Eternidade sobre túmulos

Maria Elizia Borges

  • Além de amenizar a dor causada pela morte, as esculturas também serviam para formar o gosto artístico em lugares movimentados.Quando se visita um cemitério, o que se vê é uma série de túmulos adornados com cruzes, flores, vasos e imagens de santos e de anjos. Mas quem já viu esculturas como as de Materno Giribaldi – especialista em retratar mulheres em poses sensuais – enfeitando túmulos acaba se perguntando se não seria mais adequado que essas obras de arte ficassem expostas dentro de um museu. Possivelmente, elas estão ali para confirmar o quanto os vivos sentem necessidade de eternizar esses lugares com trabalhos artísticos repletos de significados, sejam sacros ou profanos.

    Nas grandes metrópoles brasileiras, como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e São Paulo, há cemitérios que são tidos como museus a céu aberto. Isto se deve ao fato de eles abrigarem uma grande quantidade de monumentos luxuosos, ornamentados com estátuas que muitas vezes narram a vida do falecido, reforçando a importância que ele teve. Ao longo da história da humanidade, cada sociedade desenvolveu uma maneira própria de homenagear seus mortos. Esse costume contribui para que os homens vivenciem o seu luto com mais profundidade.

    Materno Giribaldi (1870-1935) nasceu na Itália, aos 60 anos mudou-se para São Paulo, onde instalou seu ateliê na década de 1930. O trabalho do artista apresenta elementos dosimbolismo, representação visual que agrupa estilos artísticos europeus do final do século XIX, como oart nouveau (nova arte) e o liberty (noção de liberdade). Suas obras têm composições assimétricas com uma profusão decorativa de arranjos florais envolvendo mulheres nuas e seminuas. Elas expressam dor diante dos mistérios insondáveis da morte e, ao mesmo tempo, exaltam e glorificam a vida terrena.

    Um dos trabalhos mais conhecidos de Giribaldi em terras brasileiras está no jazigo-capela da família de Nami Jatef, construído em 1932 no Cemitério da Consolação (SP) – que havia sido inaugurado em 1858, para que mortos de todas as classes sociais pudessem ser enterrados. Hoje ele contém, em sua maioria, monumentos luxuosos de famílias de paulistanos tradicionais e de imigrantes, como foi o caso de Jatef, libanês que se tornou um empresário bem-sucedidono Brasil.

    Sua família encomendou o projeto arquitetônico do túmulo à Marmoraria Pedro Porta, de São Paulo, que seguiu o padrão formal do estiloart déco, com seu jogo de formas geométricas revestidas de granito polido preto e marrom. O jazigo-capela passa praticamente despercebido em função das esculturas de bronze que circundam e coroam todo o monumento, chegando a avançar rua adentro. Estaria a obra do escultor Giribaldi representando um navio imaginário apoiado numa base de granito, de acordo com uma interpretação já feita anteriormente? É possível acreditar nessa versão quando se observa o monumento de perfil. Por esse ângulo, vê-se um friso composto de vinte figuras seminuas, trabalhadas em corpo inteiro e fundidas no bronze, dispostas de modo aparentemente desordenado. Na parte que fica de frente para a rua e em suas laterais, há umasedutora divindade que parece elevar-se ao céu, trazendo consigo outras quatro. Seus corpos nascem das flores que ornamentam a base do monumento.

    Essas mulheres formosas dão a impressão de estarem sofrendo perante a morte de Nami Jatef. Cada uma delas está bem delineada, envolvida por sua roupa transparente, deixando à mostra seios bem torneados. São feições de moças jovens, de cabelos longos e encaracolados, provenientes do gosto pela beleza clássica da escultura greco-romana. Há um certo encanto nessa agitação teatral das figuras, resultado da exposição da beleza corporal. Sob essa cena dramática está o busto do falecido, retratado de modo realista, seguindo um padrão vigente na época. Ele segura em uma das mãos um livro aberto, que simboliza o registro de sua vida.

    Na parte posterior do jazigo-capela, há uma porta de bronze indicando a entrada do monumento. Ali está gravada, em baixo-relevo, uma mulher alada que também brota das flores. Ela segura o monograma XP,as primeiras letras do nome de Cristo no idioma grego. A porta gravada por Materno Giribaldi corresponde ao estilo art nouveau,com uma figura feminina altiva e estilizada. Em sua lateral, há duas figuras esculpidas coroando uma flama, que simboliza a chama da vida. No topo do monumento, uma pranteadora se debruça sobre o sarcófago, num gesto de desespero diante da desventura da morte.

    O trabalho de Materno Giribaldi ainda se faz presente em cemitérios paulistanos com mais três obras: um busto no túmulo de Fares Buchain, morto em 1923, instalado no Cemitério da Consolação; uma escultura feminina no sepulcro de Carlo Mauro e oMonumento da Família Rossa (1942), ambos no Cemitério São Paulo. Pela data de falecimento do patriarca da família e de Giribaldi (1935), constata-se que esta última obra já estivesse pronta no ateliê do escultor no momento em que foi adquirida.

    O túmulo daFamília Rossapossui uma estrutura simples e chama a atenção para a grande escultura de bronze“Mãe eleva seu filho recém-nascido”,uma representação cristã que mostra corpos, esculpidos de modo realista, cobertos por vestes pesadas. Na cabeceira do monumento, na parte da frente, estão incrustados três baixos-relevos, retomando a concepção simbolista com o “Pranto das ninfas”.No painel central, há uma espécie de dança circular das ninfas seminuas. Seus corpos longilíneos e sensuais estão em torno de palavras escritas em latim, numa forma de definir o percurso de vida do falecido.

    Há também um painel expressivo atrás da cabeceira do túmulo, onde mulheres de porte clássico se debruçam diante do ataúde da família. A tristeza está impregnada nos seus semblantes. O buquê de rosasesculpido sobre o esquife simboliza a dedicação dos vivos aos mortos, daí o seu constante uso na arte funerária.

    Materno Giribaldi pertencia a uma geração de escultores italianos que foram alunos ou seguidores da iconografia funerária produzida pelo escultor italiano Leonardi Bistolfi (1859-1933), reconhecido internacionalmente como líder do simbolismo e como “poeta da morte”. Bistolfi procurava amenizar o luto, chamando atenção para as igualdades sociais, o sentido pleno do amor universal e o lado espiritual da vida. Suas obras encarnam a angústia do homem moderno e demonstram um sentimento de caráter mais humanitário.

    Essa influência já havia sido assimilada por Giribaldi em 1911, quando ele instalou no túmulo de Francesco Zo – no Cimitero Urbano em Asti, na Itália – uma escultura de mármore que retratava uma bela jovem debruçada sobre um tronco de árvore repleto de flores, que representava a “Bela Morte”. O artista desenvolveu uma outra maneira de demonstrar o papel da mulher diante da morte: o da pessoa ligada às emoções, dócil e hábil para suportar a dor da separação com resignação e serenidade, capaz de consolar os familiares.

    Todos os monumentos funerários têm seu significado e vêm imbuídos de uma mensagem, que deve ser compreendida por todas as pessoas que passam pelas alamedas dos cemitérios. Até meados do século XX, esses lugares onde se cultua a memória estavam entre os pontos turísticos mais visitados em qualquer cidade do mundo. Locais nos quais seus visitantes poderiam questionar os aspectos que ligam as cerimônias fúnebres às emanações de sensualidade.

     

    Maria Elizia Borges é professora da Universidade Federal de Goiás e autora de Arte Funerária no Brasil (1890-1930): ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto (C/Arte, 2002).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    BELLOMO, Harry Rodrigues (org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008.

    BORGES, Maria Elizia; DOS SANTOS, Alcineia Rodrigues; GOMES, Larissa. Estudos Cemiteriais no Brasil: catálogo de livros, teses, dissertações e artigos. Goiânia: Cegraf, UFG, 2010.

    REZENDE, Eduardo Coelho Morgado. O céu aberto na terra: uma leitura dos cemitérios de São Paulo na geografia urbana. São Paulo: E.C.M. Rezende, 2006.

    Saiba Mais - Internet

    www.artefunerariabrasil.com.br