conhecia até o século XIX, quando o historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) a descobriu em 1843 e a publicou pela primeira vez.
Se Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta, revelava as belezas e os recursos naturais do Brasil, Mestre João apresenta um relato bastante técnico de sua estada. Com seus conhecimentos específicos, ele conseguiu encontrar, por exemplo, em que latitude estava a armada de Cabral. Ao rei D. Manuel – que governou Portugal no período áureo das descobertas marítimas, entre 1495 e 1521– ele conta como fez isso: “Senhor: ontem, segunda-feira, que foram 27 de abril, descemos em terra, eu e o piloto do capitão-mor e o piloto de Sancho de Tovar; tomamos a altura do sol ao meio-dia e achamos 56 graus, e a sombra era setentrional (sic, por meridional) pelo que, segundo as regras do astrolábio, julgamos estar afastados da equinocial por 17º, e ter por conseguinte a altura do pólo antártico em 17º”.
Os dois homens citados, que auxiliaram Mestre João em sua tarefa, eram os principais pilotos da armada de 1500: Afonso Lopes, piloto de Pedro Álvares Cabral, e Pero Escolar ou Escobar, piloto de Sancho de Tovar, subcomandante da frota.
Na carta, o astrônomo chama atenção para a utilidade do astrolábio junto com o mapa geográfico de navegação. Lembra, porém, que a certeza do emprego correto do seu equipamento só se dará com a chegada ao Cabo da Boa Esperança, no extremo sul da África.
O texto mostra a variedade dos instrumentos da ciência náutica no início da Idade Moderna. O astrolábio, feito basicamente de bronze, verificava a distância entre o ponto de partida e o lugar onde estava localizado o navio. As tábuas da Índia, ou kamals, de formato triangular, constituídas de três réguas, destinavam-se a medir a altura das estrelas. Levada para Portugal por Vasco da Gama (1469-1524) no retorno de sua primeira viagem à Índia, de 1497 a 1499, a ferramenta demonstra que a troca cultural entre Ocidente e Oriente estava a pleno vapor.
Na prática, o uso desses recursos não era nada simples: “Somente mando a Vossa Alteza como estão situadas as estrelas do (sul), mas em que grau está cada uma não o pude saber, antes me parece ser impossível, no mar, tomar-se altura de nenhuma estrela, porque eu trabalhei muito nisso e, por pouco que o navio balance, se erram quatro ou cinco graus, de modo que se não pode fazer, senão em terra”.
Mestre João chega a fazer troça de sua própria situação: “E quase outro tanto digo das tábuas da Índia, que se não podem tomar com elas senão com muitíssimo trabalho, que, se Vossa Alteza soubesse como desconcertavam todos nas polegadas, riria disto mais que do astrolábio”.
Na carta, o astrônomo reclama da exatidão do quadrante: “Para o mar, melhor é dirigir-se pela altura do sol, que não por nenhuma estrela; e melhor com astrolábio, que não com quadrante nem com outro nenhum instrumento”. Este servia de apoio à navegação nos oceanos, determinando a medida da altura dos astros sobre o horizonte.
O tamanho da embarcação onde estava também era um problema: “acerca das estrelas, eu tenho trabalhado o que tenho podido, mas não muito (...) por causa de este navio ser muito pequeno e estar muito carregado, que não há lugar para coisa nenhuma”.
Até chegar ao posto de astrônomo do rei, Mestre João recebeu uma formação bastante específica. Na carta, ao se apresentar, ele mostra todas as suas credenciais: “Senhor: O bacharel mestre João, físico e cirurgião de Vossa Alteza, beijo vossas reais mãos”. Naquele período, “físico” era um termo empregado na Europa para quem exercia a medicina associada à astrologia. Já a denominação de mestre era, provavelmente, um título identificador dos sábios das comunidades judaicas e árabes.
Judeu e espanhol, Mestre João transferiu-se para Portugal no reinado de D. João II (1481-1495) a fim de fugir da perseguição inquisitorial em sua terra natal. Evidências indicam que se formara em Salamanca, na Espanha, e tinha sido aluno do matemático e astrólogo Abraão Zacuto, autor do Almanach perpetuum, livro básico da astronomia náutica, publicado em 1496, escrito em hebraico e depois traduzido para o latim e o espanhol. A universidade, uma das mais antigas da Europa, foi um grande centro de pesquisas no final da Idade Média e no alvorecer da Renascença, tendo contribuído muito para os estudos de náutica.
Não fossem suas qualificações, Mestre João certamente não teria obtido sucesso na empreitada no Novo Mundo. Sua técnica, aliada à persistência, fez com que ele identificasse a constelação do Cruzeiro do Sul, uma referência fundamental para a navegação abaixo da linha do Equador. De tão importante, o conjunto de estrelas tornou-se simbólico e foi incorporado à bandeira do Brasil em 19 de novembro de 1889, logo após a Proclamação da República.
Em sua carta, o astrônomo envia um desenho ilustrativo e uma descrição da constelação, que ele chama de Cruz: “Tornando, Senhor, ao propósito, estas Guardas nunca se escondem, antes sempre andam ao derredor sobre o horizonte, e ainda estou em dúvida que não sei qual de aquelas duas mais baixas seja o pólo antártico; e estas estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as do Carro; e a estrela do pólo antártico, ou Sul, é pequena como a do Norte e muito clara, e a estrela que está em cima de toda a Cruz é muito pequena”. Essa constelação austral se tornou universal a partir de 1604, divulgada na obra Uranometrie, do astrônomo Jean Bayer. A expressão corrente “Cruzeiro do Sul” começou a circular em data imprecisa.
Esse conjunto de astros brilhantes, que pode ser visto a olho nu do Hemisfério Sul, é formado pelas estrelas Alfa, Beta, Gama e Delta. Há também uma quinta estrela de menor magnitude, Epsilon Crucis, conhecida como Intrusa ou Intrometida. Mestre João identifica apenas duas delas: as Guardas, hoje Alfa e Gama, cujo alinhamento fornece a direção do polo celeste sul.
No entanto, não se pode esquecer que a primeira referência ao Cruzeiro do Sul se deve ao navegador italiano Alvise Cadamosto (c.1432-1488), mercador veneziano que no século XV viajou ao longo da costa ocidental africana a serviço do infante D. Henrique (1394-1460). Era uma “confusa observação”, como ressalta Alessandra Mauro em seu estudo O “Carro do Austro” de Alvise da Ca’da Mosto (1988). De qualquer modo, foram os portugueses que conseguiram fazer uso da constelação do Cruzeiro do Sul para navegar.
Guardadas hoje na Torre do Tombo, em Lisboa, as duas páginas da breve correspondência do astrônomo demonstram a complexidade do saber técnico por trás dos descobrimentos de Portugal e Espanha. Era a união entre o conhecimento científico e a experiência.
PAULO ROBERTO PEREIRA é autor de Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil e As comédias de Antônio José, O Judeu, entre outros livros. Em 2009, organizou a edição do centenário da obra completa de Euclides da Cunha, em dois volumes.
Saiba Mais - Bibliografia
AMADO, Janaína e FIGUEIREDO, Luiz Carlos (orgs.). Brasil 1500: quarenta documentos. Brasília: UnB; São Paulo: Imesp, 2001.
MAGALHÃES, Joaquim Romero e MIRANDA, Susana Münch (apresentação). Os primeiros 14 documentos relativos à armada de Pedro Álvares Cabral. Lisboa: CNCDP/Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, 1999.
MORAIS, Abraão de e SZULC, Abraham. “A astronomia no Brasil”. In: AZEVEDO, Fernando de. As ciências no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994, vol. I.
MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. A astronomia na época dos descobrimentos. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000.
Estrela guia
Paulo Roberto Pereira