Por mais otimistas que fossem, os alunos reunidos na Casa do Estudante do Brasil no dia 3 de agosto de 1935 dificilmente imaginariam a repercussão que aquele encontro teria. O objetivo era discutir as dificuldades materiais que enfrentavam para se manterem em seus cursos. Uma das soluções propostas foi reivindicarem “abatimentos nos meios de locomoção e diversão”. Redigiram um manifesto, prometeram desencadear mobilizações para a conquista desses descontos e batizaram o movimento de “Campanha dos 50%”. Em pouco tempo ela se espalharia pelo país. E sua herança seria duradoura.
O grande mérito do manifesto era propor uma solução simples para um sério problema, não se perdendo em ideais abrangentes e sem conclusão. Afirmava que os estudantes cada vez mais tinham dificuldades em conciliar o seu trabalho, necessário para sustentar o estudo, com as exigências de frequência às aulas e, além disso, “os próprios estudos sujeitam toda a classe estudantina à perda de horas obrigatórias para uma maior solidificação da cultura”. Para que as escolas não se transformassem em fábricas de diplomas, os estudantes deveriam defender o futuro e o progresso do Brasil. No entanto, “dedicando a nossa vida ao estudo, nos mantemos em nível de vida inferior às demais classes do Brasil”. Por isso, era necessário lutar por “abatimentos nos meios de locomoção e diversão dos estudantes”. A seguir o texto propunha 50% de abatimento e indicava onde ele seria utilizado: “precisamos pagar a metade porque não podemos pagar integralmente as entradas nos cinemas e teatros, nos campos de futebol, nos ringues de boxe, nas viagens de bonde e ônibus, nos transportes marítimos e ferroviários”. Concluía afirmando que o sucesso da “Campanha dos 50%” exigia uma ação conjunta de todos os estudantes brasileiros.No dia 9 de agosto, o manifesto foi publicado no diário A Manhã, da Aliança Libertadora Nacional (ANL), que na primeira página pôs em manchete: “Os estudantes brasileiros iniciam a ‘Campanha dos 50%’”. Fazia um mês que o governo de Getulio Vargas havia fechado a ANL por decreto, depois que ela deixou claro seu objetivo de instaurar um governo popular revolucionário. Mesmo assim, seu jornal continuou circulando. E, entre todos os diários cariocas, seria o único a noticiar diariamente o movimento iniciado pelos universitários.Três dias depois, uma assembleia realizada na Casa do Estudante do Brasil decidiu fazer um acréscimo à reivindicação: por decisão de centenas de estudantes, as demandas de desconto de 50% se estenderam aos preços dos livros e às taxas escolares. A reunião também definiu que a campanha avançaria mais um passo, levando o movimento às ruas. No espaço de uma semana, duas manifestações foram organizadas, ambas reprimidas com violência pela polícia. O segundo protesto, no dia 23, sequer conseguiu sair do local da concentração inicial, no Largo da Carioca, em frente à Casa do Estudante do Brasil. A polícia foi extremamente cruel, mas aquele dia significou a virada da campanha. As ações de repressão combinadas com alegações da polícia política de que os estudantes tinham vínculos com “extremistas” (ou seja, com os aliancistas ou os comunistas) chocaram-se com as reivindicações objetivas dos estudantes e com sua postura decidida de prosseguir com o movimento. A campanha ganhava, ali, a simpatia da opinião pública.A Comissão Organizadora contava com universitários e secundaristas, de perfis diversos. Alunos das faculdades de Medicina, Agronomia, Direito, entre outras, se uniam a estudantes de colégios como Pedro II e São Bento. Uma nova passeata foi convocada para o dia 29 de agosto. Dessa vez o ato se desenrolou sem qualquer incidente, com cordões de isolamento organizados pelos próprios manifestantes, e foi entusiasticamente saudado pela população, com a polícia apenas observando.
Além dos crescentes apoios recebidos de todos os cantos do Brasil, a comissão de organização da “Campanha dos 50%” do Distrito Federal, à medida que eram criadas outras comissões pelo país, passou a enviar seus membros para participar de atividades, apoiar mobilizações e transmitir-lhes a experiência carioca. Os estudantes começaram a diversificar suas formas de atuação. Aproveitaram as comemorações do dia 7 de setembro, por exemplo, para divulgar a causa: tomaram parte do desfile oficial, empunhando cartazes e distintivos com a legenda “Tudo pelos 50%”. Manifestações foram realizadas pelas alunas normalistas e em outras escolas femininas. Também houve atividades para arrecadação de fundos, como piqueniques, práticas esportivas e a animação de “jazz band” e da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.A passeata do dia 14 de setembro teve como objetivo entregar o memorial de reivindicações dos estudantes às Câmaras Federal e Municipal do Rio de Janeiro. Mais uma vez sem incidentes e com enorme apoio popular. O memorial de taxas e livros tomou mais tempo de elaboração e foi concluído quando os estudantes já estavam prestes a entrar em férias – o que ocorria em meados de novembro. O documento acabou sendo entregue à Câmara Federal apenas por uma comissão de estudantes. O novo texto fora publicado alguns dias antes somente no diário A Manhã. Sua pauta, ao contrário do primeiro memorial, era muito mais extensa e, mesmo lendo-o já no século XXI, percebem-se muitos pontos que levaram décadas para serem conquistados. E há outros ainda hoje inalcançados, como o desconto de 50% nos livros, a gratuidade no ensino primário e a criação de conselhos paritários, nos ginásios e nas escolas superiores, de alunos e professores.Com o encerramento do ano letivo, a comissão organizadora da “Campanha dos 50%” teve sua última reunião na Casa do Estudante do Brasil em 14 de novembro. Três pontos foram discutidos. Um deles determinou a decisão de criar uma comissão que dirigiria o movimento estudantil durante as férias. Outro foi a proposta de criação de uma organização nacional permanente, que continuasse a Campanha dos 50% e levasse adiante “todo e qualquer movimento relativo aos direitos da mocidade brasileira”. Por fim, foi feito um balanço do movimento naqueles três meses de mobilização nacional. Entre 9 de agosto e 27 de outubro de 1935, a Campanha dos 50% recebeu a adesão de 79 colégios, faculdades ou entidades estudantis situados em 12 estados e no Distrito Federal. A solidariedade rompeu as fronteiras escolares e universitárias: várias outras instituições apoiaram os estudantes, em especial as do movimento sindical e a clandestina ANL. Os bancários, os marítimos e o diário A Manhã chegaram a contribuir financeiramente.Em relação à conquista dos descontos, os dados da época são precários, mas é possível afirmar que grande parte das cidades brasileiras onde houve protestos adotou o abatimento de 50% para estudantes nos cinemas e nos teatros. Após a manifestação carioca do dia 23 de agosto, que terminou antes de começar, houve pelo menos 15 atos públicos em dez estados. Sobretudo em razão do pouco tempo para mobilizações mais específicas, as reivindicações de descontos nos transportes, nos livros e nas taxas escolares não foram conquistadas, com exceção de Belém, Vitória e Santos.
Mais que o encerramento do ano letivo, foram os levantes militares ocorridos em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro, no final de novembro, que interromperam a Campanha dos 50% e a jogaram no esquecimento. Mesmo assim, suas conquistas, ainda que parciais, foram mantidas. E as demandas não alcançadas acabaram incorporadas às lutas que se seguiram no decorrer dos anos.Agindo nas frestas da ditadura do Estado Novo, os estudantes continuaram atuando. Aqueles que estiveram na luta pelos descontos acabaram não sendo tão visados pela repressão, o que lhes permitiu desempenhar um papel importante na criação da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1938, ideia que surgiu na última reunião da comissão organizadora da Campanha dos 50%. Nenhum deles, porém, virou avenida, se tornou governador, ministro ou presidente.Parece tentador estabelecer analogias entre as mobilizações de junho de 2013 e a Campanha dos 50%. O estopim dos transportes, a mobilização nacional e a severa repressão são elementos que aproximam esses dois momentos da história nacional. Mas há pelo menos um distanciamento: enquanto os estudantes do século XX apresentaram metas claras e definidas, os manifestantes do século XXI parecem ter perdido o passo: o movimento se deixou transformar em biombo dos setores conservadores.Dainis Karepovs é autor de A classe operária vai ao Parlamento: O Bloco Operário e Camponês do Brasil (1924-1930), (Alameda, 2006), e coautor de Na contracorrente da história: Documentos do trotskismo brasileiro, 1930-1940 (Sundermann, 2015).Saiba MaisARAÚJO, Maria Paula. Memórias estudantis: Da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007.CASTRO, Moacir Werneck de. Europa 1935: Uma aventura de juventude. Rio de Janeiro: Record, 2000.Jornal A Manhã. Disponível em http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/manh%C3%A3-1.SANT’ANNA, Irun. O garoto que sonhou mudar a humanidade. Rio de Janeiro: Fundação Dinarco Reis, 2011.VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionário de 1935: Sonho e realidade. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.Documentário35 – O assalto ao Poder (Eduardo Escorel, 2002)
Estudante paga meia
Dainis Karepovs